Por Konstantin Gerber e Erick Beyruth de Carvalho - 11/09/2016
Os processos de impeachment no Brasil, de Collor e de Dilma, tiveram seus contornos definidos pelo STF, em grande parte para assegurar o devido processo legal. O desafio para estudo está em revisitar estes julgados e analisá-los em face dos parâmetros da Corte Interamericana, para fazermos um diálogo crítico entre o que aqui se decide e a necessidade de controle de convencionalidade.
Pode-se considerar o impeachment como um julgamento político-jurídico, em que se devem também ser asseguradas as garantias judiciais mínimas, como a de um juízo imparcial e da presunção de inocência. Além destes parâmetros, podem ser lembrados aqueles que recomendam uma motivação para a perda de direitos políticos.
A antecipação de voto foi o argumento levantado pelo presidente da Corte Interamericana, juiz Roberto Caldas, que ainda que esteja impedido de julgar casos que envolvam o Brasil, pronunciou-se sobre o processo de impeachment em curso, o que não nos parece uma atitude imparcial de um magistrado.
Tanto Roberto Caldas na Corte, quanto Paulo Vannuchi, na Comissão, foram indicados pelo governo do partido dos trabalhadores. Não é preciso estudar filosofia do direito para notar que as fronteiras entre o político e o jurídico nem sempre são muito claras.
O atual processo de impeachment guarda nuances relativas à mudança de entendimento do TCU, às competências do TCU e do Congresso Nacional, ao desengavetamento dos julgamentos das contas dos presidentes, ao instituto da referenda em que o vice-presidente também é responsável pela assinatura de Decretos, ao julgamento do TSE que era para levar o Temer junto, aos aditamentos infrutíferos para se incluir a corrupção da Petrobrás na acusação inicial das operações de crédito sem autorização legal, ao fato de uma porção de governadores fazerem tais malabarismos de securitização... Segundo levantamento, houve pedaladas por parte de 17 governadores[1]. Ainda não temos uma lei geral de controle externo apta a fixar critérios nacionais para derrubarmos a rodo os governadores de nosso país.
Violar direitos sociais também é crime de responsabilidade, mas isso não se leva em conta. E ainda que se possa defender o estado de necessidade de Dilma Roussef ao editar os tais decretos com créditos suplementares para fins de atendimento de programas sociais, não há crime de responsabilidade maior do que a sangria para o pagamento (não auditado) da dívida pública brasileira, para não dizer dos múltiplos desastres ambientais de seu governo.
Nesse sentido, há que se recordar o título de uma (das tantas) obras do jus-filósofo italiano Norberto Bobbio intitulada “Nem com Marx, Nem contra Marx” e adapta-la ao atual contexto político nacional, ao se situar não em defesa do (des)governo e da pessoa presidente da República, mas sim em defesa do Estado Democrático de Direito. Ou seja, não se trata de estar ao lado da Presidente ou das suas medidas, mas sim ao lado do respeito as instituições. Mas no Brasil, o privado, o familismo, o personalismo, o patrimonialismo... sobre a mistura entre privado e público, bem falaram em entrevista ao Nexo: Heloisa Starling e Lilia Schwarcz[2].
O protesto contra a corrupção dirige-se a pessoas determinadas, ninguém propõe reforma política para mais participação de pretos, indígenas e mulheres no Congresso ou regulamentação do lobby, por exemplo. Ninguém pede mais transparência em contratos, mais auditorias nos ministérios ou a instituição de uma Lei Geral de Controle Interno ou o reestabelecimento da Controladoria Geral da União.
Frise-se, portanto que, ao citarmos a dúplice fórmula consagrada pela Constituição Federal não o fazemos com o intuito demagogo ou retórico, por muitas vezes utilizada pelos parlamentares (dos dois lados) para justificar o seu posicionamento. O fazemos aqui para lembrar que o Estado Democrático é aquele em que “todo o poder emana do povo” e este tem o direito de participação na formação das decisões políticas do país. Porém, essa fórmula se complementa com a do Estado de Direito (rule of law) na qual todos devem observância à lei (inclusive e principalmente o Estado). Trata-se do governo das leis e não mais do governo dos homens.
Isto posto, ao se analisar o rito do impeachment sob a ótica do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nos chama atenção um aspecto particular: a aplicabilidade das garantias judiciais ao juízo político do impeachment.
Conforme já decidido pelo STF, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos possui status supralegal – está acima da legislação e abaixo das normas constitucionais – e, uma vez ratificados e internalizados, criam diretamente direitos para os indivíduos e operam a supressão de efeitos dos atos estatais que infraconstitucionais que se contrapõe à sua plena efetivação.
Diversas são as violações alegadas pela defesa da presidente Dilma em petição apresentada à Comissão Interamericana, porém, dentre elas, ganha especial relevo o (des) respeito às garantias judiciais do procedimento, em juízo (ainda que político-jurídico), de destituição de uma chefe de Estado e Governo.
Dentre as violações, estão: a garantia de um juiz imparcial livre de motivações externas, o dever de motivação das decisões, o desvio de poder na instauração do processo de impeachment e os vícios de motivação nas decisões de admissibilidade, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal, em que o povo brasileiro assistiu “bestializado” as mais variadas justificativas pela cassação do mandato da presidente eleita[3] (com fundamento na família e não na República: frise-se).
