A responsabilidade civil do Estado por balas perdidas – Por Mauricio Mota

26/10/2016

O recrudescimento da violência urbana nas cidades brasileiras é uma característica do século XXI. A expansão dos territórios informais nos principais centros urbanos brasileiros deve ser encarada como um problema de primeira grandeza. Essa realidade cotidiana das grandes cidades e, particularmente, do Rio de Janeiro, vem reacendendo a discussão jurídica sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente de ferimentos ou óbitos causados por “balas perdidas”. A questão é complexa e deve ser esmiuçada em seus múltiplos aspectos, de modo a delimitar com rigor os limites dessa responsabilidade.

A segurança pública é dever do Estado e direito de todos (art. 144, CF), incumbindo às polícias estatais a preservação da incolumidade das pessoas e seus patrimônios. Tal atividade estatal deve ser juridicamente exigível dentro de padrões normais e razoáveis de conduta da autoridade pública. Se a cada pequeno furto, se a cada mínimo incidente, ocorrido muitas vezes em circunstâncias de extrema rapidez e súbita violência, o Estado fosse convocado a indenizar o particular, se estaria criando uma situação insustentável, erigindo-se o Estado em segurador universal (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 895-898).

Quando então se configura a responsabilidade civil do Estado em matéria de segurança pública? Tal gravame se configura sempre que resulta de uma ação dos agentes estatais ou de uma omissão juridicamente relevante. No caso de balas perdidas, são quatro as hipóteses de danos causados a terceiros: a) quando o dano resulta da ação de marginais, em caso fortuito e imprevisível, como em assaltos nas vias públicas, com a caracterização da omissão genérica do Estado; b) quando o dano resulta de ação do agente do Estado, como em troca de tiros com marginais na qual um projétil de sua arma atinge um terceiro; c) quando o dano resulta de confronto entre policiais e marginais, sem que se saiba com certeza de onde partiu o disparo; d) quando o dano resulta de confronto unicamente entre marginais, em áreas de reiterada conflagração armada, havendo omissão específica do Estado.

No dano resultante da ação de marginais, em caso fortuito e imprevisível, como em assaltos nas vias públicas, com a caracterização da omissão genérica do Estado não se configura a responsabilidade do Estado. Na omissão genérica não há o fato juridicamente relevante, qual seja, um comportamento inferior ao padrão legal exigível na situação em apreço. O Estado não atuou dada a impossibilidade ou a instransponível dificuldade de fazê-lo (que depende dos recursos disponíveis em face das outras necessidades estatais) ou, ainda, pela imprevisibilidade do acontecimento. A garantia genérica da segurança pública representa um padrão mínimo de resguardo da coletividade e não uma proteção individualizada, subjetiva, de cada particular em todas as circunstâncias da vida social.

Nas ações em que ocorrem danos resultantes da ação de marginais, em caso fortuito e imprevisível, como em assaltos nas vias públicas, o decisivo será a instantaneidade da ação que gera a imprevisibilidade e, por isso, a inevitabilidade, esta sim, a característica do fortuito externo, a excluir a responsabilidade do Estado (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66-67). 

No dano resultante de ação do agente do Estado, em troca de tiros com marginais, na qual um projétil de sua arma atinge um terceiro há dever de indenizar. Assim, no caso de ação de policiais que, em troca de tiros com marginais, venham a atingir terceiros, é inequívoca a responsabilidade do Estado. Há, aqui, o nexo de causalidade entre a atividade da Administração (o disparo da arma pelo policial) e o evento danoso (o ferimento ou morte de terceiro). Provado que o tiro que atingiu o particular partiu da arma do policial (ação do Estado), surge para o poder público o dever de indenizar. São irrelevantes, no caso, as considerações de licitude da atividade administrativa, de legítima defesa, etc. Sofrendo o indivíduo um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade de todos na repartição dos ônus e encargos sociais. É a jurisprudência dos Tribunais:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DISPARO DE ARMA DE FOGO. FUNCAO POLICIAL. MORTE DA VITIMA. DANO MORAL. DESPESAS DE FUNERAL. HONORARIOS DE ADVOGADO. ISENCAO DE CUSTAS. Responsabilidade Civil. Vítima atingida por projétil disparado por policial. Nexo causal suficientemente provado. Valor do dano moral por morte de marido e pai. Fixação de tal valor em reais, com correção monetária. Reembolso das necessárias despesas de funeral, independentemente de comprovação. Percentual relativo a honorários de advogado incidente sobre montante das parcelas vencidas mais doze das vincendas. Estado isento de custas. Recurso provido parcialmente (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 2001.001.06156. 12ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Reginaldo de Carvalho. Julgamento em 04 de setembro de 2001).

