A responsabilidade civil do Estado por omissões legislativas

07/02/2018

A Constituição de 1988 traz um dado para o ordenamento jurídico brasileiro que é a introdução de mecanismos jurídicos voltados para o controle da inconstitucionalidade por omissão.

A dogmática constitucional concebe a Constituição jurídica de um Estado como um estatuto fundamental deste que, embora condicionado historicamente pelas circunstâncias concretas de cada época, não se reduz à mera expressão das situações de fato existentes. A Constituição tem uma existência própria, autônoma, que se traduz na sua pretensão de eficácia (Geltungsanspruch), ou seja, na idéia de que as situações por ela reguladas pretendem ser concretizadas na realidade. Como bem doutrina Konrad Hesse: 

“A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas da sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela,não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sóciopolíticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.

(...) Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”.[1]

Essa pretensão de eficácia traduz-se em dois princípios fundamentais: o da supremacia da Constituição e o da efetividade das normas constitucionais. Significa dizer que todo e qualquer princípio ou regra constitucional está situado numa posição de prevalência material e formal relativamente à lei ordinária e que todos eles possuem uma determinada eficácia na ordem jurídica.

Essa ordem de considerações nos remete assim ao problema do significado jurídico da omissão do legislador. Não se pode admitir, dada essa posição de supremacia da Constituição, que os preceitos constitucionais e, especialmente os definidores de direitos e garantias fundamentais, fiquem à espera indefinida da confecção de normas infraconstitucionais regulamentadoras da lei maior. Se assim o fosse, configurar-se-ia verdadeira subversão da ordem jurídica, apresentando-se a omissão do legislador infraconstitucional como mais eficaz que a atuação do constituinte, a inexistência de norma regulamentadora mais vinculante que a existência de norma constitucional[2]. Deste modo, considera-se, seguindo o magistério de Canotilho, o reconhecimento da eficácia direta dos direitos fundamentais e a superação da teoria negativa liberal dos mesmos direitos pelas teorias que reconhecem neles uma dimensão objetiva e um fundamento de pretensões subjetivas a prestações, culminando com a juridicização da relevância da abstenção legisferante como “agressão negativa” dos direitos dos cidadãos[3].

A omissão do legislador pode portanto, em tese, se constituir num comportamento ilícito, a ensejar a responsabilidade civil do Estado legislador. Entretanto, para que esta se configure é necessário delimitar com precisão qual é o dever jurídico a que o legislador estaria obrigado e fundamentalmente em que consiste essa omissão traduzida num silêncio legislativo juridicamente relevante.

Para Canotilho não é qualquer forma de omissão do legislador que pode ser conceituada como omissão juridicamente relevante. O conceito de omissão legislativa é um conceito restrito e se traduz na noção de que “o legislador não faz algo a que, de forma concreta e explícita, lhe era positivamente imposto pela Constituição” [4]. Assim, a inconstitucionalidade por omissão conexiona-se com uma exigência concreta constitucional de ação. As ordens constitucionais gerais de legislar (imposições constitucionais que contêm deveres de legislação abstratos como as normas programáticas e os preceitos enunciadores dos fins do Estado), embora configurem deveres de ação legislativa, não estabelecem concretamente aquilo que o legislador deve fazer, e assim, em caso de omissão, não se pode falar em silêncio legislativo inconstitucional[5].

Luís Roberto Barroso diferencia bem as duas hipóteses na atual Constituição.  Na primeira registra os casos em que a Lei maior impõe ao órgão legislativo o dever de editar norma reguladora da atuação de determinado preceito constitucional, sendo sua abstenção ilegítima e configurando inconstitucionalidades por omissão: 

(1) “ Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;” 

(2) “Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: 

XI - participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei;” 

(3) “Art. 201 - Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: 

§ 4º - Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.” 

A seguir relaciona normas programáticas que, estabelecendo fins genéricos para serem alcançados pelo Estado, se não implementadas, embora também configurem descumprimento da Constituição, não ensejam a omissão no sentido jurídico do termo: 

(1) “Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” 

(2) “Art. 218 - O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.” 

Na primeira hipótese as normas especificam o interesse tutelado, apontam um bem jurídico fruível, definem a conduta a ser seguida e geram, ipso iure, direito à sua obtenção, o que não ocorre na segunda[6].

As omissões legislativas podem ser absolutas ou relativas. As primeiras se verificam quando o órgão competente queda inteiramente inerte diante de um dever de legislar. As outras ocorrem quando o legislador, embora atuando, deixa de fora da incidência da norma alguma categoria que nela deveria estar incluída. O legislador ao atuar voluntariamente criando certa disciplina legal, fica obrigado a não deixar sem consideração os casos essencialmente iguais aos previstos na regra legal.

Fixado o princípio de que o legislador deve proceder à emanação das leis necessárias à concretização de imposições constitucionais permanentes e concretas, verifiquemos como a dogmática enfrenta o problema correlato a este que é o da proteção jurídica contra omissões legislativas, ou seja, verificar em que medida se pode falar em um direito subjetivo dos cidadãos à atividade legislativa.

