Certamente uma das questões mais complexas da chamada criminalidade econômica diz respeito à responsabilização dos sócios por condutas omissivas lesivas ao meio ambiente, os seus contornos e limites.
Para sair do ponto comum teórico que os debates acerca da questão costumam se situar, será feito um paralelo com o tratamento dispensado aos sócios omissos sob a ótica da responsabilidade civil, para então refletir, de forma crítica, a responsabilidade penal desses mesmos agentes, em situações de danos ambientais ocasionados por pessoas jurídicas.
No tocante a responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, decorre de um ilícito mormente ocorrido dentro da esfera privada e que possui efeitos principalmente na esfera particular dos indivíduos, devendo o prejudicado provocar o Poder Judiciário para que ocorra a reparação efetiva do dano.
Já a responsabilidade penal tem o fundamento principal na violação a norma de direito público, sendo o maior afetado, na grande maioria dos casos, a sociedade em si.
Por ser a ultima ratio, as normas do direito penal têm que ser interpretadas de forma restritiva, sendo aplicadas em apenas último caso.
Ocorre que, os dispositivos iniciais da Lei 9.605/98 preveem uma aplicação direta dos sócios por danos causados ao meio ambiente, surgindo alguns questionamentos, como por exemplo: se na seara civil a responsabilização do sócio é mais dificultosa pela existência do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, por que no âmbito criminal, onde a questão não é estritamente patrimonial, a sua responsabilização se torna mais facilitada?
Apesar de minoritária, Elida Séguin[1] sustenta que o art. 4.º da LCA expressamente admite a desconsideração da personalidade jurídica sempre que ela for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do Meio Ambiente, conforme valor fixado na execução civil da sentença (art. 20 parágrafo único da LCA). Deve ser comprovada a fraude contra o credor e que a personalidade jurídica esteja sendo usada para salvaguardar os bens dos sócios. Provada a simulação, a disregard theory pode ser aplicada no caso de insuficiência do patrimônio da empresa, pois a responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a da pessoa física, que da atividade da primeira tira proveito.
Em outras palavras, para a doutrinadora, a aplicação da desconsideração prevista na LCA depende necessariamente da comprovação do desvirtuamento da pessoa jurídica da empresa e não só a insuficiência de bens para reparar o meio ambiente.
Ocorre que, para grande maioria dos doutrinadores o abuso do direito ou desvio de finalidade independe para a responsabilização dos sócios, o que viola diretamente o principio da ultima ratio.
Ora, se para a responsabilização civil dos sócios por condutas omissivas geradoras de danos ambientais, exige-se um certo rigor, com muita mais razão deve-se exigir para a atribuição da responsabilidade penal, que pode acabar por privar o bem mais valioso do agente, a sua liberdade.
Bem verdade que delitos empresariais, por se tratarem muitas das vezes de crimes ocorridos “entre quatro paredes”, carecem de testemunhas, rastros e vestígios.
Deste modo, o Estado, mesmo com todo seu aparato material e humano se declara hipossuficiente para solucionar tais delitos. Tanto é verdade que, foram criadas as obrigações de identificação dos clientes e manutenção dos registros – know your client – do Art. 10° da lei 9613/98, e de comunicação de operações financeiras suspeitas ao órgão de inteligência – disclosure – do Art. 11 do mesmo diploma legal[2], além dos meios de produção de provas excepcionais – dentre eles a colaboração premiada – trazidos pela Lei 12.850/2013.
Esta dificuldade de produzir provas decorre, muitas das vezes, em decorrência da divisão estruturada, em camadas, de tarefas existente nas estruturas empresariais modernas, sendo, por esse motivo, problemático determinar a quem os delitos cometidos pelas “empresas” são imputáveis.[3]
Acerca do tema, aduz Heloisa Estellita:
“O modelo de responsabilidade penal acolhido em nosso direito positivo tem por referência a pratica da conduta típica antijurídica e culpável por um indivíduo agindo, na maioria das vezes, sozinho. Nessa pessoa reúnem-se os atributos da posse da informação, do poder de decisão e da prática de uma conduta executiva. Daí que a primeira pergunta diante de um caso concreto seja, normalmente, a seguinte: quem praticou a conduta típica?