Cabe ressaltar que se equipara à situação do agente público agindo no exercício de suas funções, quando o agente, embora fora do serviço, age na qualidade de servidor público, ou seja, procedendo (legal ou ilegalmente) como se estivesse a exercer sua função. É o caso de policiais que perpetram crimes em chacinas, para “livrar a comunidade da criminalidade”.

O terceiro caso, o confronto entre policiais e marginais, sem que se saiba com certeza de onde partiu o disparo, via de regra, não enseja a responsabilidade do Estado. Indeterminada a origem do disparo, não pode haver a responsabilização do Poder Público por ausência de nexo de causalidade entre sua ação em defesa da coletividade e o dano causado a terceiro. O preceito constitucional não responsabilizou a Administração por atos criminosos de terceiros que só a estes podem ser imputados:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. NEXO DE CAUSALIDADE. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. BALA PERDIDA. OMISSÃO ESPECÍFICA DO ESTADO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. Em havendo omissão específica por parte de agentes do Estado, a responsabilidade civil exsurge objetivamente. Todavia, se para sua configuração é irrelevante o exame da culpa, nem por isso fica o demandante dispensado da prova da conduta do agente, do evento danoso e do nexo causal entre eles existente. Portanto, inexistindo nos autos comprovação de que o projétil de arma de fogo causador do ferimento sofrido pela apelante tenha partido de uma das armas utilizadas pelos Policiais Militares que participaram do confronto narrado na exordial, não há como se imputar ao Estado a responsabilidade pelo dano a ela causado. Não restando estabelecido o nexo, impossível a cogitação acerca de eventual responsabilidade. Recurso desprovido, nos termos do voto do Desembargador Relator (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 2004.001.04270. 7º Câmara Cível. Relator: Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo. Julgamento em 17 de agosto de 2004). 

No entanto, deve ser ressalvado que, na ausência de um dever de cuidado do Estado na condução das ações policiais contra marginais, exsurge um dever de indenizar. O art. 5º, X, da Constituição da República, positivou o princípio impositivo do dever de cuidado (neminem laedere) como norma de conduta, assegurando proteção à integridade patrimonial e extrapatrimonial da pessoa inocente, estabelecendo como sanção a obrigação de reparar os danos, independentemente da verificação de culpa.

A falta de diligência e prudência do lesante em todo dano injusto resulta implícita na ação (em ato ilícito ou lícito) violadora da norma jurídica impositiva do dever de cuidado (neminem laedere), de forma evidente ou verossímil ipso facto, implicando a inexorável reversão da prova em caso de excepcional existência de causa de exclusão da responsabilidade civil, sob pena de se deflagrar a obrigação de reparar os prejuízos. A conduta comissiva perpetrada, qual seja, a participação no evento danoso, causando dano injusto às vítimas inocentes, conduz à sua responsabilização, mesmo com um atuar lícito, estabelecendo-se, assim, o nexo causal necessário, como assentado pelos Tribunais:

DILIGENCIA POLICIAL COM TROCA DE TIROS. BALA PERDIDA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. OBRIGAÇÂO DE INDENIZAR. Responsabilidade civil do Estado. Art. 37, par. 6. da CRFB/88. Ato lícito da administração. Troca de disparos de arma de fogo em via pública. Bala perdida. Dever de indenizar. O art. 5º, X da Lei Maior positivou o princípio impositivo do dever de cuidado ("neminem laedere") como norma de conduta, assegurando proteção à integridade patrimonial e extrapatrimonial de pessoa inocente, e estabelece como sanção a obrigação de reparar os danos, sem falar em culpa. A CRFB/88, em seu art. 37, par. 6, prestigiou a Teoria do Risco Administrativo como fundamento para a responsabilidade civil do Estado, seja por ato ilícito da Administração Pública, seja por ato lícito. A troca de disparos de arma de fogo efetuada entre policiais e bandidos conforme a prova dos autos impõe à Administração Pública o dever de indenizar, sendo irrelevante a proveniência da bala. A conduta comissiva perpetrada, qual seja, a participação no evento danoso, causando dano injusto à vítima inocente, conduz à sua responsabilização, mesmo com um atuar lícito, estabelecendo-se, assim, o nexo causal necessário. Desprovimento do recurso (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 2007.001.32436. 9ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Roberto de Abreu e Silva. Julgamento em 04 de setembro de 2007).

