A garantia da ordem pública é o fundamento que dá guarida para diversas segregações cautelares cotidianamente. Figurando dentre os requisitos que possibilitam a decretação da prisão preventiva, a garantia da ordem pública se faz presente em muitas decisões como a justificativa para se prender cautelarmente. Qual seria o motivo para tanto?
Mesmo existindo outras hipóteses previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal, o requisito da garantia da ordem pública é o mais utilizado para embasar a decretação da prisão preventiva.
Seria o caso de se existir um significado concreto para tal requisito. Algo definido e estruturado de sua significação. Um conceito concreto. Ocorre, porém, que a terminologia utilizada é demasiadamente ampla e abstrata, ensejando em diversas interpretações - e é justamente aqui que reside o problema.
Quando se fundamenta uma decretação de prisão preventiva, faz-se possível utilizar matreiramente o requisito da ordem pública para justificar o que o julgador ali entender cabível. Conforme aduz Alexandre Morais da Rosa, “àquele que conhece um pouquinho da estrutura linguística pode construir artificialmente tais pseudo requisitos, cuja falsificação – pressuposto -, diante da contenção, será inverificável” (ROSA, 2017, p. 585).
“Ordem pública” é algo demasiadamente aberto. O que vem a ser, de fato, a ordem pública? Inexistindo qualquer limitação semântica, fica fácil preencher o significado com a conceituação que melhor aprouver. Situações como o crime que causa grande repercussão, aqueles que se transformam em manchetes de jornal, ou ainda aqueles que são ditos graves diante da forma com a qual teriam sido cometidos, são exemplos vistos cotidianamente como fundamentos para se preencher o requisito da ordem pública e determinar a prisão preventiva.
Assim, o argumento construído acaba sendo um exercício simplório. Basta preencher o embasamento que caracterizaria o requisito “garantia da ordem pública” com algo que diga respeito às emoções, com algo que gere revolta e indignação, que impulsione aqueles sentimentos impulsionados pela ideia de vingança, inerentes do ser humano e facilmente afloráveis. Transmuta-se o pretendido direito penal do fato para aquele direito do autor.
O argumento (dentre alguns outros) de que a prisão preventiva para garantir a ordem pública sustentaria a “credibilidade das instituições”, por exemplo, é um dos que não se sustentam. Aury Lopes Jr. critica a utilização de tal requisito nestes termos, definindo-o como sendo uma falácia, quando evidencia que “nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção” (LOPES JR., 2013, p. 114).
Há também outros argumentos justificantes que visam erigir um sustentáculo para se utilizar o requisito da “ordem pública”, como por exemplo o do “risco de reiteração delitiva”. Da forma com a qual muitas vezes é utilizado, traduz-se em típico direito penal do autor. Aqui, em não tão raras vezes, o julgador se utiliza de uma espécie de vidência para fundamentar o decreto prisional, já que pressupõe que o acusado voltará a cometer crimes com base em uma forma de futurologia. É como fosse possível antever o que viria a acontecer enquanto o acusado solto. Nesta linha, a crítica de Aury Lopes Jr., quando destaca que esse “é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permanecer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível quanto a afirmação de que amanhã eu o praticarei” (LOPES JR., 2013, p. 115).
Poderia se apontar diversas outras aplicações semânticas para a terminologia da “ordem pública” – a jurisprudência contém várias delas. A questão é que a imprecisão é algo evidente, resultando assim nas mais diversas e peculiares leituras que se faz sobre a questão.
E haveria um conceito definitivo? Talvez seria o caso de fazer aqui outra pergunta: é possível definir e conceituar de forma precisa terminologias abertas e não concretas? Nesse mesmo tom de questionamento, Thiago Minagé explana que a decretação de uma prisão sob o fundamento da garantia da ordem pública não poderia constituir uma regra geral para tanto, vez que “devido a sua notória imprecisão quanto ao significado, sua utilização afronta de forma brutal o princípio da presunção de inocência” (MINAGÉ, 2015, p. 110). Assim, Minagé sustenta que não deve ser admitido um decreto prisional que se encontre pautado pela garantia da ordem pública com supostos fundamentos como “clamor público” ou “credibilidade da justiça”.
A tal da garantia da ordem pública está aí, vigente e assombrando o processo penal. Conforme aduz Eugênio Pacelli, “a se lamentar – e muito – que, tanto tempo depois e com a introdução de tantas alterações em matéria de prisão e de medidas cautelares, tenha se mantido a expressão garantia da ordem pública e econômica” (PACELLI, 2014, p. 555). Há assim de haver a devida problematização e, consequentemente, a superação de tal pseudorequisito, já que inexiste qualquer tipo de Pedra de Roseta capaz de decifrá-lo concretamente.
Notas e Referências:
LOPES JR., Aury. Prisões Cautelares. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013
MINAGÉ, Thiago. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2015
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 4ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017
Curtiu o artigo???
Confira aqui a obra O Direito pela Literatura: algumas abordagens do autor Paulo Silas Taporosky Filho publicada pela Editora Empório do Direito!
Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de: Captain Roger Fenton 1860 // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/762_photo/2233509492
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode