A sobrevivência da humanidade no Ser Humano

30/12/2018

Introdução.

A sucessão do tempo, o envelhecer de gerações, as mudanças geopolíticas e econômicas, a revolução tecnológica, a reinvenção do capitalismo e o nascimento de novas culturas; desafiam a sobrevivência da humanidade no Ser Humano.

Com o passar do tempo o mundo se transforma e com a transformação surgem os desafios naturais envolvendo os princípios elementares da austeridade de uma geração diante da relatividade dos comportamentos éticos sobre o que seja certo ou errado para as novas gerações. As alternâncias políticas influem no mapa de poder, fazendo com que o centro das decisões cambie segundo perspectivas econômicas, deixando as questões de ordem social, humanitária e ambiental a mercê da ética utilitaristas do sistema de exploração insustentável. A revolução tecnologia surpreende tanto pela maximização do lucro quanto pela agudez com que descarta o Ser Humano, tornando-o um subproduto contábil e numérico de um sistema impiedoso. A derrocada do socialismo real e a reinvenção do capitalismo gerou e gera um profundo desequilíbrio mundial, criando um ambiente global de morte em razão da forma como as sociedades se organizam para acessar os meios de produção e de distribuição dos bens e serviços necessários à garantia da dignidade dos Seres Humanos ou, ainda, por aniquilar os recursos naturais e os laços de solidariedade e respeito pela vida, em todos os sentidos e formas.

O Ser Humano, perplexo e confuso, observa a metamorfose política, econômica, social e ambiental do planeta, vendo a disputa das riquezas naturais suplantar o respeito à vida e às culturas humanas, mesmo as culturas essenciais ao equilíbrio das relações humanas (a ética, a solidariedade, a compaixão, a fraternidade) são abandonadas ou substituídas pela cultura dos números na bolsa de valores. O mundo vê, sem espanto ou indignação, emergir potências econômicas e submergir o desenvolvimento humano; compreendendo cegamente que há saída para a crise cultural e socioambiental do mundo pelo aumento no ritmo do crescimento econômico a qualquer custo, mesmo que a exploração possa resultar no sacrifício da humanidade do Ser Humano, das etnias ou dos ambientes naturais.

A defesa de uma sociedade livre, plural e sustentável, capaz de conviver com as mudanças socioculturais requerer, primeiro, que os Seres Humanos invertam os valores de “sociabilidade” vigentes; aprimorando a ética da relação entre os Seres Humanos e entre os Seres Humanos e a Natureza. Tal perspectiva requer a revisão dos valores relacionados com o “modelo” de Ser Humano que temos para o “modelo” de Ser Humano que valorize a experiência do “Ser” ao invés da busca frenética do “Ter”. Na busca do “Ser”, o Ser Humano poderá mergulhar na essência da vida e, com isso, irromper a humanidade para reconhecer a interdependência entre os Seres Humanos e entre os Seres Humanos e a Natureza, fazendo com que a coexistência promova o necessário debate sobre quais valores éticos devem prevalecer diante da realidade socioeconômica do Planeta. Por outro lado, na busca do “Ter”, a regra do “salve-se quem puder” ou as máximas “vão se os dedos e fica-se a mão” e “não se faz uma omelete sem quebrar os ovos”, apenas reproduzem a lógica da sobrevivência do mais forte e do mais esperto ou, ainda, o fundamento que aniquila o indivíduo como ser biográfico, diluindo-o na massa dos números, do coletivo, do sem importância – a lógica da sociedade que reconhece apenas o dinheiro e o poder como valores admiráveis no Ser Humano, constituindo um contraexemplo que acaba sendo seguido.

O enlaçar de todos os elementos ambientais do mundo resulta no postulado teológico do amor. A compreensão do amor é o âmago para responder às questões que envolvem os Seres Humanos quanto a (in)capacidade de respeitar a vida em todas as dimensões e de solidarizar-se com os demais Seres viventes do planeta.

Eu e o Outro: a sobrevivência da humanidade.          

É provável, no tumultuo da vida, que não haja tempo para perguntas; aliais, perguntar alguma coisa ao outro é difícil, imagine perguntar a si mesmo (perguntar à sua consciência). Em regra, o Ser Humano pouco ou nada reflete sobre a vida que o cerca, envolvido por uma ciranda ou embalado por uma cantilena, acaba robotizado e reagindo apenas aos estímulos pelos quais é condicionado – discordar é errado; fazer diferente é loucura; trajar uma vestimenta é rotulo social; oferecer carinho é pretensão de segundas intenções, ser ético é coisa de otário ... dentre outras percepções equivocadas, porém, dominantes no meio social.

O Ser Humano, com o transpassar do tempo, perdeu e perde pouco a pouco a humanidade. Por humanidade, entenda-se  “o sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos[1]. A ideia de benevolência em relação aos semelhantes exige “amor ao próximo”, uma atitude de ruptura com o sistema que desconsidera a subjetividade dos indivíduos; com abertura ao diálogo e o respeito às culturas.  