A imputação dos danos por confrontos entre agentes públicos e marginais, sem determinação da origem dos disparos, passa, desse modo, pela insusceptibilidade de se tomar como causa da imputação uma causalidade naturalística, como a do dano direto e imediato.

A causalidade, nessa hipótese, deve ser uma causalidade jurídica ou normativa, que atenda a dois requisitos básicos: primeiro, deve ser valorativamente adequado, máxime deve cumprir a finalidade de seleção dos danos a atribuir ao agente, limitando a respectiva responsabilidade; em segundo lugar, o critério de imputação deve ser juridicamente operativo, ou seja, deve funcionar como efetivo e útil instrumento jurídico na tarefa de identificação do nexo de causalidade, na situação concreta.

Deve-se partir da ideia de risco, ou seja, da prevenção, de que serão normativamente imputáveis os danos derivados de um risco específico ou aumentado pelo agente. Em outras palavras, serão normativamente imputados os danos que excederem a confiança, a ideia de risco aceitável pela comunidade. Por essa teorização, deve-se fazer a imputação dos danos ao agente através da demarcação de áreas de risco, de tal maneira que haveria que separar os danos que resultam do “risco geral da vida” e os danos derivados de um risco específico ou aumentado pelo agente - susceptíveis de lhe serem imputados.

Consectariamente, os pressupostos da responsabilidade objetiva impõem ao Estado provar a inexistência do fato administrativo, de ausência de nexo de causalidade entre o fato e o dano, o que atenua o princípio de que o ônus da prova incumbe a quem alega. Na responsabilidade objetiva, a imputação do dano ao Estado se dá pela prova do agravamento do risco inerente à atividade por ele perpetrada, em detrimento do lesado. Assim, inverte-se o ônus probatório quanto à ocorrência do agravamento ilícito do risco específico, incumbindo ao Estado provar que a procedência do tiro de arma de fogo, decorreu de projéteis dos marginais e não dos seus agentes, a fim de eximir-se da responsabilidade objetiva: 

Consectariamente, os pressupostos da responsabilidade objetiva impõem ao Estado provar a inexistência do fato administrativo, de dano ou ausência de nexo de causalidade entre o fato e o dano, o que atenua sobremaneira o princípio de que o ônus da prova incumbe a quem alega.

Contudo, na hipótese vertente, o acórdão deixou entrever que os autores deixaram de produzir prova satisfatória e suficiente de que o óbito da vítima resultou de imperícia, imprudência ou negligência do policial militar que invadiu a casa da vítima, consoante se infere do voto de fls. 184/191, o que revela o provimento do recurso especial.

[..] Infere-se dos autos que o Policial Militar invadiu o domicílio da vítima, que restou assassinada por “bala perdida” no interior de sua própria residência, justamente quando procurava saber quem estava no teto da sua casa, não tendo o Estado logrado êxito em demonstrar a procedência do tiro de arma de fogo, disparado de “cima para baixo” no seu crânio, ônus que lhe incumbia, a fim de eximir-se da responsabilidade objetiva.

(...)

Frise-se que em nenhum momento houve qualquer afirmação pelos policiais em depoimento de que teriam subido na casa da vítima porque ali se estaria praticando qualquer crime, ou porque lá havia qualquer traficante.

Ao contrário, um dos policiais ouvidos, às fls. 97, inclusive declarou que ‘soube pelo sargento Firmo que ele teria subido na laje da casa da vítima para vasculhar a área.’

(...)