O STF “lavou as suas mãos” e se declarou incompetente para realização do controle judicial do processo, e afirmou que a questão deveria ser analisada pelo “juiz-constitucional” da causa, o Senado Federal[4].
O mais recente julgamento no Senado ultrapassou toda e qualquer observância aos preceitos do devido processo legal, uma vez que muitos dos Senadores – na função atípica de julgadores – não presenciaram as falas dos depoentes. Ora, talvez esta seja uma nova modalidade na pós-democracia[5], em que os julgadores não se dão ao trabalho de presenciar a oitiva das testemunhas.
Dispõe o art.8 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos que toda pessoa tem o direito a ser ouvida com as devidas garantias, em um prazo razoável e por juízes imparciais e competentes, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela ou na determinação de direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou qualquer natureza[6].
O que consagra o artigo 8º da Convenção são garantias que o indivíduo possui em face da atuação de qualquer órgão do Estado ou autoridade pública. Trata-se de estabelecer que procedimento de apuração de responsabilidade deva observar as garantias judiciais mínimas.
A alegação principal para a não observância das garantias judiciais pelas autoridades competentes reside no fato de que o impeachment seria um juízo meramente político. No entanto, já é consolidado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que o poder sancionatório, de qualquer natureza, exercido pela autoridade deve observar e respeitar as garantias judiciais.
Tal precedente deriva do caso Tribunal Constitucional versus Peru [7], em que foi tratada a questão do juízo politico exercido pelo Poder Legislativo em face de autoridades do Poder Judiciário e Executivo, ficando disposto que no exercício da função de juiz-constitucional, os Deputados e Senadores deveriam (e devem) atuar como um órgão imparcial e independente, cumprindo com as garantidas do devido processo[8].
A atuação do Congresso em caráter de juízo político não rompe com a separação dos poderes, mas trata-se de uma atuação atípica. Os congressistas, como juízes, devem observar todos os critérios relativos ao devido processo e as garantias judiciais, sob pena de que este não se torne uma arma contra o próprio Estado Constitucional, pois, o juízo político nada mais é do que um juízo análogo a um processo judicial, em que o Congresso se converte em juiz.
Diante disso, tem-se que o processo de impeachment deve estar sujeito ao controle jurisdicional nacional (via STF) bem como internacional (via Tribunais Internacionais)
Se o STF não faz esse diálogo entre o que se considera por respeito ao devido processo constitucional e o devido processo convencional, só resta aguardar eventual decisão da Corte Interamericana, para que no futuro tenhamos um desenho constitucional-convencional de impeachment no Brasil. A questão que fica no ar é sobre o direito de recorrer de sentença desfavorável, sobre como este direito será viabilizado ou não. Trata-se do direito de recorrer a juiz ou tribunal superior, discussão que já foi tratada pelo STF, quando do voto pelo Min. Celso de Mello nos Embargos Infringentes do caso Mensalão para o art. 8.2, h, da Convenção Americana.[9]
A história do Brasil é de golpes e contra-golpes e essa classe política daí reflete em grande parte a herança de uma estória não resolvida desde da ditadura, que além de representar o poder econômico, hoje também compõem os poderes midiático e religioso, o que Michel Temer soube bem aproveitar para transmudar o processo de impeachment em um processo de moção de retirada de apoio ao governo, o que é típico do parlamentarismo. O Brasil é um país semi-clepto-presidencialista, uma mistura de parlamentarismo com corrupção: bem-vindos à surrealpolitik!
Notas e Referências:
[1] MEDEIROS, Étore. Pelo menos 17 governadores pedalaram impunemente. Agencia Publica, disponível em: http://apublica.org/2016/06/truco-pelo-menos-17-governadores-pedalaram-impunemente/
[2] MIRAGLIA, Paula & PRADO, Guilherme. A dimensão pública e privada do impeachment
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/video/video/A-dimens%C3%A3o-p%C3%BAblica-e-privada-do-impeachment
[3] Para maiores detalhes ver a petição apresentada pelo Partido dos Trabalhadores. Disponível em: http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2016/08/denuncia.pdf
[4] Ver decisão monocrática no MS.34.193, na qual o Poder Judiciário afirmou a sua incompetência para realização de um controle judicial do processo de impeachment, afirmando que o “juiz constitucional” da causa é o Senado Federal.
[5] O termo pós-democracia foi cunhado pelo Juiz de Direito Rubens R.R. Casara. Para maiores informações sobre a violação do devido processo legal no rito do impeachment ver: http://justificando.com/2016/08/29/julgamento-do-impeachment-esta-nulo-pois-juizes-nao-participaram-da-colheita-da-prova-afirmam-juristas/
[6] Art.8. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
[7] Caso del Tribunal Constitucional versus Peru. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_71_esp.pdf. Acesso: 29.08.2016
[8] Idem.p.72
[9] STF, AP 470-MG, Voto do Min. Celso de Mello sobre admissibilidade dos embargos infringentes, pp. 25-26
. . Konstantin Gerber é advogado, doutorando e mestre em filsofia do Direito, PUC SP, onde integra os grupos de pesquisa Direitos Fundamentais e Filosofia Política do Direito.. .
. Erick Beyruth de Carvalho é Mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP, aonde é pesquisador pelo CNPq. Aluno de mobilidade na Universidade de Coimbra-PT. Integrante do Grupo de Pesquisa em Filosofia Política do Direito. Advogado. . .
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