Zigmunt Bauman, ao escrever sobre a dificuldade de amar o próximo[2], explica que, geralmente, a devoção ao outro gera um conflito entre os interesses próprios e a busca da felicidade pessoal, pois sempre será necessário fazer uma escolha entre o “Eu” e o “Outro”.

A invocação de ‘amar o próximo como a si mesmo’ diz Freud (em O mal-estar na civilização) é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. E também o que mais contraria o tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca da felicidade. O preceito fundador da civilização só pode ser aceito como algo que ‘faz sentido’ e adotado e praticado se nos rendermos à exortação teológica credere quia absurdum – acredito porque é absurdo.

Com efeito é suficiente perguntar por que deve fazer isso? Que benefício me trará? para sentir o absurdo da exigência de amar o próximo – qualquer próximo – simplesmente por ser um próximo. Se eu amo alguém, ela ou ele deve ter merecido de alguma forma. ‘eles o merecem se são tão parecidos contigo de tantas maneiras importantes que neles posso amar a mim mesmo, e se são tão mais perfeitos do que eu que posso amar neles o ideal de mim mesmo.... Mas se ele é um estranho para mim e se não pode me atrair por qualquer valor próprio ou significação que possa ser adquirido para a minha vida emocional, será difícil amá-lo’. Essa exigência parece ainda mais incômoda e vazia pelo fata de que, com muita frequência, não me é possível encontrar evidências suficientes de que o estranho a quem devo amar me ama ou demonstra por mim a mínima consideração. Se lhe convier, não hesitará em me injuriar, zombar de mim, caluniar-me e demonstrar seu poder superior.      

Vê-se, a partir das observações de Bauman, que a premissa “amar o próximo” tornou-se um mandamento (ou uma obrigação) cuja probabilidade de ser obedecida é infinitamente menor que qualquer outra regra de convivência social ou ética; uma vez que exige do Ser Humano a adoção de um preceito que contraria a “natureza” animalesca do Ser Humano – o Ser Humano, por natureza, busca a proteção individual em detrimento dos outros Seres Humanos, pois, o outro constitui um perigo, uma ameaça.

Bauman (2004, p 160), afirma, ainda, que “aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana, assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente descobertas, são apenas uma lista (sempre incompleta) de notas de roda pé a esse preceito. Se ele fosse ignorado ou abandonando, não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre sua incompletude. Logo, embora o preceito amar o próximo esteja contido nos escritos sagrados, trata-se, também, de um fundamento racional de sociabilidade e de sobrevivência do Ser Humano.

Amar próximo é um desafio que exige, antes de tudo, amar a si mesmo. Amar a si mesmo requer o desenvolvimento do auto reconhecimento, da compreensão sobre quais estímulos geram dor ou felicidade. O auto reconhecimento é condição sem a qual é impossível amar o próximo. Não se pode amar o outro sem amar a si mesmo – não se pode amar o outro sem se reconhecer como um Ser capaz de errar, de acertar e de promover o auto perdão. Para ir ao encontro do outro é necessário realizar um encontro consigo próprio, avaliando as ações e considerando as mudanças de comportamento que são necessárias à socialização com os demais indivíduos.        Portanto, para amar o próximo é fundamental, ante de tudo, a existência do amor próprio. Não se pretende criar “estruturas” ou “estamentos” condicionais, como se estivéssemos falando de etapas ou fases (primeiro desenvolvo o amor próprio e apenas depois o amor ao próximo), pois, sabe-se que amar e viver constituem um processo no qual estamos envolvidos e aprendendo cotidianamente, no protagonismo de “Ser” e de “Estar” aberto aos valores do mundo.

É matar ou morrer: a ética da confiança.

Suponha, por hipótese, que o postulado do amor próprio e do amor ao próximo seja concretizado. Nesse caso, o amor suplantaria a desconfiança? Nas situações de disputa, as partes agiriam com ética, confiando que tanto um quanto o outro faria todo o possível para evitar a dor ou o sofrimento reciproco? Como ficaria a “lei” do mais esperto, do mais forte?

A sobrevivência da humanidade no Ser Humano exige, além da capacidade de amar, a construção da ética da confiança. Isto é, poder acreditar que nos casos de uma aproximação entre dos Seres Humanos ou entre um Ser Humano e outros Seres Vivos, haverá respeito suficiente para que exista confiança nas informações e nas atitudes.

Atualmente, como bradava Cazuza “se escolhe matar ou morrer, e assim nos tornamos brasileiros” (O tempo Não Para, 1988). O encontro com o outro é sempre ditado por uma preparação prévia (reuniões, estratégias, contatos), como se o outro fosse o inimigo a ser batido, destruído ou aniquilado. Vigora entre os homens o postulado da desconfiança. Não é incomum ouvir dos genitores que o filho, em uma eventual confusão de escola, deve bater no outro, pois, caso apanhe será surrado em casa. Crescemos imersos na cultura da violência, da disputa, da vitória a qualquer preço e da desconfiança em relação ao outro.