Com efeito, a ação dos agentes do Estado contribuiu de forma decisiva para o evento ocorrido, e neste particular, independentemente da perquirição de culpa ou dolo dos agentes, para o particular que se viu lesionado por bala perdida, sem qualquer participação na perseguição, existe a possibilidade de reparação dos danos sofridos. Isto porque há a responsabilidade civil do Estado face à comprovação indiscutível de que o ato do agente policial foi concausa para os danos patrimoniais e morais de que hoje sofrem os autores da presente ação indenizatória.”

Tendo em vista ser cabível a condenação de indenização a título de danos morais e materiais, ratifico o teor da parte dispositiva da sentença, fl. 125, para adotar suas razões de decidir, in verbis:

(...) Ante o exposto, julgo procedente, em parte, o pedido indenizatório, para condenar o réu a pagar aos autores” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº. 737.797/RJ. Primeira Turma. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento em 03 de agosto de 2006).

A quarta hipótese é a do dano resultante de confronto unicamente entre marginais, em áreas de reiterada conflagração armada, com omissão específica do Estado. Também neste caso, como regra geral, não cabe a responsabilidade do Estado:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. LESÃO EM VÍTIMA CAUSADA POR BALA PERDIDA. DEVER DE SEGURANÇA DO PODER PÚBLICO. OMISSÃO GENÉRICA. 1) Não se pode, com arrimo no artigo 37, §6º da CRFB, conferir ao Estado a qualidade de segurador universal, uma vez que o referido dispositivo constitucional não consagrou a teoria do risco integral. 2) Somente restaria caracterizado o nexo de causalidade entre o dano e a inação estatal na hipótese de omissão específica do Poder Público, a qual pressupõe ter sido este chamado a intervir, ou se o disparo tivesse ocorrido por ocasião de confronto entre agentes estatais e bandidos, o que não restou comprovado na hipótese. 3) Ainda que se perfilhasse o entendimento de que, no caso de omissão, a responsabilidade do Estado é subjetiva, não se tem por caracterizada a culpa, se não comprovada a ausência do serviço ou sua prestação ineficiente, vez que não se pode esperar que o Estado seja onipresente. 4) Provimento do primeiro recurso. Prejudicada a segunda apelação. (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 2007.001.63327. 2ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Heleno Ribeiro P. Nunes. Julgamento em 19 de dezembro de 2007). 

Não obstante, decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro admite em tese que, quando tais confrontos se dão, de maneira reiterada e contínua, numa área geográfica perfeitamente delimitada, com a constante desídia do Estado em garantir a segurança de tais áreas, que se tornam verdadeiros territórios propícios ao crime, surge a omissão juridicamente relevante, que configura a responsabilidade do Estado. Tal comportamento omissivo da Administração constitui, nesse caso, condição deflagradora do dano praticado por terceiro e causa do mesmo:

No mais, cumpre esclarecer que, no local onde ocorreu o acidente, não restou configurada uma omissão específica do Estado, no que diz respeito ao seu dever de segurança pública. Ou seja, não restou caracterizada a alegada omissão ou mesmo qualquer negligência por parte do Estado, posto que a demanda não traz notícia de reiterados incidentes envolvendo a ação de bandidos naquela região.

Em outras palavras, não vislumbro uma ação estatal deficiente em conhecida área de risco ou mesmo eventual ação reincidente de marginais, capaz de chamar o ente público à sua responsabilidade de indenizar a cidadã que veio a ser atingida por bala perdida, não se sabe vinda de onde. (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 2008.001.08220. 19ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Ferdinaldo do Nascimento. Julgamento em 01 de abril de 2008). 

Na hipótese em questão, apenas algumas decisões de primeira instância vem admitindo tal responsabilização e, mesmo estas, não têm sido confirmadas pelo Tribunal. Para a caracterização de tal tese de responsabilidade do Estado por ato omissivo é necessário que a omissão seja de caráter prolongado e não fortuita. O padrão mínimo de exigibilidade de garantia da segurança pública da coletividade é atingido pela omissão reiterada do Estado, tornando-se essa omissão a causa do evento danoso (por ausência de repressão) e, assim, acarretando a responsabilidade civil do Estado, in verbis:

No caso em julgamento, restou comprovado que o autor foi atingido por ´bala perdida´ oriunda de guerra entre traficantes, quando conduzia seu veículo pela Estrada Grajaú-Jacarepaguá, do que resultou a paralisia dos seus membros inferiores. Ora, é sabido que a aludida via é reputada de alta periculosidade, eis que cercada por favelas dominadas pelo tráfico de entorpecentes, sendo certo que, na ocasião do disparo, restou apurada a existência de tiroteio entre bandidos dos morros Cotios e Cachoeirinha, objetivando o controle dos pontos de venda de drogas.