A resposta a esta pergunta simples, mas fundamental, pode ser laboriosa no âmbito da criminalidade de empresa, isso porque são elementos constitutivos do conceito de empresa a pluralidade de agentes e organização, o que implica dizer que se tratará, normalmente, não de um só indivíduo sozinho praticando um crime, mas do envolvimento de diversas pessoas atuando em ambiente de divisão de tarefas e de funções, de forma normalmente coordenada e estruturada em camadas hierárquicas.”[4]
1 – RESPONSABILIDADE PENAL DO SÓCIO
Muito se discute em até que ponto o sócio de uma empresa é responsável pelas condutas criminosas que ocorrem no âmbito empresarial ou em virtude dele.
O primeiro ponto a se pontuar é que, o Código Penal pátrio, em seu artigo 18, expressamente adota a responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (art. 18 do CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo.
Nesta esteira, não pode o sócio ser responsabilizado por todos os injustos penais que ocorrem dentro da empresa, tão somente pelo cargo que ocupa. É absolutamente necessária a demonstração de sua relação psíquica com aqueles fatos, no que tange ao conhecimento dos elementos típicos – elemento cognitivo - e a vontade de executar ou colaborar com sua realização – elemento volitivo.[5]
Deve-se analisar, em primeiro momento, se o cargo ocupado é um cargo de gestão ou não, em seguida, se naquele cargo, o sócio teria ou não gestão sobre aquela atividade, caso positivo, se ele poderia ou não, de alguma forma, impedir aquele acontecimento.
Sobre o ponto, imperiosa é a leitura do artigo 29, caput, do Código Penal, que aduz que “todo aquele que concorrer para o crime incide nas penas a ele cominadas”. Ora, concorrer significa contribuir causalmente, nos termos do artigo 13, caput, do Código Penal. Em outras palavras, o resultado danoso de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa e, esta pode ser compreendida como a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Sobre o tema, sugere-se a leitura do inteiro teor do Acórdão proveniente do julgamento do Habeas Corpus nº 50.470/ES, pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Eminente Ministro Gurgel de Faria, quando restou decidido que “embora seja possível a chamada denúncia de caráter geral, o órgão acusador deve especificar os danos suportados pelo meio ambiente e cotejá-los, ainda que superficialmente, com a atividade desenvolvida pelo gestor empresarial incriminado, pois, do contrário, estaria prejudicado o exercício do contraditório e da ampla defesa.”
Logo, antes mesmo de se aferir a adequação formal entre a conduta e o tipo penal, deve-se ater a observância do princípio da culpabilidade, com o fito de resguardar-lhe a garantia de responder somente por aquilo que tenha causado com culpa lato sensu.
Nesta esteira, ao indivíduo somente é legítima a aplicação da pena – bem como de toda a persecução penal, diga-se de soslaio – se praticado o ato típico e ilícito mediante dolo ou culpa stricto sensu. Ou, simplesmente, nullum crimen sine culpa[6].Restando clara a necessidade de demonstração de um vínculo subjetivo entre o agente e os fatos que o buscam imputar, necessário tecer comentários acerca da responsabilidade penal por omissão.
A exigência da imputação subjetiva é importante para afastar qualquer hipótese de responsabilidade objetiva na seara penal, com isso, uma pessoa só será responsabilizada caso seja demonstrada sua relação psíquica com aqueles fatos, no que tange o conhecimento dos elementos típicos e a vontade de executar ou colaborar com sua realização.[7]
Assim entendeu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus de nº 102.313 – RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Senão vejamos:
(...)
3. Entretanto, é inepta a denúncia que não contém a especificação das operações financeiras realizadas pelo acusado, ou por intermédio de casa de câmbio por ele administrada, sinalizadoras do conjecturado escamoteamento de ativos, e, ainda, que não expõe o vínculo subjetivo do imputado com os fatos tidos como criminosos. A deficiência é grave e compromete a ampla defesa, pois não é compreensível a acusação, o que impede o exercício do contraditório.