Canotilho fundamenta com rigor a exigibilidade de tal conduta por parte do legislador, superando os argumentos contrários da discricionariedade do legislador e da impossibilidade da existência de um poder jurídico do particular em face do Estado, argumentando que o sentido das imposições constitucionais num Estado de Direito democrático-constitucional é o de fixar um dever normativo-constitucional do legislador à emanação das normas legais necessárias para o cumprimento da Constituição. Além disso, a nova conformação dos direitos fundamentais como direitos à efetivação concreta, sobretudo na dimensão de direitos de participação na organização e de direitos às prestações estatais, remeteria para o campo das exceções os casos em que os cidadãos não têm, para além dos interesses da coletividade, uma posição juridicamente protegida: 

“A democracia, o Estado de Direito e os direitos fundamentais exigem a garantia de um status activus, de um status positivus e de um status activus processualis e pressupõem que, pelo menos, se presuma que os ‘interesses dignos de proteção’ sejam interesses juridicamente protegidos, e que as vantagens jurídico-objectivamente reconhecidas se considerem, na dúvida, como garantindo um direito subjetivo”.[7] 

O ordenamento constitucional brasileiro estabeleceu um controle abstrato de omissões constitucionais ao prever que os legitimados no art. 103 da CF poderão impetrar ação direta de inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional e, uma vez declarada esta pelo STF será dada ciência ao Poder competente para as providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. Objetiva essa ação direta, em última análise, permitir que toda norma constitucional alcance eficácia plena, obstando que a inação do legislador venha a impedir o exercício de direitos constitucionais.

O constituinte ao falar em medida para tornar efetiva norma constitucional não restringiu a omissão legislativa aos casos em que os órgãos competentes não atuaram, violando dever concreto de agir que lhe era imposto por preceitos constitucionais. O conceito permanece genérico e assim torna-se extensivo ao não cumprimento das ordens de legislar e a não atuação das normas-fim abstratamente impositivas. Alargou-se, portanto, o conceito a limites que esbordam os recursos orçamentários atuais, resultando numa impossibilidade material de cumprimento da regra pelo legislador.

A propositura de ação direta de inconstitucionalidade por omissão implica apenas em nosso sistema constitucional, se julgada procedente, na declaração de inconstitucionalidade por omissão, seguida da ciência ao Legislativo para que adote as providências necessárias no sentido de suprir a omissão e conferir eficácia ao preceito constitucional. Porém, não há como o Judiciário assegurar o efetivo cumprimento do preceito constitucional, pois o Poder Legislativo pode sempre se recusar a legislar e não há como imputar sanção ao comportamento inconstitucional desse Poder. Cabe ressaltar ainda que, mesmo em relação ao órgão administrativo, para o qual a Constituição obriga a adotar as providências necessárias para o suprimento da omissão inconstitucional no prazo de 30 dias, o STF tem se recusado a constrangê-lo à ação ou a suprir o provimento, sob o argumento do princípio da separação dos poderes:

“Ação direta  de inconstitucionalidade (medida liminar) nº 19 - 5 - Alagoas

Relator: Ministro Aldir Passarinho

Partes:

Requerente: Fernando Collor de Mello, Governador de Alagoas

Requerido:  Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Alagoas

Dispositivo Legal Questionado:

Inconstitucionalidade por omissão dos incisos 0XI  e  XII  do Artigo 037  e  do  paragrafo  001º  do  Artigo  039  das  Disposições Permanentes da Constituição Federal.

- Isonomia de vencimentos  para  cargos  de  atribuições  iguais   ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e mais  ainda,  os  vencimentos  dos  cargos  do  Poder Legislativo e do Poder Judiciário, não  poderão  ser  superiores  aos pagos pelos Poder Executivo. 

Decisão do Mérito:

Por unanimidade o Tribunal preliminarmente negou seguimento ao pedido por ser incabível no caso a ação direta de inconstitucionalidade. - Plenário, 23.02.89 . - Acórdão, DJ 14.04.89”.[8] 

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão não tem logrado portanto, superar os tradicionais óbices da omissão do legislador por falta de um aparato sancionatório endereçado ao órgão que produziu a omissão na edição de lei ou ato normativo necessário para tornar efetiva a norma constitucional. Deve ser lembrado, porém, que está em causa nesta ação apenas o controle de constitucionalidade das leis, ou seja, aquele mecanismo jurídico que permite retirar do ordenamento uma lei ou ato normativo incompatível com ele (inconstitucional) ou ainda suprir uma omissão legislativa. Tal engenho se realiza sempre de maneira específica, seja pela retirada da norma do sistema (declaração de inconstitucionalidade da lei) seja pelo suprimento da omissão inconstitucional (edição da regra legal pelo Legislativo ou sua substituição pelo Judiciário).

O que está em causa aqui neste artigo entretanto, não é o controle de constitucionalidade das leis (a prestação específica de conformidade do princípio de supremacia da Constituição) mas sim a responsabilidade civil que advém para o Estado legislador do descumprimento do dever jurídico de legislar.

