A tentação da cruz

30/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 30/03/2015

“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus forte, zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.  E uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Bíblia Sagrada: Deuteronômio 5, 6-21; Êxodo 20, 2-17; Levítico 26, 1).

 Em 1799, comenta Victor Orozco, Francisco de Goya publicou um gravado ao qual intitulou «Lo que puede un sastre». O pintor espanhol desenhou uma árvore seca, cujo tronco e curtos ramos foram cobertos por uma túnica com capuz, representando assim a um santo, à maneira como imaginavam os crentes da época a esses homens e mulheres tocados pela divindade. Ao pé da figura central, uma jovem mulher lhe reza com devoção. Ao fundo se adverte uma procissão fervorosa, de quem vem a render-lhe preiteio, uns chorosos, outros suplicantes, esperançados, com os olhos para o céu ou cerrados, em um êxtase místico. Arriba, estão os traços de “Las Tres Furias”, as deusas mitológicas encarregadas de manter a ordem social e religiosa. Também, um homem, aparentemente um escravo, montado sobre uma coruja, símbolo da sabedoria.

As interpretações sobre esta complexa trama ideada por Goya choveram durante duas centúrias. Uma destaca que o pintor crava o afilado dardo da sátira no corpo das crenças religiosas. Se burla da fé, depositada em uma madeira disfraçada. O título não deixa lugar a dúvidas: em mãos de um «sastre», cualquer coisa mundana se transmuta em mágica, divina, milagrosa, onisapiente, onipotente. O desenho resume o fenômeno da alienação, mercê ao qual o indivíduo renuncia a seu próprio «eu» para entregá-lo ao fetiche religioso. E que não é senão uma confecção humana, ideal ou material: é o crucifixo, a relíquia da madre Teresa, a imagem ricamente adornada de um santo (a), Mahoma, Cristo, o totem da tribo, a estátua de madeira ou gesso da Virgem que opera milagres, o escapulário bendito, o céu, o inferno… e ao final, Deus.

O gravado de Goya motivou ao longo do séc. XIX uma indignada resposta dos defensores da fé. Os devotos sinceros e ingênuos sentiram que o mordaz desenho ofendia profundamente seus sentimentos religiosos e se burlava de suas crenças íntimas herdadas de pais e avós. Por sua parte, se os clérigos da igreja católica não enviaram ao audaz e traidor artista - que antes havia pintado quadros religiosos -  às chamas da fogueira santa, foi porque os tempos das queimas e os autos de fé já haviam passado de moda. O quadro sobreviveu e ficou para a história como uma das mais geniais denúncias contra a manipulação da credulidade das massas.

Não é necessário ser nenhum lince ou estar dotado de um desmedido sentido comum para dar-se conta de que a gráfica representação de Goya ainda diz muito do que significa hoje a identidade católica (sendo justo, de qualquer identidade religiosa), sobretudo no que se refere à barreira mental da idolatria, da frenética devoção e do (ab) uso em espaços públicos do símbolo cristão por excelência, a cruz. Que vantagem para a fé ou para a saúde da alma aporta aos cristãos a imposição do crucifixo, convertido pouco menos que em um elemento de decoração e adorno? Quantos dos que querem que esteja presente nas salas de aula ou prédios públicos obrigam a que seus filhos saiam de casa com um crucifixo ao pescoço ostensivamente exposto? Acrescenta algo o fato de obrigar ao não crente a ter que mirar constantemente em ambientes públicos a representação da cruz e o Crucificado? Não deveriam os fiéis meditar muito seriamente sobre a utilidade que historicamente representou para sua fé a pura imposição, antes mediante a força bruta e agora mediante certos símbolos? Se difunde adequadamente e com sentido um credo religioso dessa maneira? Donde está o plus de mérito ou de virtude ao pretender obrigar aos demais a contemplar gestos e signos que, em uso de idêntica liberdade, talvez não queiram ver ou tenham por incompatíveis com suas crenças, também respeitáveis? Por acaso não percebem que essa «fixação funcional» da cruz como representação da redenção da humanidade através da execução de um carpinteiro palestino é fruto de uma das capacidades mais extraordinárias de nosso cérebro: a de imaginar coisas que realmente não existem? Que classe de religião é essa?