Também neste sentido, entendeu o mesmo Egrégio Tribunal Superior no HC 50.470 – ES, Rel. Min. Gurgel de Faria:
(...)
2. Hipótese em que o Parquet estadual, ao aditar a denúncia e trazer os recorrentes para o polo passivo da ação penal originária, nem sequer mencionou que eles seriam detentores de poderes gerenciais da empresa causadora do dano ambiental. Além disso, o simples fato de os acusados serem sócios ou administradores da pessoa jurídica acusada não pode automaticamente levar à imputação de delitos, sob pena de restar configurada a responsabilidade penal objetiva.
3. Considerando o que dispõe o art. 2º da Lei n. 9.605/1998, nas hipóteses de crimes ambientais, embora seja possível a chamada denúncia de caráter geral, o órgão acusador deve especificar os danos suportados pelo meio ambiente e cotejá-los, ainda que superficialmente, com a atividade desenvolvida pelo gestor empresarial incriminado, pois, do contrário, estaria prejudicado o exercício do contraditório e da ampla defesa. Precedentes.
4. Tendo em vista que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu que a necessidade de dupla imputação nos crimes ambientes é prescindível, uma vez que viola o disposto no art. 225, § 3º, da Constituição Federal (RE n. 548.181/PR, relatora Ministra Rosa Weber, DJe 30/10/2014– Informativo n. 714/STF), a ação penal deve prosseguir somente para a pessoa jurídica acusada.
5. Recurso ordinário provido para reconhecer a inépcia da denúncia oferecida contra os recorrentes, excluindo-os do polo passivo da ação penal, sem prejuízo de que outra seja oferecida com a observância dos parâmetros legais.
2 - RESPONSABILIDADE PENAL DO SÓCIO EM CONDUTAS OMISSIVAS
No que concerne à responsabilização por condutas omissivas, deve-se ter em mente o disposto no art. 13, §2º que elenca as hipóteses de omissão penalmente relevante, sendo pertinentes ao trabalho as hipóteses das alíneas “b” e “c”, quais sejam a de quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado, bem como a hipótese de que o agente, com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
A hipótese da alínea “b”, de que o agente “de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado” se aplica acertadamente em organizações hierarquizadas, como bancos e empresas, onde há delegação de atos ou funções. Nesse caso, deve ser necessário que o agente tenha plena consciência dos deveres e que os assuma, sendo imprescindível que tais deveres sejam previstos expressamente em estatuto, regimento ou ato normativo interno.[8]
Por sua vez, com relação a hipótese da alínea “c”, – com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado – tem-se que o agente cria um risco não permitido, pelo descumprimento das normas institucionais em técnicas de cuidado ou do dever normal de diligência.
Após a verificação se o sócio é ou não garante, nos casos comissivos por omissão, é imprescindível que se observe que: I- o agente em posição de garante deveria agir para impedir o resultado, assumiu essa obrigação nos moldes das alíneas do§2º do Art.13 do CP; II - se ele poderia agir, se aquele ato que o faria impedir o resultado está ao seu alcance, de acordo com suas habilidades, virtudes e se possui os instrumentos - as atribuições praticas - necessários para interromper o processo.
Ou seja, para que a omissão impropria reste configurada, o omitente deve ser capaz de evita-la. Isso ocorre pois, sempre que se imputa a alguém a prática de um crime “por ocupar uma posição” na empresa, o que se faz é violar a letra clara do Art. 13, do Código Penal, já que o resultado causado por uma ação ou omissão determinada (conduta humana) atípica, é um irrelevante penal.[9] Deste modo, a omissão é um conceito normativo que denota a ausência de uma ação esperada e só pode esperar algo de quem possa fazê-lo.[10]
Assim, constatado o fato típico, deve ser averiguado se o sócio é ou não garante, tem que ser analisado se ele poderia agir, se aquele ato que o faria impedir o resultado está ao seu alcance, de acordo com suas habilidades, virtudes, e, se possui os instrumentos -as atribuições praticas - necessários para impedir o resultado. Ou seja, nesses casos, para que a omissão impropria seja configurada, o omitente deve ser capaz de evita-la.
