A responsabilidade civil dos provedores de internet por deepfakes  

05/08/2020

As fake news (notícias falsas) têm sido usuais na sociedade informacional atual aliando-se à internet e a sua fácil difusão, o que acaba por acarretar em um outro patamar no que concerne aos danos gerados à vítima, principalmente caso haja demora na remoção do conteúdo ilícito da internet.

A deepfake, prática que tem se tornado comum na nossa sociedade, pode ser considerada como uma espécie de fake news. O termo “deepfake” decorre da junção das palavras “deep learning” (aprendizagem profunda) e “fake” (falso) e consiste em um método de síntese de imagens ou sons humanos baseada em técnicas de inteligência artificial. Em geral, nesses casos, utiliza-se da inteligência artificial para trocar o rosto de pessoas, com direito até mesmo a sincronização de expressões faciais e movimentos labiais, com resultados que podem ser bastante convincentes.

Portanto, a deepfake é utilizada para criar vídeos ou áudios falsos de pessoas, geralmente com falas ou conteúdos polêmicos com a finalidade de prejudicar a imagem de alguém.

As informações falsas criadas por meio da deepfake já foram utilizadas para os mais diversos fins, tais como criar vídeos falsos de caráter sexual de celebridades ou para pornografia de vingança[1]. Além disso, também podem ser utilizados para gerar notícias e discursos falsos, sendo facilmente encontrado em sites de streaming como o Youtube.

O poder das deepfakes é incalculável, podendo gerar graves consequências caso haja demora em remover o conteúdo falso da internet. Neste sentido, deveria haver a determinação extrajudicial aos provedores de aplicações de internet para retirá-las do ambiente virtual, não sendo razoável a espera de um trâmite processual que, em sua maioria, é moroso e insuficiente para atingir o objetivo de remoção imediata da deepfake da internet.

Nota-se que assim como outros ilícitos virtuais, o fator tempo assume nítida importância neste tipo de ilícito[2], pois, quanto maior o tempo para retirar a deepfake da internet, maiores serão as consequências para os envolvidos. Com base neste panorama, seria mais razoável que eventual legislação a respeito das fake news, e consequentemente também das deepfakes, utilizasse o sistema anterior ao Marco Civil da Internet, ou seja, o notice and take down, pois tal ilícito não pode esperar uma determinação judicial para retirada de toda e qualquer deepfake.

O Superior Tribunal de Justiça adotou o sistema do notice and take down antes da promulgação do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14), determinando que houvesse notificação extrajudicial do provedor de conteúdo para retirada de qualquer conteúdo ilícito (notice and take down), a qual deveria ser atendida no prazo de 24 horas, sob pena de o provedor responder solidariamente com o autor do ilícito pelo dano causado[3]. Nesse caso, o provedor não estaria obrigado a analisar o teor da denúncia recebida no referido prazo, mas apenas promover a suspensão preventiva das páginas, checando a veracidade das alegações em momento futuro oportuno[4].

Com o advento do Marco Civil da Internet em 2014, a responsabilização dos provedores passou a ser norteada por novas regras. O art. 19, caput, prevê que o provedor de aplicações de internet somente seria responsabilizado civilmente por danos advindos de conteúdo gerado por terceiros após descumprir ordem judicial específica determinando sua retirada (judicial notice and take down)[5]. Esse comando contraria o anterior posicionamento de que essa notificação poderia ser extrajudicial. A criação desse mecanismo de litigiosidade é criticada por parcela da doutrina, dentre eles Cíntia Rosa Pereira de Lima[6] e Anderson Schreiber[7] que mencionam que tal disposição viola direitos consolidados dos usuários, sendo, portanto, inconstitucional[8].

Já no que tange a conteúdo ilícito de nudez ou atos sexuais privados o Marco Civil da Internet traz uma exceção no art. 21[9]. Caso este tipo de conteúdo seja publicado sem consentimento, o provedor de aplicações de internet deverá removê-lo mediante notificação extrajudicial feita pelo participante ou seu representante legal, sob pena de responder subsidiariamente no caso de descumprimento.

Entretanto, apesar de o art. 21 parecer que tenha adotado o posicionamento jurisprudencial anterior ao Marco Civil da Internet, de fato não o fez, pois há uma mudança significativa no que se refere ao modo como o provedor será responsabilizado em caso de descumprimento da notificação extrajudicial. Antes do Marco Civil da Internet o Superior Tribunal de Justiça entendia que se o provedor de conteúdo descumprisse a notificação extrajudicial deveria ser responsabilizado solidariamente com o autor do ilícito. No entanto, após a promulgação da referida lei, caso descumpra a notificação feita pelo participante ou seu representante legal, será apenas subsidiariamente responsabilizado.