A desconfiança gera uma sociedade de Seres Humanos frios, calculistas e ardilosos. Em tais circunstâncias, o homem intenta sobreviver a qualquer custo, não importando o preço ou mesmo a desgraça do outro ou do ambiente em que coabita. Para Balman (2004, p. 112), caso a geração atual fosse leitora dos clássicos seria possível concordar com Leon Shestov, filósofo russo da Sorbonne, para quem a moral eterna do relacionamento entre os homens é homo homini lupus, afirmando que em cada um de nós há um lobo, ou seja, o homem é o lobo do próprio homem, capaz de destruir e de provocar medo.

Ao que parece, crescemos com o compromisso de (sobre)viver a qualquer custo, criando artifícios (como mentiras e ilusões); capazes de suplantar a desconfiança e o medo do “Outro” na relação interpessoal. O Ser Humano, assim, parece acreditar, primeiro, que nas relações sociais “vale tudo” para conquistar a confiança do “Outro”, incluindo a dissimulação e, segundo, que na lógica das relações (pessoais, comerciais, ambientais, culturais e trabalhistas), a coexistência e a busca do consenso não são possíveis, restando apenas a dicotomia de matar ou morrer.

Aliais, esclareça-se, que “matar” pode ser sinônimo, por exemplo, de relações do tipo “ganha-ganha” ou “Eu ganho e o Outro perde”. Sempre há quem pergunte: “o que Eu ganho na relação com o Outro? ”. O homem do século XXI não compreende uma única relação que não esteja pautada no resultado, seja um ganho econômico ou social, pois, uma relação, mesmo que de amizade, deve resultar em algum tipo de proveito. A aproximação de um Ser Humano em relação ao “Outro” é sempre realizada com o objetivo de alcançar algum proveito e, a relação perdurará enquanto os proveitos forem suficientes para alimentar a relação de “amizade”, de “trabalho”, de “amor”.   

Conclusão (se fosse possível).

O Ser Humano e a sua humanidade estão pressionados, tendo no horizonte apenas os contra valores da sociabilidade. O Ser Humano é motivado a) a aplicar a ética utilitarista, que usa e depois descarta o outro (seja um Ser Humano ou um Ser Vivo); b) a cultuar o modelo de um Ser Humano que busca “Ter” no lugar de “Ser”, validando relações pautadas na lei do mais forte, na lei das aparências; c) a desconfiar das relações humanas, fixando com regra que o outro é sempre um perigo e que, por isso, não deve ser amado ou respeitado e, d) a validar que a única regra possível de relacionamento entre os Seres Vivos é a regra de que ou se mata ou se morre.

Contudo, precisamos inverter a lógica posta para reconhecer que existem outras formas de relacionamento entre Seres Humanos e entre os Seres Humanos e os demais Seres Vivos; formas pautadas no diálogo, na compreensão, na reciprocidade, no respeito e no mútuo reconhecimento da interdependência solidária e fraterna.

O desafio, contudo, não é simples, já que é preciso resolver duas questões elementares; quais sejam: a) cuidar da subjetividade pessoal, tratando dos dilemas e dos desafios que impedem a compreensão do “Eu” e o desenvolvimento do amor próprio e, b) amar o próximo (seja um Ser Humano ou outro Ser Vivo), rompendo as barreiras da ética utilitarista e buscando um diálogo que seja capaz de alcançar o coração do “Outro”. Nesse caso, em relação aos desafios para realizar o diálogo, o escritor Português Amadeu Inácio de Almeida Prado[3] sentenciou acerca do problema ao escrever:

Dizer alguma coisa para outra pessoa: como podemos esperar que aquilo possa surtir efeito? O fluxo de pensamentos, imagens e sentimentos que passa por nós tem uma força tal que seria um milagre se não inundasse simplesmente todas as palavras que outra pessoa nos diz, relegando-as ao esquecimento, a não ser que coincidentemente, muito coincidentemente, combinem com as nossas próprias palavras.

É dizer, por arremate, manter a humanidade no Ser Humano é uma das chaves elementares para que o mundo de hoje e o mundo do futuro seja viável. A humanidade não se realiza sem compaixão própria e muito menos sem compaixão com o próximo. Do contrário, estaremos concretizando a máxima homo homini lupus.      

 

Notas e Referências

[1] Definição básica em atenção às características e limitações que envolvem a natureza da coluna.

[2] BAUMAN, Zigmunt. Amor liquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

[3] Disponível em https://www.pensador.com/autor/amadeu_inacio_de_almeida_prado/. Acesso em 28 de dez. 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Paraty Natureza // Foto de: Semilla Luz // Sem alterações

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