Em outras palavras, a mera posição de garante, por si só, não é suficiente para atribuir a responsabilidade penal ao sócio, o que somente poderá ocorrer quando comprovado que ele poderia ter evitado aquele resultado. Sendo certo que, caso o resultado seja imprevisível (previsibilidade objetiva), o fato será atípico, uma vez que se o agente não puder antever o resultado, aplica-se a hipótese de caso fortuito ou força maior[11].
Neste sentido, expõe Augusto Assis:
Constatada uma situação típica, o resultado, a posição de garantidor do dirigente e a omissão da conduta determinada e exigida de evitação do resultado, apesar da capacidade físico-real de fazê-lo, será necessário conectar o resultado da à omissão por meio do nexo de causalidade e imputar o resultado objetivamente ao omitente. Esta última etapa será problemática ali onde a conduta concretamente exigida do garantidor não possuísse aptidão para evitar o resultado ou mesmo diminuir o risco de sua ocorrência, negando-se, pois, a imputação do resultado à omissão, e, consequentemente a tipicidade objetiva.
Isso não será incomum na imputação omissiva imprópria aos dirigentes de empresas pôr crimes praticados por seus subordinados ou integrantes, pois aqui se trata da imputação do resultado de um crime praticado por pessoa diversa dado omitente garantidor.[12]
Logo, mesmo que o sócio, no cargo que ele ocupa, possua o dever da garante nos moldes do Art. 13, §2º do Código Penal, o este somente poderá ser responsabilizado se, de alguma forma, puder evitar aquele resultado.
3 – RESPONSABILIDADE, DELEGAÇÃO DE FUNÇÕES E CONDITIO SINE QUA NON
Outro ponto a ser observado é a delegação de funções para equipes especializadas, o que ocorre comumente nas áreas contábeis das empresas.
É evidente que o sócio jamais será “expert” em todas as áreas necessárias para fazer funcionar a empresa, motivo pelo qual é absolutamente normal a delegação de funções.
A delegação de funções se rege pelo Princípio da Confiança, no sentido de que as pessoas agem de acordo com a expectativa de que os outros indivíduos atuarão dentro do que lhes é normalmente esperado. Como exemplo, podemos citar o motorista x, num cruzamento ou rotatória, ao dirigir numa via preferencial, espera veemente que o motorista y que está em via secundaria aguardara a sua passagem, conforme as normas convencionais de trânsito. Ou também, quando o motorista conduz seu veículo na esperança de que o pedestre não atravessará fora da faixa de pedestres ou em momento inadequado[13]. Seria este um risco permitido, tolerado, facultado[14].
Deste modo, todos que atenderem adequadamente ao cuidado objetivamente exigido, pode confiar que os demais coparticipantes da mesma atividade também operem cuidadosamente. É o que também pauta o Princípio da Divisão do Trabalho.
Logo, não pode o sócio, pessoa cuidadosa, que delegou funções para uma equipe altamente capacitada, verdadeiramente confiando que as funções seriam desempenhadas da melhor maneira possível, ser responsabilizado criminalmente por eventual conduta criminosa das pessoas delegadas, sob pena de responsabilizar uma pessoa cuidadosa por conduta de terceiro que se comportou de forma defeituosa. Uma vez que, neste caso, o sócio teria uma falsa percepção da realidade e estaria maculado por um verdadeiro erro de tipo.
