A Soberania dos Veredictos e as (des)medidas propostas para o Tribunal do Júri

19/04/2019

O pacote anticrime proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, no último 04 de fevereiro apresenta uma série de sugestões para alteração de dispositivos penais e processuais penais, tanto nos próprios códigos vigentes quanto em legislação esparsa.

Diante da ausência de exposição de motivos que possam servir como sustentáculo para a demonstração da necessidade das respectivas alterações, faz-se necessária ampla discussão no âmbito acadêmico para que se possa analisar não apenas a pertinência dos institutos apresentados, mas principalmente a constitucionalidade e coerência destes com o ordenamento jurídico.

Nessa oportunidade, é invocada para análise, especificamente, uma das propostas concernentes ao que ganhou o nome de: Medidas para aumentar a efetividade do Tribunal do Júri.

Aqui se chama à análise das alterações propostas ao art. 492 do Código de Processo Penal, cuja redação é a seguinte:

"Art.492...

I-...

e) determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

...

§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.

§5º Excepcionalmente, poderá o Tribunal de Apelação atribuir efeito suspensivo à apelação, quando verificado cumulativamente que o recurso:

I - não tem propósito meramente protelatório;

II - levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.

§6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente no recurso ou através de petição em separado dirigida diretamente ao Relator da apelação no Tribunal, e deverá conter cópias da sentença condenatória, do recurso e de suas 6 razões, das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade, e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia."

Do texto proposto, saltam aos olhos, ao menos em uma análise perfunctória, duas questões, no mínimo, inusitadas: a primeira diz respeito à execução provisória da pena após a condenação em primeira instância, já a segunda, aos requisitos para concessão de efeito suspensivo à Apelação interposta.

A referida redação parece ter surgido a partir do precedente do STF no HC 118.770/SP, no qual, ao interpretar o princípio da soberania dos vereditos (Art. 5º, XXXVIII, c, da CR/88), entendeu pela possibilidade da execução da pena logo após a condenação pelo Tribunal do Júri.

Vale dizer que neste habeas corpus, o que se discutia era o constrangimento ilegal consubstanciado na negativa de o réu recorrer em liberdade sob fundamentação precária (o que afronta o art. 93, IX, da CR/88), sendo certo que a superveniência de condenação não teria o condão, por si só, de justificar a mantença do paciente no cárcere.

Todavia, na linha do entendimento do eminente Min. Roberto Barroso, o fato de a condenação advir de um julgamento perante o Tribunal do Júri justificaria a execução da pena, sobretudo por se tratar de uma decisão soberana, ainda que suscetível a recurso.

Em síntese, restou decidido que “A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d ). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c ), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso.”

Nessa mesma toada é o Enunciado n. 14 do FONAJUC (Fórum Nacional dos Juízes Criminais) que consigna que “o réu condenado pelo Tribunal do Júri deve ser imediatamente recolhido ao sistema prisional a fim de que seja iniciada a execução da pena em homenagem aos princípios da soberania dos veredictos e da efetividade processual”.

Em suma, ambos os fundamentos - os quais possivelmente deram origem à proposta em questão - fazem alusão à possibilidade de recolhimento automático à prisão quando houver condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente de fundamentação.

A problemática se torna ainda mais relevante quando nos atentamos para o fato de que se trata de expressa alteração da natureza da custódia após a condenação do réu pelo Conselho de Sentença, deixando-se de se tratar de prisão preventiva carente de fundamentação conforme artigo 312 do CPP para execução imediata da pena, de maneira automática.