Custa trabalho saber quanto há de distorcida ignorância e quanto de espesso maquiavelismo detrás da pretensão fortemente moralizante da religião, e inclusive da visão de que o cristianismo pode determinar (ou determina) os «valores morais»[1]. Mas, estimando com a devida probidade a advertência de Susan B. Anthony de desconfiar “daqueles que sabem tão bem o que Deus quer que façam, porque sempre coincide com seus próprios desejos”, estou convencido que qualquer cristão virtuoso e comprometido com a causa deveria reflexionar sobre essas questões com enorme e contundente distância crítica, ser mais humilde com e não fiar-se demasiado de suas próprias crenças, buscar o conhecimento antes que a superstição ou a ignorância deliberada, evitar o autoengano e as associações espúrias que difulminam a linha entre realidade e imaginação, entregar-se às evidências, intentar perceber que existe uma realidade alternativa, uma possibilidade de que esteja (radicalmente) equivocado, e rechaçar doutrinas, dogmas, símbolos ou valores morais que só contam com um respaldo empírico direto anedótico.

Por um lado, porque não resulta nada claro o prazer, a satisfação e/ou o benefício que os devotos cristãos podem obter ao ver os sítios públicos e comuns presididos pelo crucifixo que simboliza e dá sentido a sua fé (que com orgulho Paulo considerava «loucura» e os cristãos dos primeiros séculos proclamavam também com orgulho no «credo quia absurdum»). Pensam acaso que alguém vai seguir ou voltar ao redil religioso por mirar constantemente a representação da crucificação? Não se dão conta de que em tempos de exibicionismo obsessivo de crenças religiosas, todas sobre a mesma base de reafirmar-se em ser mais autênticas que as demais, a exageração do simbolismo com uma força inusitada, digna de outros séculos, prediz que a gente está insegura, que se queixa não somente do que  perdeu (que estaria em seu direito) senão também do que lhe ameaça (quando a gente tem medo, dispara)? Não sabem que suas crenças e símbolos, por definição, não são e nem podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado? Não lhes preocupa sequer o fato de que a religião consiste na lucrativa atividade de ensinar às pessoas a estar satisfeitas com «não entender» (R. Dawkins) e que a tendência cada vez maior a etiquetar-se e mostrar de forma ostentosa e chamativa determinado símbolo religioso frustra a possibilidade de que os indivíduos, enquanto indivíduos cidadãos, se reconheçam entre si como iguais?

Não sou religioso e não pratico nenhuma crença teísta, deísta ou animista sustentada por pensamentos mágicos acerca de um deus (deuses) ou sobre a mesma existência mística do ser humano[2]. Acredito na «criatura»[3] («desenhada»[4] por mecanismos evolutivos) e em minhas interações com pessoas religiosas e não religiosas por igual, traço uma linha divisória e restritiva, baseada não em suas crenças concretas, senão em seu grau de dogmatismo. Respeito a fé dos demais, e com mais motivo se a vivem e experimentam com certa congruência, cordura e sentatez (dos que sabem distinguir a falsa piedade da genuína religiosidade ou espiritualidade).

No entanto, considerando que a curiosidade é livre, o respeito pelas crenças alheias tem um limite e a reflexão sobre a religião uma atividade muito conveniente para qualquer que tenha uma mínima inquietude sobre os fenômenos que movem o mundo, admito que em temas como este me resulta francamente difícil entender aos que exigem que os símbolos religiosos se imponham contra vento e maré aos que não os queiram e aos indiferentes: é como crer que movendo o rabo de um cachorro vamos conseguir que seja feliz (J. Haidt). Em termos de apostolado me parece hipocrisia, misticismo e soberbia semelhante estratégia. Meter-se com os demais para defender as representações mundanas de Deus é como declarar o amor a marteladas, coisa de estúpidos, fanáticos e autoritários sem remissão.

Ao fim e ao cabo, sem o mágico encanto da «loucura» da fé (cuja virtude é precisamente sua irracionalidade, como dizia S. Kierkegaard), a cruz, como objeto de tortura especialmente doloroso e cruel, é um evangelho de desesperação; quero dizer, a crucificação é o que é (e a verdade, por brutal, incômoda e antipática que pareça, não deixa de ser verdade): para o crente símbolo supremo de sua religião, para o que não crê ou não sabe do assunto, uma cena de extrema, despiedada e descomunal violência... um ébrio culto à morte.

Por certo que representa a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico: que o emblema de uma religião seja um crucificado em sua cruz significa que aquela inscreveu a morte de Deus no coração de seu ritual. Ao agonizar, Jesus se converte em “proprietário do sofrimento e da morte” (P. Valéry) e transmuta estes em alegria: dor e ressurreição. O filho de Deus na cruz afirma o trágico da condição humana e a supera para acercar-se à ordem sobrehumana da esperança e do amor: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus Cristo um guia e um amigo que lhe ajude; e com esta condição, seu sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação, de “renovação da energia espiritual” (João Paulo II).