Excetuados são os casos onde o sócio, na posição de garante, cria conscientemente barreiras a evitar o conhecimento pleno da ilicitude da procedência de bens, direitos e valores, sendo típico caso de aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, pois dessa forma o agente estaria se comportando como um avestruz, que enterra sua cabeça na terra para não tomar conhecimento da natureza e da extensão dos fatos que o permeiam.[15]
No mais, não se pode esquecer de analisar o nexo de causalidade entre a ação do sócio e o resultado produzido, sendo vedado o regresso ad infinitum, bem como deve ser observado se a conduta do agente se insere no que a doutrina define como “ação neutra”[16]. Devendo-se aplicar a teoria da equivalência das condições (ou conditio sine qua non), através do juízo hipotético de eliminação, sob pena de todos aqueles que, de certa forma, participaram da conduta ilícita responderem pelo crime, mesmo ausentes os elementos do dolo e da culpa.
Acerca do tema, corretamente expõe Cezar Roberto Bitencourt:
Para que se possa verificar se determinado antecedente é causa do resultado, deve-se fazer o chamado juízo hipotético de eliminação, que consiste no seguinte: Imagina-se que o comportamento em pauta não ocorreu, e procura-se verificar se o resultado teria surgido mesmo assim, ou se, ao contrário, o resultado desapareceria em consequência da inexistência do comportamento suprimido. Se se concluir que o resultado teria ocorrido mesmo com a supressão da conduta, então não há nenhuma relação de causa e efeito entre uma e outra, porque mesmo se suprimindo está o resultado existiria. Ao contrário, se eliminada mentalmente a conduta, verifica-se que o resultado não teria produzido, evidentemente essa conduta é condição indispensável para a ocorrência do resultado e, sendo assim, é sua causa. (grifos).
No exemplo clássico do homicida que mata a vítima com um tiro de revolver, evidentemente que sua conduta foi necessária à produção do evento; logo, é causa. Mas o comerciante que lhe vendeu a arma também foi indispensável na ocorrência do evento; então, também é causa. Se remontarmos ainda mais, teríamos de considerar causa a fabricação da arma, e até os pais do criminoso, que o geraram, seriam causadores. Mas essa conclusão, evidentemente, se tornaria inconciliável com os propósitos do Direito Penal.[17]
Outrossim, não se admite responsabilização penal por dolo posterior, quando no momento da colaboração material do agente, o crime já tenha se consumado. O posterior é irrelevante (ação neutra), mesmo que se considere que aquele delito é contínuo, permanente ou de efeitos permanentes. Neste sentido, Greco[18] explica que deve-se considerar, na configuração concreta do resultado, apenas os dados de tempo e lugar (determinado tempo e determinado local), exigindo que a omissão tenha causado seguramente o resultado em sua configuração concreta.
4 – RESPONSABILIDADE PELA FONTE DE PERIGO
Outro ponto bastante controverso é a responsabilidade do sócio, já munido da posição de garantidor, sobre as fontes de perigo, do qual é oriunda do controle de coisas perigosas.
O primeiro aspecto a ser pontuado aqui é que, a princípio, todo objeto pode se tornar perigoso, dependendo da forma como for empregado. Por óbvio, alguns objetos possuem naturalmente um maior grau de periculosidade, contudo, mesmo em relação a estes há grandes incertezas sobre a extensão dos deveres do garantidor, sendo certo que as fontes de perigo e controle estão longe de serem facilmente determináveis.[19].
Um exemplo prático foi o ocorrido na contaminação de pelo menos trinta e dois lotes de cerveja Backer, no Estado de Minas Gerais, pelas substancias tóxicas monoetilenoglicol e dietileglicol, líquidos refrigerantes que não poderiam entrar em contato com nenhum tipo de produto alimentício.
O incidente gerou dez vítimas fatais por intoxicação e vinte e nove vítimas efetivas, algumas delas com sequelas irreversíveis, como alterações neurológicas, perda de visão e paralisia facial. Não há dúvidas que, no caso concreto as substâncias refrigeradoras se tornaram fontes de perigo. Contudo, seria correto responsabilizar os sócios, a luz do Art.13º, §2º do Código Penal por tais condutas ilícitas?
