A teoria agnóstica do processo penal e os sujeitos processuais "total flex"

21/05/2015

Por Elmir Duclerc - 21/05/2015

Temos todos assistido à glorificação midiática de um modelo de juiz que, posto constitucionalmente na condição de garantidor dos direitos fundamentais do acusado, teima em colocar-se de livre vontade na condição de combatente contra o mal, acusador e vingador da sociedade, orgulhando-se de trabalhar “em conjunto” com a polícia e o Ministério Público.

No decorrer da última semana, aliás, fui surpreendido com três notícias interessantes envolvendo a atuação do MP no processo criminal: uma delas, sobre os poderes investigatórios do Ministério Público, veio (ou retornou, porque já é antiga) na forma da súmula vinculante n. 14, que afirma essa possibilidade num texto que, em que pese muito longo (como se tentando dar conta da complexidade do tema), acaba deixando ainda muitas questões sem resposta;  a outra notícia veio do CNMP, que decidiu ser possível, inclusive, que o próprio MP realize interceptações telefônicas diretamente, sem recorrer à polícia, como determina a Lei n° 9296/96; a última notícia me veio na forma de artigo em que se discutia o papel do MP em segundo grau: custos legis ou parte?

Em termos de justiça criminal no Brasil, entretanto, nada é tão estranho que não ficar ainda mais esquisito. A prova disso viria na forma de uma fotografia que circulou e chamou muita atenção nas redes sociais, retratando a primeira página de uma peça processual com papel timbrado da Defensoria Pública do Estado do Pará. Motivo do assombro: a peça veiculava um pedido de prisão preventiva. Aliás, o primeiro tópico do escrito se destinava a convencer o juiz de que o órgão teria legitimidade e interesse para isso. Argumento: a medida extrema poderia, afinal, ser decretada até mesmo de ofício (?).

Desde os primeiros contatos com o processo penal, e talvez mesmo antes disso, alimentamos uma espécie de lugar comum teórico sobre a atuação dos diversos sujeitos processuais:  o juiz julga, o advogado defende, o promotor acusa e a polícia investiga. Mas, definitivamente, estamos vivendo uma época em que tudo (inclusive esses papéis) parece estar meio fora de lugar, e apontando para a direção de um surto punitivista coletivo. O indivíduo acusado de delito agora tem que enfrentar, além da polícia, um Ministério Público que cada vez mais quer ser polícia – embora mantendo o status de parte-imparcial; um juiz que cada vez mais quer ser acusador e, agora, para o seu desespero, a própria Defensoria Pública, que se acha em condições de pedir a sua prisão preventiva.

Distorções dessa ordem me levam a crer que o apelo aos princípios e garantias constitucionais, sozinho, já não dá conta da árdua tarefa de construir um processo penal compatível com a democracia, como ingenuamente imaginávamos no alvorecer da ordem constitucional de 1988. É preciso enfrentar o “chão de fábrica” da dogmática, rejeitar de vez essa conversa de Teoria Geral do Processo e construir uma Teoria do Processo Penal com categorias conceituais (ação, jurisdição, processo) próprias e que, dentre outras coisas, ajude reorientar, sobre novas bases, os papéis desempenhados pelos diversos sujeitos.

Como já fizemos publicar em outro lugar (http://www6.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/7579/ 4334), o ponto de partida para um tal empreendimento bem pode ser uma crítica radical da própria pena criminal que lhe recuse legitimação racional a priori, vale dizer, que aponte na direção de uma concepção negativa ou agnóstica, nos moldes propostos por Zaffaroni. Em suma, que compreenda que pena é guerra e vingança, e que não pode e nem deve ser legitimada, mas precisa ser contida.

A partir dessa perspectiva, portanto, a ideia de vingança (e de sua contenção) deve ocupar um lugar central para qualquer pretensão de reorientar a atuação dos sujeitos processuais.

Evidentemente, trata-se de uma tarefa difícil, que exige uma boa dose de coragem para a desconstrução crítica de alguns lugares comuns a que estamos acostumados já há algum tempo, e de imaginação para propor novos caminhos, ainda que a sua implementação na prática (com todas as reformas legislativas que exigiria) seja muito improvável, pelo menos no curto e médio prazo.

O que gostaria de propor ao debate, portanto - da forma limitada que esse espaço permite, partindo, repita-se, da ideia de pena como vingança, seria o seguinte:

a) carreira única para o que hoje chamamos de Defensoria Pública e Ministério Público, com a alternância permanente dos membros nas funções de acusar e defender necessitados;

b) ação penal exclusivamente privada para qualquer crime em que não houvesse violência ou grave ameaça à pessoa - o acusador público só atuaria se se tratasse de vítima pobre;

c) ação penal pública condicionada à autorização da vítima para todos os demais crimes - incondicionada, em caráter excepcionalíssimo, quando ficasse clara a impossibilidade de a vítima autorizar a vingança;

d) ação penal privada subsidiária (com recursos próprios), sempre que o acusador público entendesse inviável o exercício da ação – e não só para os casos de inércia;

e) fim da figura do assistente de acusação.

f) investigação pela polícia, com a fiscalização e talvez até mesmo a participação proativa e permanente de acusador e defensor;

Explico. Ou tento, pelo menos.

Alternando-se com outros colegas nas funções de acusar e defender quem não pode pagar, os membros dessa carreira única estariam mais ou menos imunes aos efeitos deletérios dessa espécie de “religião institucional” que opõe os intocáveis de um lado e os defensores dos pobres do outro. Isso talvez ajudasse, também, a todos os operadores do direito, a construir uma visão mais tolerante em relação ao outro, com ganhos gigantescos para um sistema de justiça que se propõe a resolver conflitos.

Olhando para a ação penal como uma iniciativa da vítima, e já não de uma parte-artificial-imparcial-esquizofrênica, o juiz estaria mais inclinado a olhar para a acusação com desconfiança (como se espera num modelo que contemple o estado de inocência), compreendendo que quem está ali é apenas alguém querendo se vingar.

Resolver-se-ia de uma vez o problema do desequilíbrio e da falta de contraditório na fase de investigação, se quem investiga é (somente) a polícia, com a fiscalização da acusação e da defesa.

Longe de mim querer reinventar a roda. É possível, e muito provável, que haja aí problemas que não vejo, e é exatamente por isso que a crítica é sempre bem-vinda. Mas, como dito, às vezes é preciso ter coragem e imaginação para mudar aquilo que, a toda evidência, não está funcionando.

Enfim, talvez esse seja um caminho possível para que tenhamos uma polícia que investiga, um autor que acusa, um juiz que só julga e um defensor, por Deus, que volte a ocupar somente a bancada da defesa.


elmirElmir Duclerc é Promotor de Justiça em Salvador, Professor Adjunto de processo penal da UFBA.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            
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