Um modo de pensar e sentir em que não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo para salvar a existência, convertê-lo em incentivo para uma verdadeira transformação. É o fracasso que leva à vitória e, como dizia Lutero, ao condenar ao pecador Deus assegura sua salvação: “Todo hombre se convierte en camino de la Iglesia, especialmente cuando aparece el sufrimiento en su vida” (João Paulo II)[5].  É a  a desdita cingida com o véu da «eloquência da cruz» que promete a ressurreição para apartar aos piedosos do dever de melhorar a condiçao terrenal. “Nunca es lo bastante fuerte, lo bastante grande”; e posto que abre as portas do conhecimento e da sabedoria, “es mejor cuanto más injusto”, dizia Simone Weil.

“Un cristiano es un hombre del otro mundo”. (Bossuet)


Notas e referências:

[1] Uma caricatura desta “falácia cristã“ é a história contada por Edmond Rostand, em sua comédia Chantecler, de um galo “que creía que gracias a su canto el sol salía todos los días”. Para mim, as religiões, e particularmente as três religiões monoteístas, são a negação total e absoluta do humanismo, isto é, da ideia de que qualquer concepção ética deriva de uma boa compreensão da natureza humana e da condição humana no mundo real. O que implica que “en los planteamientos humanistas sobre la bondad y sobre nuestras responsabilidades, bajo ningún concepto prevalecerán supuestos astrológicos o fabulosos, ni creencias sobrenaturales, ni animismo, politeísmo, o cualquier otra herencia del ignorante pasado remoto de la humanidad” (A. C. Grayling).

[2] Sublinho que ao não aceitar nenhuma das ideologias e categorias sem fundamento das diferentes religiões e seitas (monoteístas ou politeístas) organizadas e/ou praticadas pela humanidade, a questão de «crer» ou «não crer» em algo, em suas respectivas posturas e/ou postulados extremos, perde todo seu interesse e acaba por perder também seu sentido. Contudo, como diria Homer Simpson: “Que no me importe no significa que no lo entienda”.

[3] Assim as últimas e comovedoras meditações do Frei Girolamo Savonarola, o dirigente do partido dos pobres, perseguido, encarcerado, torturado e executado pela Santa Inquisição (em 23 de maio de 1498, na Piazza della Signoria de Firenze), precisamente um ano depois de que o Papa Borgia, Alejandro VI, desde Roma, "la Babilonia de todos los vicios", lhe houvera excomungado: “Contra Ti sólo he pecado, delante de Ti he hecho  el mal (...) Contra Ti sólo, precisamente porque me has mandado que te ame a Ti por Ti mismo y que refiera a Ti el amor de las criaturas, y yo he amado más a la criatura que a Ti, al amarla por sí misma. ¿Qué es pecar sino amar a la criatura por sí misma?” Para dizê-lo com as palavras de Spinoza: “El hombre es un Dios para el hombre”.

[4] Para que nos entendamos: ao usar o termo «desenho» não me refiro a nenhum tipo de postura «criacionista» ou de «desenho inteligente», senão a algo «desenhado» pela seleção natural». Na prática, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (R. Dawkins, D. Dennett).

[5] O sofrimento, não a alegria, passa a ser o centro da experiência humana: “Bienaventurados los afligidos, porque ellos serán consolados” (Las Bienaventuranzas); “Fazer o bem com o sofrimento e fazer o bem a quem sofre” (Papa Francisco, recordando as palavras de João Paulo II). Por isso há uma necessidade compulsiva de apoderar-se da desgraça dos demais, como se a própria não bastasse (P. Bruckner), e de intentar impor uma moral fundada no sadismo ou na glorificação demencial do sofrimento (e sua respectiva simbologia) como norma obrigatória a todo mundo. Aqui caberia recordar as palavras de Cicero: “Sentir piedad implica sentir envidia, porque si uno sufre por las desgracias de los demás, también es capaz de sufrir por su felicidad”. “Delectatio in felicitate alterius”, dizia Leibniz: “Disfruta con el placer de los que te rodean. Hay más nobleza de alma en gozar de la alegría de los demás que en afligirse por sus desgracias”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: ánimo anémico// Foto de: Ignacio Sanz // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ignaciosanz/2480936741 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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