No presente momento, não há conclusão sobre este processo, mas tão somente sobre o Inquérito policial, concluído pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) em 08 de junho de 2020, possuindo cerca de 4000 (quatro mil) páginas, 11(onze) pessoas indiciadas[20], mais de 100 perícias e 70 pessoas das quais prestaram depoimento. O vazamento ocorreu por que haviam furos nos tanques, no alinhamento da solda. A cervejaria, por sua vez, alega que os barris de cerveja possuíam indícios de sabotagem por ela adquiridos de seu fornecedor.
Nesse aspecto, é necessário delimitar o dever de garante/garantidor, já que não parece correto que o proprietário tenha o dever de evitar todos os riscos criados com auxílio de suas coisas[21]. Deve-se aferir se o sócio que assumiu a posição de garante tinha a condição físico-real de evitar o perigo ou o resultado.
Tampouco é uma boa solução considerar que, apenas pelo sujeito possuir domínio sobre o fato, deva automaticamente responder dolosamente pelo injusto penal, pois o mero domínio não parece suficiente para gerar uma relação especial necessária entre o agente e a fonte de perigo, sob pena de tornar a sua omissão tão grave quanto uma comissão[22]. É necessário, ao mínimo, que os outros elementos do tipo estejam preenchidos.
Deste modo, esvaziar-se-ia então, como pauta Augusto de Assis, a aparente facilidade de aplicar a posição de garantidor decorrente do controle de sobre coisas perigosas que, na prática, esbarra na realidade fática de que nas empresas, em regra, há muitas pessoas envolvidas em diversos procedimentos, de forma que, quem controla a empresa como um todo, dificilmente terá controle sobre as fontes de perigo, já que, por exemplo, a manutenção das maquinas e o controle de qualidade do produto não serão feitos diretamente pelo dirigente, mas sim por outros funcionários, sob sua supervisão.[23]
5 – RESPONSABILIDADE E CONTROLE SOBRE OS OUTROS MEMBROS DA EMPRESA (TERCEIROS PLENAMENTE RESPONSÁVEIS)
A discussão acerca da responsabilidade omissiva ainda se estende no que tange às condutas praticas diretamente pelo funcionário da empresa, quando aquele ato naturalmente não pertence a cadeia de produção da empresa ou parte de uma ordem direta de um dirigente, como, por exemplo, um furto ou estelionato praticados por um funcionário da empresa, ou quando esse funcionário agride um colega de trabalho ou cliente da empresa.
Não parece acertada a responsabilização do dirigente apenas pelo argumento de que este não zelou pelo bom funcionamento da empresa. Tampouco alegar que, em virtude do poder de mando do diretor sob o funcionário, este poderia evitar os delitos deste último.
Isso ocorre pois, o(s) funcionário(s) que comete(m) o delito é/são plenamente(s) capaz(es), sendo responsáveis e puníveis pelo fato que realizou. Assim o princípio da autorresponsabilidade ou da autonomia vedaria a responsabilidade por fatos cometidos por terceiros plenamente capazes e responsáveis. Desta forma, o poder de direcionar a conduta não seria forte o suficiente para afastar a autorresponsabilidade do funcionário.[24]
De igual modo, como aqui exaustivamente guerreado, é imprescindível, nos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão, que o agente tenha capacidade de evitar o perigo ou resultado.