O dever de legislar se configura, todas as vezes em que a própria Constituição estabelece imposições constitucionais legiferantes, ou seja, normas que, de forma permanente e concreta vinculam o legislador à adoção de medidas legislativas concretizadoras da Constituição[9].  Declarada a inconstitucionalidade da omissão legislativa, erga omnes, como de ordinário em qualquer ação direta de inconstitucionalidade, cabe ao particular que tenha sido lesado pleitear a reparação dos danos causados pela omissão legislativa inconstitucional.

Aplica-se, nesses casos, o princípio da ampla responsabilidade do Estado prevista no art. 37, § 6º da CF, que abrange igualmente as omissões dos agentes estatais: 

“Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 

Art. 37 - ............

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. 

A omissão no dever jurídico de legislar, uma vez declarada esta erga omnes pelo Judiciário, sujeita o causador do dano (o Estado) a ressarcir os prejuízos, como qualquer obrigação decorrente de ato ilícito: 

“Código Civil 

Art. 1.518 - Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação”. 

A decisão que declara a inconstitucionalidade por omissão do legislador produz efeitos ex tunc, retroagindo seus efeitos até a data em que a omissão se materializou.

O constitucionalista português Jorge Miranda, analisando o ordenamento luso, também chega às mesmas conclusões, desde que, bem o ressalva, esteja perfeitamente delimitado o dever de atuação por parte do Estado: 

“A inconstitucionalidade pode constituir em uma relação jurídica obrigacional entre o Estado e um particular que, por causa deste ato tenha seu direito ou interesse ofendido e sofra um prejuízo passível  (mesmo se não patrimonial) da avaliação pecuniária.

(..) Sob o prisma da ilicitude, a inconstitucionalidade será um pressuposto de responsabilidade civil a acrescer a outros, entre os quais um específico dever de atuação (ou de não atuação) por parte do Estado. A par da responsabilidade por atos inconstitucionais, e mais ou menos conexa com ela, pode haver responsabilidade civil do Estado por omissões inconstitucionais, máxime por omissões legislativas”.[10] 

Flávia Piovesan, nessa vertente, declara igualmente que, quando se trata de controle de constitucionalidade, o que importa é assegurar a prevalência, o respeito e a observância efetiva da Constituição, enquanto norma suprema que o é. Assim, não se pode admitir a inexistência total de mecanismos sancionatórios da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Então, conclui com Jorge Miranda que pode existir responsabilidade civil do Estado por omissões constitucionais e, principalmente, por omissões legislativas[11].

Luiz Alberto David Araújo propugna pelo mesmo entendimento com fundamento na inafastabilidade do Poder Judiciário para apreciação de lesão ou ameaça de lesão de direito: 

“A declaração judicial de omissão implica no reconhecimento de dano a pessoa ou grupo de pessoas prejudicadas. Estamos diante de uma obrigação descumprida por uma pessoa de direito público, no caso, o Poder legislativo da União Federal e, por outro lado, de titulares de direitos feridos, que sofreram prejuízos pela omissão legislativa, reconhecida através da coisa julgada (...) Quer entendendo o problema sob o prisma individual, quer sob o meta-individual, duas regras ficam claras: há um reconhecimento de falta de cumprimento de dever (obrigação) do Poder legislativo; há um princípio de responsabilização das pessoas de direito público. As duas regras devem ser entendidas dentro da ótica da inafastabilidade do Poder Judiciário, para apreciar lesão ou ameaça de lesão de direito”.[12] 

Também esse é o magistério de Roque Antônio Carrazza para quem, tornada patente a omissão legislativa por declaração judicial, tem a parte lesada ação contra o Estado por omissão legislativa[13].

Em oposição à tese acima aventada se coloca Almiro do Couto e Silva que, em erudito artigo denominado “A responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro” sustenta não ser recomendável, no estágio atual do nosso direito, aceitar-se a responsabilidade do Estado pela omissão legislativa inconstitucional.

Afirma o mestre gaúcho que nos países que admitem a inconstitucionalidade por omissão, como Portugal e a Alemanha, prevalece o entendimento de que a participação dos particulares no controle da inércia legislativa é limitada à utilização dos instrumentos judiciais postos à sua disposição para provocar sentença declaratória da omissão inconstitucional. Não se reconhece aos indivíduos, em qualquer hipótese, direito e pretensão a obter ressarcimentos por danos decorrentes da ausência de lei. Assim, nos nossos dias, o controle teria caráter eminentemente político[14].

Entende ele que exceto em casos excepcionais quando a própria norma já contenha em si elementos suficientes para que se possa prever, com nenhuma ou mínima margem de erro, o conteúdo da norma ordinária, hipótese em que poderá o Judiciário suprir diretamente a omissão, nos demais a decisão judicial restringe-se a dar ciência ao poder competente da omissão constitucional para adoção das providências necessárias. Além disso, inexistindo norma infraconstitucional, como se poderá estimar o prejuízo dos interessados? Portanto, dotar o particular, por via oblíqua, de meio adequado a ressarcir-se dos prejuízos sofridos seria dar a este o poder de produzir um efeito que não tem a própria ação direta: 