De fato, a omissão específica quanto ao policiamento na referida região é fato público e notório, tratando-se de zona de alto risco, na qual é frequente tanto o confronto entre traficantes, como falsas blitz, revelando a insuficiência de medidas administrativas eficientes capazes de evitar danos como o sofrido pelo autor. Com efeito, tal situação somente confirma a responsabilidade do réu, pela falha no dever de prestar uma segurança pública minimamente eficiente, de forma a ´preservar a ordem pública´ e garantir a ´incolumidade das pessoas´, tal como exigido pelo art. 144, § 6º da CF, evitando que fatos como este, envolvendo guerras de traficantes por pontos de venda de drogas, de onde surgem ´balas perdidas´ como a que atingiu o autor, continuem a ocorrer com a frequência inaceitável com que ocorrem. Isso porque, admite-se que em qualquer país, mesmo de primeiro mundo, haja assaltos, mortes, roubos, assassinatos em série, e até, eventualmente, morte por PAF não identificado, sem que o Estado possa ser responsabilizado por isso, dado o caráter eventual e esporádico com que ocorrem.

No entanto, não se pode admitir que, em um estado de direito, no qual haja segurança pública minimamente eficiente, pessoas sejam frequentemente vítimas de ´balas perdidas´, sempre nos mesmos locais, cuja periculosidade é conhecida de todos, sejam elas oriundas do confronto entre bandidos e polícia, ou o que é pior, do confronto entre facções criminosas, na busca pelo domínio de regiões dominadas pelo tráfico, nas quais o Estado se faz ausente. A frequência com que tais fatos ocorrem na cidade, em especial no local em que o autor foi atingido, torna específica e abusiva a omissão estatal, no que pertine a prestação de segurança pública, afastando a imprevisibilidade e a inevitabilidade que, em regra, serve para justificar a ausência de responsabilidade e afastar a sua obrigação de indenizar.

Neste sentido, vale observar que, de forma análoga, a jurisprudência evoluiu, em dado momento, para admitir a responsabilização das empresas de ônibus, por assaltos ocorridos em certos trechos, cuja frequência pressupõe a previsibilidade e evitabilidade do fato (RIO DE JANEIRO. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.  5ª Vara de Fazenda Pública. Ação Ordinária nº 2003.001.008532-9. Autor: Otacílio Carvalho França. Réu: Estado do Rio de Janeiro. Juiz: Gustavo Bandeira. Julgamento em 18 de março de 2005).

Nessa imputação em tese de responsabilidade civil faz-se a prova de tal omissão específica, pelos meios usuais de prova admitidos em direito, ou seja, através de testemunhas, perícias de balas alojadas nas paredes de casas e edifícios, configurações balísticas de linhas de tiro, desvalorização do preço dos imóveis situados em áreas conflagradas, juntada de reclamações reiteradas à Polícia sem que fossem tomadas providências, anotação dos apartamentos onde são colocadas placas de aço nas janelas, etc.

Em conclusão, se procurou aqui abordar tema de especial relevo na atual conjuntura do Rio de Janeiro: o crescimento da violência urbana e a eventual responsabilidade do Estado em consequência de lesões causadas a particulares por “balas perdidas” – seja pela ação de criminosos, isoladamente, seja pela ação policial, nos casos de confronto armado. A discussão centrou-se nas principais hipóteses da ocorrência de ilícito e na deflagração ou não da obrigação do Estado de reparar o dano causado em cada caso. Ao adentrar na seara da responsabilidade civil, analisamos os contornos da responsabilidade civil do Estado, particularmente em relação à sua responsabilidade por omissão.


Imagem Ilustrativa do Post: Dangers of the job // Foto de: Kenny Louie // Sem alterações

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