Ainda que se entendesse a responsabilidade do sócio nesses casos, pauta o entendimento da melhor doutrina que a responsabilidade do dirigente apenas pode abarcar os delitos relacionadas ao núcleo empresarial. Assim, não estando os riscos relacionados à empresa, a responsabilidade será de quem os criou.[25]
Nesse sentido, entendeu a jurisprudência alemã no “Caso Mobbing”, onde um supervisor observou durante anos, dois trabalhadores agredirem fisicamente a um trabalhador pertencente a outro grupo de trabalho, pelo motivo fútil de este último ter se inscrito em um curso de especialização e de sua condição de deficiente físico. O supervisor, no caso em tela, nada o fez. O BGH[26] absolveu o supervisor aos argumentos de: I- os injustos penais cometidos funcionários não eram “referidos a empresa”, e que tal responsabilização só se concretizaria se a empresa, por algum meio, incentivasse tais práticas; II – o trabalhador em questão não pertencia ao grupo de trabalho do supervisor denunciado, não sendo possível aplicar um dever de proteção derivado da posição hierárquica deste último em face de seus subordinados.[27]
6 – CONCLUSÃO
O homem vive em um mundo em constante movimento, dinâmico, cinético de certa forma, onde este movimento se dá em virtude de forças e energias que ocasionam inúmeras transformações, que atingem inclusive o próprio homem. Este último é tanto sujeito de transformações – pois é capaz, com sua força motriz direcionar processos causais e provocar mudanças -, quanto objeto de transformação, já que vive em constante mutação.[28]
Estas transformações, tonificadas pelo surgimento de novas tecnologias e o fenômeno da globalização, traz consigo novas condutas, direitos, deveres e consequentemente novos bens jurídicos[29], que passam a ter relevância no meio social e econômico.
O novo paradigma inserido por estas inovações, é de uma verdadeira criminalidade complexa, distante à anos luz do chamado “Direito Penal Clássico”, diferenças essas que não interessam ao presente trabalho serem aprofundadas.
Essa criminalidade complexa tem por características, quase sempre, serem praticados entre “quatro paredes”, carecendo de testemunhas, rastros e vestígios.
A opacidade é tanta que o próprio Estado, mesmo com todo seu aparato, reconhece a sua hipossuficiência para combater esses delitos, tendo que se valer de expedientes como a delegação de obrigação a terceiros (know your client e disclosure) e de meios de obtenção de provas excepcionais, dentre elas a colaboração premiada.
Se o próprio Estado de certa forma confessa a sua impotência para investigar e perceber a criminalidade complexa, quem dirá um sócio, muitas vezes leigo em assuntos técnicos-jurídicos.
A questão é justamente essa, até que ponto o sócio de uma empresa é responsável pelas condutas criminosas que ocorrem no âmbito empresarial ou em virtude dele?
Deve ser observado, à luz do art. 18 do Código Penal, que o ordenamento jurídico pátrio não adotou a responsabilidade penal objetiva, mas sim subjetiva.
Logo, prima facie, repudia-se a ideia de que os sócios têm que ser responsabilizados por todos os crimes que ocorrem dentro da empresa, unicamente pelo cargo que ocupa, sendo imprescindível que seja demonstrado um vínculo subjetivo entre o sócio e o fato tido como criminoso, sendo este o entendimento externado pelos Tribunais Superiores.
Conclui-se, portanto, que é sim possível a responsabilização penal dos sócios por ações omissivas, desde que sejam observados os seguintes requisitos: 1) Se a posição de garante foi assumida nos moldes do art. 13, §2º do CP; 2) Se aquele ato que impediria o resultado está ao seu alcance, de acordo com suas habilidades, virtudes, e se possui os instrumentos -as atribuições práticas - necessários para impedir o resultado; 3) Se as funções haviam sido delegadas, observar a aplicação do Princípio da Confiança (excetuados os casos em que o socio cria barreias para evitar o conhecimento da ilicitude); 4) Se a conduta do sócio seria uma “ação neutra”; 5) Se há nexo de causalidade entre a conduta do sócio e o resultado.
Notas e Referências
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico, volume 2. – São Paulo, Saraiva, 2016.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470. Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470>. Acesso em: 24 out. 2019.
ESTEVAM, André. GONÇALVES, Victor Eduardo. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 8ª ed. São Paulo: Saraiva educação, 2019.
FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. – São Paulo, RT, 2014
GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras – a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro:ed. Renovar, 2004
GRECO, kausalitats – und Zurechnungsfragen bei unechten Unterlassungsdelikten
LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018.
PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro – volume I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense LTDA
ROXIN, Imme. Responsabilidade do administrador de empresa por omissão imprópria, trad. Alaor Leite e Adriano Teixeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2015
Schunemann, Bernd, Unterlassungsdelikte und die strafrechtliche Verantwortlichkeit fur Unterlassunguen, em ZstW, 1984, v. 96, p. 318 – Schunemann, Bernd, Unternehmenskriminalitat und Strafrecht – Eine Untersuchung der Verantwortlichkeit der Unternehmen und ihrer Fuhrungskrafte nach geltendem und geplantem Straf – und Ordnun- gswidrigkeitenrecht, Koln, 1979
SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Lei dos crimes ambientais. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002, p. 399
TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. 3ª Ed. Editora Lamen Juris: Rio de Janeiro, 2009. Pag. 313
[1] SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Lei dos crimes ambientais. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002, p. 399
[2] A lei de lavagem, em seu artigo 1°, §5° prevê uma espécie de colaboração premiada. Vejamos:
“A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. “
[3] Schunemann, Bernd, Unterlassungsdelikte und die strafrechtliche Verantwortlichkeit fur Unterlassunguen, em ZstW, 1984, v. 96, p. 318 – Schunemann, Bernd, Unternehmenskriminalitat und Strafrecht – Eine Untersuchung der Verantwortlichkeit der Unternehmen und ihrer Fuhrungskrafte nach geltendem und geplantem Straf – und Ordnun- gswidrigkeitenrecht, Koln, 1979, p.41.
[4] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018. P. 70
[5] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico, volume 2. – São Paulo, Saraiva, 2016. P. 463
[6] FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. – São Paulo, RT, 2014
[7] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico, volume 2. – São Paulo, Saraiva, 2016. P. 463
[8] Idem, ibidem
[9] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018. P. 73
[10] ROXIN, Imme. Responsabilidade do administrador de empresa por omissão imprópria, trad. Alaor Leite e Adriano Teixeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2015, §31, nm. 6 e s.
[11] ESTEVAM, André. GONÇALVES, Victor Eduardo. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 8ª ed. São Paulo: Saraiva educação, 2019. P. 401
[12] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018. P. 71
[13] TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. 3ª Ed. Editora Lamen Juris: Rio de Janeiro, 2009. Pag. 313
[14] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro – volume I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense LTDA. 2019. P. 912
[15] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470. Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470>. Acesso em: 24 out. 2019.
[16] Definida pro Luiz Greco como: ““a participação criminal a fato típico alheio não manifestamente punível” - GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras – a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro:ed. Renovar, 2004, p. 110.
[17] Idem, ibidem.
[18] GRECO, kausalitats – und Zurechnungsfragen bei unechten Unterlassungsdelikten, P. 679
[19]Idem, ibidem
[20] Os indiciados foram uma testemunha, que responderá por extorsão e falso testemunho; o chefe da manutenção, que responderá por homicídio culposo, lesão corporal culposa e contaminação de produto alimentício culposa; seis responsáveis ligados diretamente à produção cervejeira, que responderão por homicídio culposo, lesão corporal culposa e contaminação de produto alimentício dolosa; e três pessoas da gestão da empresa, que responderão por ato pós-produção devido ao descumprimento de normas administrativas.
[21] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018. P. 57
[22] Idem, ibidem
[23] Idem, P. 61
[24] Idem, ibidem
[25] idem, P.63
[26] BGHSt 57, 42
[27] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza. Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. 1 reimp – Belo Horizonte: D’ Placido, 2018. P. 65
[28] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico, volume 2. – São Paulo, 2016. Saraiva. P. 43
[29] É possível dividir a conceituação de bem jurídico em dois grandes grupos de teorias. A primeira delas, denominada de Teoria Naturalista, defende que o bem jurídico é um dado da realidade humana ou social, portanto natural ou empírico, tal como a vida humana e a integridade corporal. Noutro giro, a segunda teoria, denominada de Teoria Normativa, defende que bem jurídico é produto exclusivo de criação legislativa, ainda que derivem de dados empíricos, pois só com a lei adquirem relevância para o Direito. - TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.95;
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