“Pelas mesmas razões de respeito ao princípio constitucional da independência e harmonia dos Poderes as decisões do STF não prescrevem que a norma, quando editada, deverá ter efeitos ex tunc. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pela omissão legislativa teria a conseqüência prática de produzir esse efeito que a sentença declaratória por omissão não deu e que a regra reclamada possivelmente também não dará. Obter-se-ia, assim, por via oblíqua o que por via direta não se consegue. As dificuldades não param aí: mas efeitos ex tunc, a partir de quando ? Em que instante se caracteriza a mora legislatoris ? Por certo, há hipóteses em que a Constituição fixa prazo dentro do qual as leis deverão ser elaboradas. Há muitas outras, porém, em que se verifica inequívoco e específico dever constitucional de legislar, mas inexiste prazo fixo para que isso ocorra”.[15] 

Cabe ponderar com atenção, um a um estes argumentos. No primeiro deles, a ausência de uma pretensão do indivíduo contra o Estado ou de um direito à legislação, deve ser salientado, como faz Canotilho, que o Estado tem um dever jurídico-constitucional no sentido de adotar as medidas legislativas necessárias para tornar exeqüíveis as normas da Constituição. Esse dever é delimitado rigorosamente e só exsurge quando as normas constitucionais especificam o interesse tutelado, apontam um bem jurídico fruível e definem a conduta a ser seguida, e não nos casos de ordens gerais de legislar ou descumprimento das normas-fins do Estado.

A esse dever jurídico rigoroso, fruto do princípio maior de efetividade da Constituição, corresponde, como seu corolário necessário a responsabilidade no caso de descumprimento daquilo que foi constitucionalmente preceituado. A responsabilidade civil agasalhada na Constituição é ampla e abrange todos os danos resultantes da ação ou omissão dos agentes do Estado. Não cabe também se confundir a questão do controle de constitucionalidade por omissão, ainda ineficaz e, sobretudo, político (na medida em que limita-se a censurar o legislador) com a responsabilidade civil que advém da omissão inconstitucional do Estado. O ato de legislar ou deixar de fazê-lo não é livremente discricionário, está vinculado aos preceitos constitucionais e, assim, está juridicizado, não tendo a característica de ato exclusivamente político que o tornaria insuscetível de responsabilização. Não procede a alegação quanto à prevalência de um entendimento contrário à responsabilização do Estado nas omissões legislativas em Portugal. A doutrina portuguesa admite, embora ainda em posição minoritária, como Jorge Miranda, a responsabilidade do Estado pelas referidas omissões.

O segundo argumento não prova a tese que pretende. Do fato da legislação constitucional prever apenas a possibilidade de declaração simples de inconstitucionalidade, com ciência ao poder competente para suprir a omissão, não resulta que, desta declaração de inconstitucionalidade não possa surgir mais qualquer efeito jurídico. A Constituição tem de ser compreendida como uma unidade sistemática, onde cada regra tem uma correlação direta com as demais. Assim, declarada pelo Judiciário a ilicitude da conduta do legislador ao omitir-se, desta ilicitude resulta o dever de indenizar aos particulares lesados.

O terceiro argumento é de ordem metajurídica: inexistindo norma infraconstitucional, não seria possível estimar o prejuízo dos particulares e assim, efetuar o ressarcimento. Ora, as questões de direito, por mais renhidas que sejam, não tornam incertos e ilíquidos os direitos.

Para se proceder à avaliação do dano deve-se realizar uma dupla operação de aproximação do justo valor, ou seja, valorando os critérios objetivos e subjetivos envolvidos na relação jurídica. Por critérios objetivos entende-se o  período a partir de quando se tornou o legislador em mora do seu dever de legislar e o valor in abstracto do bem lesado, através de meios de estimação automáticos ou tarifados, constantes para todos os casos; por critérios subjetivos deve-se entender o momento que se configuraram os prejuízos quantificáveis da vítima: esta apreciação in concreto importa em se levar em conta que distintos bens podem ter sido lesados em diferentes momentos para distintos sujeitos.

Como porém, efetuar essa valoração? Que importância e que pesos deve-se atribuir a cada um desses conjuntos de critérios?  As respostas a estas perguntas estão diretamente relacionadas com a idéia que se tem acerca da natureza jurídica da reparação do dano decorrente da omissão legislativa.

Encarada esta como simples compensação ou derivativo do dano sofrido, deve-se valorar substancialmente o aspecto objetivo da avaliação do dano, de modo a não converter a mesma em fator de enriquecimento sem causa da vítima. Entretanto, encarada a reparação como integral, assume relevo o aspecto subjetivo da mesma, a gravidade do dano causado e outros valores porventura em causa.