Ademais, ainda no que diz respeito à prisão, vale dizer que a referida proposta legislativa, em vez de desconstruir, ou ao menos corroborar o já lamentável entendimento firmado quando do HC 126.292/SP, o contraria na medida em que permite a execução provisória da pena antes mesmo do esgotamento da instância originária, inovando por legislação ordinária, recente e polêmica discussão travada no Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, propõe o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que já em primeira instância, seja iniciada a execução da pena. Para mais da inconstitucionalidade denunciada por diversas vezes no âmbito acadêmico sobre a execução provisória após o esgotamento da segunda instância, tal entendimento é ainda mais antijurídico na medida em que além de fulminar o princípio da presunção de inocência, contraria a jurisprudência do Superior Tribunal Federal.  

Vale consignar também a subversiva interpretação dada ao princípio da soberania dos veredictos (art. 5° inciso XXXVIII, da CR/88) invocado para justificar a prisão após a condenação em primeira instância. Isso porque o instituto do Júri nasceu como uma garantia de o réu ser julgado por seus pares, sendo que o princípio em comento subsiste tão somente como limitador da atuação jurisdicional em segunda instância. É por essa razão que, ao ser devolvido ao Tribunal o conhecimento do caso penal, poderão ser revistos tão somente alguns pontos da decisão tomada pelo Conselho de Sentença, conforme dispõe o artigo 593 do Código de Processo Penal e a Súmula 713 do STF.

Dessa forma, a soberania dos veredictos pode ser definida como a impossibilidade de a decisão proferida pelo Conselho de Sentença ser substituída por outra de natureza distinta. Logo, não pode o Tribunal proceder a um reexame da responsabilidade penal em sentido diverso daquilo que foi decidido no Júri.

Entretanto, por mais que se trate de atuação limitada e pontual, há previsão legal expressa na alínea “d” do inciso III do artigo 593 do Código de Processo Penal, para que seja interposto Recurso de Apelação, pleiteando que a segunda instância desconstitua todo o procedimento do Júri se comprovado que a decisão dos jurados mostrou-se manifestamente contrária ao material probatório produzido nos autos, declarando sua nulidade e determinando a realização de nova Sessão de Julgamento. Persiste também nas demais alíneas, hipóteses de cabimento visando a declaração pelo Tribunal de nulidade posterior à pronúncia, erro quando da aplicação da pena ou caso o Juiz-Presidente sentencie contrariamente à decisão dos jurados.

Assim sendo, já salientado que o princípio da soberania dos veredictos não implica na irrecorribilidade dos julgamentos, não há que tomá-lo como pilar suficiente à sustentação da prisão automática após a condenação pelo Júri, observando-se que através das do que dispõe o artigo 593 do Código de Processo Penal pode a instância revisora até mesmo anular todo o procedimento, determinando que o réu seja submetido a novo julgamento.

Retomando o teor do HC nº 118.770/SP, consta do voto do Min. Barroso que “(...) interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas”. Contudo, sob a égide das diretrizes estabelecidas pela Constituição de 1988, o entendimento referido não basta para legitimar a execução da condenação proferida no Tribunal do Júri.

Isso porque em um contexto de constitucionalização do Direito, o processo penal deve se afastar do discurso do utilitarismo processual e buscar a efetiva tutela de direitos fundamentais, inclusive aqueles individualizados que dizem respeito ao acusado. Logo, a melhor hermenêutica para a aplicação do princípio da soberania dos veredictos bem como da presunção de inocência não implica em uma análise excludente, afinal, é perfeitamente possível que seja respeitado o instituto do Júri sem que isso implique em uma inconstitucional prisão em primeira instância. Por tais razões, a invocação de direitos fundamentais que dizem respeito à coletividade, embora reconhecidamente merecedores de tutela, não implicam em uma oposição ao direito de liberdade do indivíduo.

Também sobre a necessidade de conciliar Na perspectiva do Estado Democrático de Direito, destaca BADARÓ:

Possibilitar a execução automática após a condenação pelo Conselho de Sentença se traduz em tolhimento do réu de uma de suas garantias mais básicas, qual seja, a de ter o status libertatis mantido até o trânsito em julgado da condenação.