De fato, o Marco Civil da internet representa um avanço no trato jurídico das relações derivadas do uso da internet. Todavia, a lei se mostra conflitante e insuficiente em alguns pontos com entendimentos e leis que beneficiavam os usuários, principalmente quanto às deepfakes.

Tendo em vista que as deepfakes possuem uma capacidade enorme de gerar danos e que o fator tempo possui particular relevância neste tipo de ilícito, visto que quanto maior o tempo de retirada do conteúdo reputado ilegal da internet, maiores serão as consequências, deve-se interpretar de forma sistemática e teleológica os dispositivos do Marco Civil da Internet com a finalidade de dar maior eficácia à lei.

Neste sentido, caso a deepfake verse sobre conteúdo que não seja relativo à nudez ou atos sexuais privados publicados sem consentimento, deve-se aplicar o art. 19 da lei. Em outras palavras, deve-se haver uma notificação judicial para a retirada do conteúdo reputado ilícito (judicial notice and take down), e somente após o descumprimento desta o provedor de aplicações de internet seria responsabilizado civilmente.

Um exemplo de deepfake que se enquadraria no disposto no art. 19 seria a alteração de um discurso ou fala de alguma pessoa, reputando-a como preconceituosa e proferindo frases polêmicas com a finalidade de manchar a sua imagem.

Por sua vez, se a deepfake versar sobre conteúdo relativo à nudez ou atos sexuais privados publicados sem consentimento, deve-se aplicar o art. 21 da lei por analogia. Em sendo assim, mesmo que não seja a pessoa envolvida, mas que se atribua a ela o ato sexual ou conteúdo de nudez, pode-se interpretar, de maneira teleológica o dispositivo legal a fim de se enquadrar ao caso concreto, visto que a finalidade deste é preservar a intimidade e a vida privada.

Portanto, nos casos envolvendo deepfakes com conteúdo de nudez ou atos sexuais publicados sem consentimento o provedor de aplicações de internet deverá removê-lo mediante notificação extrajudicial feita pelo reputado participante ou seu representante legal, sob pena de responder subsidiariamente no caso de descumprimento.

Como exemplo de fato que se enquadraria no disposto no art. 21 supracitado tem-se um vídeo de uma pessoa nua com o corpo parecido com o de alguém, no qual substitui-se o rosto pelo de terceiro a quem lhe quer atribuir o conteúdo. Tal fato é muito comum com celebridades e políticos, mas pode atingir qualquer pessoa, uma vez que a finalidade é prejudicar a imagem das pessoas envolvidas.

Cabe mencionar que, independentemente de a notificação ser judicial ou extrajudicial, deverá haver a identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, conforme o art. 19, §1º e art. 21, parágrafo único, do Marco Civil da Internet[10], entendendo-se como tal a indicação da URL (endereço de rede no qual se encontra o conteúdo), sob pena de nulidade.

Percebe-se, assim, que os conteúdos envolvendo deepfakes podem se enquadrar nos dispositivos legais elencados no Marco Civil da Internet, com base em uma interpretação sistemática e teleológica dos mesmos. Por mais que a presente legislação se mostre insuficiente para este tipo de conteúdo, principalmente em razão da importância do fator tempo na remoção do ilícito, tem-se que essa pode perfeitamente ser utilizada para tentar coibir ilícitos decorrentes de deepfakes na internet.

 

Notas e Referências

[1] A pornografia através de deepfakes foi muito utilizada em meados de 2017, principalmente em fóruns do Reddit, tendo sido banido de sites como Reddit e Twitter. Disponível em: <https://variety.com/2018/digital/news/deepfakes-porn-adult-industry-1202705749/>. Acesso em: 25/02/2020.

[2] A título de exemplo da importância do fator tempo em ilícitos virtuais, cita-se as questões envolvendo fake news e saúde pública. Neste sentido, recomenda-se a leitura: FLUMIGNAN, Wévertton G. G. Fake news, coronavírus e o atual cenário brasileiro. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/wevertton-flumignan-fake-news-coronavirus-atual-cenario-brasileiro>. Acesso em: 30/03/2020.

[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Recurso Especial 1.337.990, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. 3ª Turma. Julgado em 21 de agosto de 2014.

[4] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Recurso Especial 1.323.754, Relatora: Ministra Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 19 de junho de 2012.

[5] Art. 19, Marco Civil da Internet. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

(...)

[6] LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet por conteúdo gerado por terceiro antes e depois do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14). Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 110, p. 173 jan./dez. 2015.

[7] SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: Direito & Internet III – Tomo II: Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2015. pp. 293-294.

[8] Para aprofundar, recomenda-se a leitura: FLUMIGNAN, Wévertton Gabriel Gomes. Responsabilidade civil dos provedores no Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2018.

[9] Art. 21, Marco Civil da Internet. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

(...)

[10] Art. 19, §1º, Marco Civil da Internet. A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

Art. 21, Parágrafo único, Marco Civil da Internet. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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