Quanto à questão de se ter por via oblíqua, meio adequado de ressarcir-se dos prejuízos sofridos, dando ao particular o poder de produzir um efeito que não teria a própria ação direta de inconstitucionalidade por omissão, cabe salientar que não se deve confundir o adimplemento normal da obrigação, com a realização da prestação específica, com aquela situação que exsurge do inadimplemento traduzida pela responsabilidade. À vítima interessa primordialmente o gozo do seu direito. É exclusivamente porque esta não consegue ver este interesse primordial satisfeito, em decorrência da omissão inconstitucional do legislador, que esta ajuíza a ação de responsabilidade. Esta ação não dá à vítima aquilo que lhe asseguraria a ação direta de inconstitucionalidade por omissão se vitoriosa: a edição da legislação infraconstitucional integradora que irá, afinal, garantir o seu direito postergado. A responsabilidade apenas lhe dá um sucedâneo imperfeito, qual seja, a conversão do seu direito em um equivalente em pecúnia, mas que não é a mesma coisa de ter assegurada a fruição do direito outorgado pela Constituição.

As demais considerações aduzidas pelo jurista gaúcho são um corolário da sua argumentação inicial. Afirma que não pode a declaração de inconstitucionalidade retroagir ex tunc porque a própria norma legislativa a ser editada não poderia fazê-lo; assevera ainda que não há possibilidade de calcular a mora legislatoris se a própria lei não fixar prazo para tanto.

Não procede o último argumento. O juiz pode perfeitamente quantificar objetivamente, em cada situação de fato, a época a partir da qual se poderia considerar o legislador em mora. Isto é feito cotidianamente na justiça, como, por exemplo, para avaliação da urgência requerida pelo art. 62 da CF para edição de regras jurídicas por medidas provisórias, que os tribunais têm avaliado em, mais ou menos 100 dias (tempo médio de tramitação regular nas duas Casas do Congresso). Se a matéria da medida provisória não requerer esse prazo reduzido, podendo ser apreciada com mais vagar, cabe o controle da discricionariedade do Presidente da República nesse aspecto.

Também a questão da suposta retroatividade não resiste a uma análise mais minuciosa. O princípio da efetividade da Constituição se traduz na idéia de que não se pode admitir que os preceitos constitucionais e, especialmente os definidores de direitos e garantias fundamentais, fiquem à espera indefinida da confecção de normas infraconstitucionais regulamentadoras da Lei Maior. Se assim o fosse, como bem argumenta Flávia Piovesan, configurar-se-ia verdadeira subversão da ordem jurídica, apresentando-se a omissão do legislador infraconstitucional como mais eficaz que a atuação do constituinte, a inexistência de norma regulamentadora mais vinculante que a existência de norma constitucional[16].

Portanto, os direitos estabelecidos na Constituição e dependentes de legislação integradora tem existência   e validade no momento em que a Lei Maior é promulgada, apenas não são dotados ainda de eficácia, ou seja, da capacidade jurídica de produzir os efeitos que lhes são próprios. Então a norma quando fixa a responsabilidade a partir do momento no qual o legislador incorreu em mora, na realidade está apenas delimitando o instante nos quais esses direitos já existentes e válidos, deveriam ter se tornado eficazes e não o foram. Desta ilicitude, desse descumprimento do dever jurídico-constitucional decorre a responsabilidade.

Não há deste modo, nenhuma razão jurídica de ordem superior que permita subtrair a disciplina das omissões legislativas à regra ampla e genérica da responsabilidade do Estado legislador.

Questão igualmente complexa é aquela relativa ao mandado de injunção. A Constituição de 1988 dispôs em seu texto que o cidadão terá uma ação contra o Estado sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades fundamentais:

“Art. 5º - ............ 

LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;”. 

Trata-se de uma verdadeira ação constitucional que, tal qual a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, também se destina ao controle da inconstitucionalidade por omissão, só que aqui em controle difuso e não abstrato.

É cabível o mandado de injunção tanto na hipótese de omissão legislativa absoluta quanto na relativa, que afronte o princípio da isonomia, o que ocorre ante a exclusão legal de benefício. Nesse sentido, a omissão legislativa parcial seria equiparável à falta de norma regulamentadora, o que ensejaria o cabimento de mandado de injunção para estender a disciplina legal aos grupos impetrantes excluídos, de modo a tornar viável o exercício de direito constitucional[17].

O objeto do mandado de injunção é assegurar o exercício de qualquer direito constitucional não regulamentado (e não somente aqueles constantes do título II da Lei Maior, como entende corrente restritiva[18]); de qualquer liberdade constitucional não regulamentada e também das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania também quando não regulamentadas[19]. Pode ser impetrado por toda e qualquer pessoa e também por entes coletivos para a tutela de todo direito individual ou coletivo não exeqüível por falta de norma regulamentadora.

Quanto aos efeitos da decisão judicial concessiva da injunção são três as possibilidades. Estima-se que, ao conceder a injunção pode caber ao Poder Judiciário: a) elaborar a norma regulamentadora faltante, suprindo, deste modo, a omissão do legislador; b) declarar inconstitucional a omissão e dar ciência ao órgão competente para a adoção das providências necessárias à realização da norma constitucional e c) tornar viável, no caso concreto, o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional que se encontrar obstado por faltar norma regulamentadora.

A primeira teoria não pode ser admitida porque ao pretender que no mandado de injunção seja elaborada a norma regulamentadora faltante de modo a suprir a omissão do legislador, isso importaria em converter o mandado de injunção de instrumento de tutela de direito subjetivo em instrumento de tutela do direito objetivo[20].