Nessa toada, não é demais destacar que o recurso não é meio de impugnação autônoma, mas sim integrante do próprio processo. Logo, absolutamente desarrazoado o início do cumprimento de uma pena imposta por uma decisão que ainda é suscetível a reforma, invalidação, esclarecimento ou integração dentro do âmbito do próprio processo.

Sobre o tema bem nos define BADARÓ:

Recurso é o meio voluntário de impugnação das decisões judiciais, utilizado antes do trânsito em julgado e no próprio processo em que foi proferida a decisão, visando à reforma, invalidação, esclarecimento ou integração da decisão judicial.

Assim, observamos que se trata o Recurso, aqui tido como instituto jurídico, sobretudo em Processo penal, de mecanismo de correção de erro, que visa sanar eventual prejuízo a parte ou ainda demonstrar que os benefícios do réu não foram lhe conferidos em sua integralidade. Em simples interpretação, trata-se de garantia do jurisdicionado de ter meios para exercer controle do furor punitivo estatal, principalmente em se lidando com bem jurídicos tão relevantes como a liberdade.

Portanto, de maneira clara e límpida, os meios recursais se afirmam como salvaguarda do réu em detrimento da pretensão de punir, um escudo à mão pesada do Estado, a possibilidade de que o réu detém de exigir o reexame de ato decisório, estando prevista expressamente em nosso artigo 5°, inciso LV da Constituição da República.

Considerar a execução imediata da pena após a condenação do réu pelo Conselho de Sentença mostra-se completamente incompatível com as diretrizes de um Estado Democrático de Direito visto a óbvia necessidade da obediência ao Duplo Grau de Jurisdição, o necessário reexame do ato decisório por um juízo diferente daquele que inicialmente analisou a situação fático-jurídica.

O Duplo Grau de Jurisdição além de ser caracterizado pelo direito de recorrer, tem como pressuposto inerente um modelo de sistema judiciário no qual o mérito das decisões podem ser objeto de provimentos judiciais diversos. Portanto, não há razão para a execução de uma sentença que sequer é definitiva.

Veja-se o que ensina PACELLI:

Se é verdade que em um Estado de Direito o reconhecimento das nulidades, ilegalidades ou injustiças das decisões judiciais deveria ser sempre uma preocupação de todos e do próprio órgão estatal, não menos verdadeiro é o fato de que a jurisdição, enquanto Poder Público, devem atender às expectativas de solução dos conflitos a ela encaminhados. A jurisdição deve, no caso concreto, dizer o direito. E é até possível que, ao fazê-lo, não sejam efetivamente resolvidas as pendências (individuais, coletivas, sociais) instaladas entre os litigantes. Mas tal fato jamais poderá ser debitado à conta da ausência da função jurisdicional, pois, quando isso acontecer, não é mais de um Estado de Direito que estaremos falando.

Não há que falar em Devido Processo Legal em Processo Penal ao conferir o falso status de imutabilidade a sentença condenatória, sendo que na verdade, existem formas de processuais para que ela seja reformada. Portanto, o Conselho de Sentença, por mais que munido de soberania em seu veredicto, se transpõe em ato decisório através de sentença proferida por um Juiz Togado, sendo tal ato, passível de revisão/alteração/invalidação por uma instância revisora.

Assim, justificar a execução automática da pena após condenação pelo Tribunal do Júri se mostra como argumentação precária e absoluto simplismo jurídico.

Soa ainda pejorativa a hipótese de a apelação ser considerada “meramente protelatória”, sobretudo porque além de ser o meio pelo qual é possível desconstituir uma condenação injusta, a apelação também diz respeito ao múnus constitucional dos advogados de exercer tecnicamente a defesa do jurisdicionado cuja liberdade está em xeque.