Também não se pode admitir a segunda teoria. Se no julgamento do mandado de injunção o Poder Judiciário se limitasse a declarar inconstitucional a omissão e dar ciência ao órgão competente para adoção de providências necessárias à realização da norma constitucional, estar-se-ia a atribuir ao mandado de injunção idêntica finalidade à da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Faltaria logicidade e coerência ao sistema constitucional se se criasse dois instrumentos jurídicos com idêntica finalidade[21].

A teoria que efetivamente se coaduna com a sistemática constitucional e com o princípio de efetividade da Constituição é aquela que entende que a sentença concessiva da injunção contém uma declaração de certeza quanto a um direito fundamental preexistente, mas a isso acrescenta um quid, ou seja, confere àquele direito a eficácia que se encontrava neutralizada por falta de norma regulamentadora[22].

O mandado de injunção empresta assim, ao direito a eficácia que, até então, estava neutralizada por falta de norma regulamentadora. A decisão proferida em mandado de injunção permite, assim, remover no caso concreto, a inconstitucionalidade por omissão em matéria de direitos subjetivos fundamentais. No caso de lacuna inconstitucional caberá ao Poder Judiciário criar a norma de decisão para o caso concreto, dentro da teleologia do sistema normativo existente, sendo-lhe vedado editar normas de regulação gerais e abstratas[23].

O Supremo Tribunal Federal tem paulatinamente se aproximado dessas conclusões majoritárias da doutrina. Inicialmente este considerou que o novo instrumento processual criado pela Constituição de 1988 acarretava, se procedente, a mesma conseqüência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, qual seja, a ciência ao Poder, órgão ou autoridade omissos para a adoção das providências necessárias à regulamentação. Foi o que ficou assentado no julgamento do mandado de injunção nº 107-DF, o leading case na matéria: 

“ Mandado  de  injunção.  Estabilidade  de  servidor   público

militar. Artigo 42, parágrafo 9., da Constituição Federal.  Falta  de legitimação para agir.

Esta Corte, recentemente, ao julgar o mandado de  injunção nº 188, decidiu por unanimidade que só tem "legitimatio ad  causam" , em se tratando de mandado de injunção, quem pertença a categoria a que a Constituição Federal haja outorgado abstratamente  um  direito,  cujo exercício esteja obstado  por  omissão  com  mora  na  regulamentação daquele.

Em se tratando, como  se  trata,  de  servidores  públicos militares,  não  lhes  concedeu  a  Constituição  Federal  direito  à estabilidade, cujo exercício dependa de regulamentação desse direito, mas, ao contrário, determinou que a lei disponha sobre a estabilidade dos servidores públicos militares, estabelecendo quais os  requisitos que estes devem preencher para que adquiram tal direito.

Precedente do STF: MI 235. Mandado de injunção não conhecido. (MI-107 / DF - Mandado de Injunção - Relator: Ministro Moreira Alves - Julgamento 21/11/1990 - Tribunal Pleno - DJ 02-08-91 pp-09916 Ement. vol-01627-01 pp-00001 RTJ vol-00135-01 pp-00001)”.[24] 

Essa orientação modifica-se no julgamento do MI 232-1 quando o STF ao apreciar pedido de efetivação do disposto no art. 195, § 7º da Carta de 1988 declarou o estado de mora do Congresso Nacional, fixando-lhe o prazo de seis meses para que elaborasse a aludida lei, sob pena de, vencido o prazo, sem legislar, passasse o impetrante a gozar da imunidade requerida: 

“Mandado de injunção. Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado  de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. do artigo 195 da Constituição Federal.

Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo  59  do ADCT, de mora, por parte do Congresso,  na  regulamentação  daquele preceito constitucional.

Mandado de injunção conhecido, em  parte,  e,  nessa  parte, deferido para declarar-se o estado de  mora  em  que  se  encontra  o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses,  adote  ele as providencias legislativas que se  impõem  para  o  cumprimento  da obrigação  de  legislar  decorrente  do  artigo   195, par.  7.,   da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa  obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.

(MI-232 / RJ - Mandado de injunção - Relator: Ministro Moreira Alves -  Julgamento 02/08/1991 - Tribunal Pleno - DJ 27-03-92 pp-03800 Ement. vol-01655-01 pp-00018 RTJ vol-00137-03 pp-00965)”.[25] 

Com essa decisão assume o Supremo Tribunal Federal um papel mais pujante no processo de efetivação dos direitos constitucionais, recuperando no mandado de injunção a função de instrumento eficaz na tutela de direitos fundamentais.

Cabe salientar, todavia, que embora o mandado de injunção permita ao Poder Judiciário uma interpretação criativa, construindo, à luz do sistema jurídico, uma solução satisfatória de modo a concretizar o direito constitucional do impetrante, essa interpretação tem limites, ainda que elásticos, no princípio da separação dos poderes. Não se admitir num Estado democrático de direito que o problema da forma de concretização de todo e qualquer direito constitucional, liberdade constitucional ou prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania, não regulamentados, seja exclusivamente contemplado através de uma justiciabilidade ilimitada e impraticável, e de uma substituição do legislador, democraticamente legitimado, por um legislador apócrifo: o juiz e as instâncias judiciais. Como bem expõe Canotilho: 

“ Em sede de constituição dirigente, não tem grande sentido nem alcance prático falar-se dos tribunais ou de um tribunal constitucional como ‘defensor da constituição’. Não que, nos termos anteriormente referidos, não lhes possa caber também uma função relevante na realização constitucional. Todavia, quer pela especificidade das suas funções, quer pelos problemas de legitimação democrática, o alargamento das funções do juiz a tarefas de conformação social positiva é justamente questionável. As dificuldades práticas de concretização judicial das imposições, o caráter ‘platônico’ das ordens, ‘apelos’ ou ‘condenações’ do silêncio legislativo, indiciam que eles não estão predestinados a ser o último reduto de defesa da ‘constituição não cumprida’”. [26] 

Deste modo deve-se ter presente em mente que o mandado de injunção só é instrumento hábil a garantir a exeqüibilidade do direito constitucional não regulamentado se a própria norma já contiver em seu bojo suficiente densidade sêmica para possibilitar uma aplicação direta pelos tribunais[27]. Em todos os demais casos, na impossibilidade de concessão pelo Tribunal do direito pleiteado, e declarada por este a inconstitucionalidade da omissão legislativa, com eficácia inter partes, caberá ao prejudicado demandar nas instâncias próprias a responsabilidade civil do Estado legislador.

O princípio da efetividade da Constituição não se coaduna com a existência de espaços vazios não normatizados. Se o exercício de um direito constitucionalmente assegurado está sendo obstaculizado pela ausência de norma regulamentadora, numa omissão inconstitucional e se, ao Judiciário falece competência para suprir a lacuna no caso concreto por falta de densidade sêmica da norma constitucional, a situação deverá se resolver no âmbito da responsabilidade civil do Estado legislador, com a conversão do direito inconstitucionalmente negado no seu equivalente em pecúnia.

A mesma solução jurídica será dada naqueles casos em que, embora o mandado de injunção tenha assegurado seu êxito, com a concessão pelo Tribunal do direito negado pela omissão, haverá ainda direito acessório à reparação dos danos ocorridos médio tempore, ou seja, entre a data na qual objetivamente a legislação integradora deveria ter sido promulgada e a data da efetiva imputação judicial do direito ao particular que o teve negado.

O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu essa responsabilidade civil do Estado legislador no julgamento do MI nº 283-5. Versava a questão sobre a viabilização do direito previsto no art. 8º, § 3º do Ato das Disposições Transitórias, qual seja, o direito dos “cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5 à reparação de natureza econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição”. Considerou implicitamente que, não sendo possível ao STF dar ao impetrante a efetiva concretização do seu direito, por não poder se substituir ao legislador, nem por isso aquele direito poderia ficar sem amparo e assim reconhecia ao impetrante a faculdade de obter contra a União, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida, ou seja, declarava existente, no caso uma responsabilidade civil do Estado pela omissão do dever concreto de legislar. Como se depreende dos termos da decisão: 

“Mandado de injunção: mora legislativa  na  edição  da  lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica contra  a  União, outorgado pelo  art.  8., par. 3.,  ADCT:  deferimento  parcial,  com estabelecimento de prazo para a  purgação  da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a  obter,  em  juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos.

1. O STF admite -  não  obstante  a  natureza  mandamental  do mandado de injunção (MI 107 - QO) - que, no  pedido  constitutivo  ou condenatório,  formulado  pelo  impetrante,   mas,   de   atendimento impossível,  se  contem  o  pedido,  de  atendimento possível,  de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra (cf. Mandados de  Injunção  168, 107 e 232).

2. A norma constitucional invocada (ADCT, art. 8.,  par. 3. -

"Aos  cidadãos  que  foram  impedidos  de  exercer,  na  vida  civil, atividade  profissional  especifica,  em  decorrência  das  Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica n. S-50-GM5, de 19  de  junho de 1964, e n. S-285-GM5 será concedida reparação econômica, na  forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e  a  entrar  em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição" - vencido o prazo nela previsto, legitima o beneficiário da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada  a  existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício  obstado pela omissão legislativa denunciada.

3. Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado e a entidade estatal a qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício,  e  dado  ao  Judiciário,  ao  deferir  a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o  provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de  modo a facultar-lhe, quanto  possível,  a  satisfação  provisoria  do  seu direito.

4. Premissas, de que resultam, na espécie, o  deferimento  do

mandado de injunção para:

a) declarar em mora o legislador com  relação  a  ordem  de legislar  contida  no    8.,  par.  3.,  ADCT,  comunicando-o  ao Congresso Nacional e a Presidência da Republica;

b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a   sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo  legislativo  da  lei reclamada;

c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via  processual  adequada,  sentença  liquida  de  condenação  a reparação  constitucional  devida,  pelas  perdas  e  danos  que   se arbitrem;

d) declarar que, prolatada a condenação,  a  superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada, que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos  pontos  em que lhe for mais favorável.