A alteração proposta para a concessão de efeito suspensivo traz também outros pontos relevantes, mormente em relação aos requisitos impostos. Atualmente, a atribuição excepcional de efeito suspensivo aos recursos que não o tem naturalmente é condicionada à verificação de fumus boni iuris e periculum in mora, regulamentados pelo CPC/15 no parágrafo único do art. 995 da seguinte forma: “A eficácia da decisão recorrida poderá ser suspensa por decisão do relator, se da imediata produção de seus efeitos houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, e ficar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso”. Com a nova redação proposta pelo Ministério da Justiça, questiona-se: subsistirão os requisitos do CPC? Cumulativamente ou não aos do CPP?

Pela análise do dispositivo é possível extrair que, ainda que haja convincente demonstração dos requisitos do art. 995, parágrafo único do CPC/15, a concessão de efeito suspensivo pode ser indeferida sob o fundamento de que o recurso é “meramente protelatório”.

E, voltando ao suposto “propósito meramente protelatório”, tal requisito é colocado à discricionariedade dos julgadores, pois, a depender da visão do Tribunal, qualquer recurso poderá ser considerado protelatório. Entretanto, repisa-se, considerar o recurso de Apelação, o recurso por excelência, um meio recursal meramente protelatório significa em última análise tolher o jurisdicionado de uma garantia constitucional absolutamente fundamental.

Por fim, é importante que se atente aos efeitos práticos da alteração sugerida pelo Ministério. Em que pese a necessidade de haver uma resposta penal mais rápida, sobretudo para a prática de crimes violentos, a relativização dos direitos fundamentais, fundado em um discurso policialesco não nos parece o melhor caminho.

Veja-se que, de acordo com a proposta legislativa, ainda que o réu tenha respondido todo o processo em liberdade, após a condenação pelo Tribunal do Júri, ele será automaticamente recolhido ao cárcere, salvo a excepcional possibilidade de que se reconheça questão que pode ser revista em apelação. Ou seja, haverá um incremento absurdo no número da população carcerária que, sabidamente, é submetida a um sistema, há muito, precário.

Ademais, é possível supor que a excepcionalidade da concessão de efeito suspensivo possivelmente induzirá o peticionamento incidental em massa, o que pode gerar uma vulgarização do indeferimento: basta que Tribunal fundamente a inexistência de questão substancial.

Continuar demandando ao Direito Penal a solução de problemas sociais extremamente complexos se traduz em discurso sobejamente simplista e inócuo, vez que já tal emergencialismo não se mostrou (e não se mostra) como medida resolutiva às questões relativas à reiteração delitiva. Tais questões perpassam por searas distintas e extremamente distantes do Direito Penal, envolvem ações governamentais conjuntas no que concerne à educação, saneamento básico, economia, assistencialismo social e outras. Jamais pode-se imputar ao processo penal a tarefa de extirpação ou prevenção de práticas criminosas, sobretudo pelo risco de afetação à liberdade individual.

A respeito traz MINAGÉ:

Desse modo deve se utilizar da razão para limitar e, ao justificar ou idealizar a atuação do poder punitivo, ainda, quanto ao processo penal, deve funcionar, assim como o Direito Penal, como limitador do poder punitivo do Estado e garantia dos direitos individuais, certo de que, o que necessita de legitimação é poder de punir do estado, é a intervenção estatal e não a liberdade individual.

Por tais razões, a medida para que haja uma justiça mais célere jamais residirá na implementação de um discurso de lei e ordem, visto que além de relativizar direitos fundamentais essencialmente protegidos pela Constituição de 1988 e que orientam (ou ao menos deveriam) todo o ordenamento processual penal, peca ao negligenciar os efeitos a longo prazo.

 

 

Notas e Referências

BADARÓ, Gustavo. Manual dos Recursos Penais – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, 3° Ed.

MINAGÉ, Thiago. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição – O contraditório como significante estruturante do processo penal – Santa Catarina: Empório do Direito, 2017, 4° Ed, p.184.

PACELLI, Eugênio – Curso de Processo Penal – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, 13° Ed, p.831/832.

 

 

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