(MI-283 / DF - Mandado de injunção - Relator: Ministro Sepúlveda Pertence - Julgamento 20/03/1991 - Tribunal Pleno - DJ 14-11-91 pp-16355 ement. vol-01642-01 pp-00001 - RTJ vol-00135-03 pp-00882)”.[28] 

A doutrina mais moderna tem se direcionado também para essa vertente. Maria Emília Alcântara igualmente advoga a tese, fundada no princípio da efetividade da Constituição (que não admite a existência de normas constitucionais despidas de sentido prático e operativo), que a omissão do legislador por prazo razoável de tempo permita a propositura de ação de indenização por quem sofrer danos em virtude de ser titular de um direito garantido pela Constituição mas impedido de o exercer por inércia legislativa[29].

Maria Helena D’Arbo Freitas posiciona-se também em idêntico diapasão. Para ela, uma vez que o sistema concentrado de controle de constitucionalidade das leis não admite uma ampla titularidade para a propositura da ação de inconstitucionalidade por omissão, a responsabilidade estatal não pode ficar vinculada à prévia decisão declaratória de omissão. O estado deve ser responsabilizado pela omissão legislativa no caso dos danos resultarem da inércia do legislador ordinário em editar normas destinadas a dar operatividade prática a direitos garantidos constitucionalmente, a fim de torná-los atuantes[30].

Em conclusão, após esse leading case, doutrina e jurisprudência parecem orientar-se pela admissão da existência no bojo da Constituição de deveres concretos e específicos de legislar e que, do inadimplemento desses deveres específicos, surge a responsabilidade civil do Estado pela omissão de legislar.

 

Referências: 

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção nº 232. Rio de Janeiro.  Mandado de injunção.   Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. Do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Relator: Min. Moreira Alves. Plenário, 02-08-91. Acórdão, DJ 27-03-92.  Site do STF. Acesso em 05.02.2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 283. Distrito Federal.  Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8, par. 3, ADCT:  deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Plenário, 20-03-91. Acórdão, DJ 14-11-91. Site do STF. Acesso em 05.02.2018.

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[1] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15-17.

[2] PIOVESAN, Flávia C. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995,  p. 93.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 330-331.

[4] ibidem, p. 331.

[5] ibidem, p. 332.

[6] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed.. Rio de Janeiro : Renovar, 1993, p. 161-162.

[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 342.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade (medida liminar) nº 19.5. Alagoas. Fernando Collor de Mello, Governador de Alagoas, e Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas. Relator: Min. Aldir Passarinho. Plenário, 23.02.89. Acórdão publicado no DJ 14.04.1989.  Site do STF. Acesso em 05.02.2018.  

[9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed.. Coimbra: Almedina, 1995. pp. 1091-1092.

[10] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t. II. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 375.

[11] PIOVESAN, Flávia C. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 105.

[12] ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília, Tese de Doutorado. Coordenadoria para a integração da pessoa portadora de deficiência. CORDE, 1994, p. 187-190.

[13] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 221.

[14] SILVA, Almiro do Couto e. A responsabilidade extracontratual ... . op. cit.. p. 38

[15] SILVA, Almiro do Couto e. A responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro.  Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, nº. 202, p. 19-41, out./dez. 1995,p. 38.

[16]PIOVESAN, Flávia C.. op. cit.,  p. 93.

[17] PIOVESAN, Flávia C.. op. cit..  p. 120.

[18] Ver BASTOS, Celso. Curso de direito constitucional. 12. ed.. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 222.

[19]Ver PIOVESAN, Flávia C.. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995, p. 123; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 390; VELLOSO, Carlos Mário. As novas garantias constitucionais.  RT 644-13; BARBI, Celso Agrícola. Mandado de Injunção.  RT 637-10.

[20] PIOVESAN, Flávia C.. op. cit..  p. 130

[21] ibidem, p. 133

[22] SANTOS, Aricê Amaral. O Mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 29.

[23] PIOVESAN, Flávia C.. op. cit..  p. 140.

[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 107. Distrito Federal.  Mandado de injunção.  Estabilidade de servidor público militar. Artigo 42, parágrafo 9, da Constituição Federal.  Falta de legitimação para agir. Relator: Min. Moreira Alves. Plenário, 21-11-90. Acórdão, DJ 02-08-91. Site do STF. Acesso em 05.02.2018.

[25] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção nº 232. Rio de Janeiro.  Mandado de injunção.   Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. Do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Relator: Min. Moreira Alves. Plenário, 02-08-91. Acórdão, DJ 27-03-92.  Site do STF. Acesso em 05.02.2018.

[26] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente.... op. cit.. p. 349.

[27] ibidem, p. 356

[28] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 283. Distrito Federal.  Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8, par. 3, ADCT:  deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Plenário, 20-03-91. Acórdão, DJ 14-11-91. Site do STF. Acesso em 05.02.2018.

[29] ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade do Estado por atos legislativos e jurisdicionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 69.

[30]FREITAS, Maria Helena D’Arbo Alves de. O Estado legislador responsável. Revista de Informação Legislativa. Brasília, nº 128, p. 285-295, out./dez. 1995, p. 294-295.

 

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