Por Letícia Bürgel – 19/05/2016
Na história do Direito Penal, a vítima sempre ocupou um papel passivo, como uma mera parte ofendida. No entanto, a doutrina moderna vem, gradualmente, reforçando a necessidade de se atribuir um maior destaque ao seu comportamento, o qual passa a ser encarado de forma dinâmica, baseado em um agir comunicativo.[1]
Nessa linha, em alguns casos, ainda que o agente tenha contribuído causalmente para o resultado, este não lhe será imputado nas hipóteses em que, a vítima, deliberadamente, se colocou em perigo ou se autolesionou. Assim, se duas pessoas resolvem participar, cada uma com seu veículo, de uma corrida de carros em zona urbana, a responsabilidade pelos efeitos danosos que advenham de suas condutas não poderá ser estendida à outra, salvo se esta, efetivamente, tenha provocado diretamente o acidente.[2]
Trata-se de hipóteses em que haveria a exclusão da tipicidade do delito, na medida em que a as próprias vítimas criam um perigo (desnecessário) para si mesmas.[3] Aqui vigora o princípio que, nos limites do tipo, não podem ser abarcados eventos nos quais a vítima tenha contribuído para a realização do resultado, de forma voluntária e decisiva. Contudo, para que seja excluída a imputação não basta apenas que a vítima tenha se exposto a um perigo, pois sua contribuição para o evento deve ser, no cômputo geral, suficiente para a sua ocorrência.[4]
Dessa forma, um traficante que entrega a um usuário substância entorpecente para consumo, estando ambos conscientes do risco a que estão submetidos, e o usuário que faz uso da substância, vindo a falecer em razão de uma overdose, não acarreta, necessariamente, a imputação do resultado ao traficante. Afinal, apesar de ele conhecer a toxidade da substância, saber do perigo em que consiste a sua ingestão, o usuário é capaz, tendo potencial conhecimento da ilicitude e poder de determinar-se conforme seu entendimento, de modo que ele pode responder por seus próprios atos independentemente da contribuição de outrem, pois ele escolheu se expor a um determinado perigo.[5]
No exemplo acima referido, nota-se que a vítima não participou da criação do risco, contudo, ao livremente aplicar-se a substância entorpecente, chamou para si a responsabilidade dos possíveis desdobramentos da sua ação, desincumbindo da norma o efeito protetivo que normalmente lhe deve advir. Segundo Mascarenhas Júnior, nos casos de autolesão não há que se falar em relevância jurídica para a conduta do partícipe, uma vez que a autolesão não se reveste de tipicidade, pois aquele que sofre o dano é o último que criou a condição necessária pra a produção do resultado.[6]
O cerne da questão reside, na verdade, em investigar se, com a atuação da vítima, a conduta do terceiro de mostra irrelevante na produção do resultado, a ponto de justificar a exclusão da imputação. De acordo com Greco, para que a imputação do resultado seja excluída nos casos de autocolocação em perigo é necessária a observância de dois critérios. O primeiro é que a própria vítima se coloque em perigo, e não o autor. O segundo requisito é que a vítima seja responsável, tenha capacidade suficiente para determinar-se de acordo com a sua própria vontade.[7]
No direito brasileiro, não se pune a autolesão e o suicídio, mas em relação a este último, há a previsão de uma pena para o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, contudo, unicamente na modalidade dolosa, sendo excluída a responsabilidade do colaborador na hipótese de ter agido com culpa. Assim, à luz da legislação brasileira, quem entrega dolosamente a outrem uma droga para que com ela se suicide, cometerá apenas o delito previsto no artigo 122 do Código Penal,[8] e não homicídio. Contudo, se a entrega não for vinculada dolosamente ao suicídio, mas ao simples uso, ainda que gere riscos à vítima, o cedente responderá apenas pelo crime de tráfico.[9]
No âmbito da jurisprudência brasileira se tem notícia do processo em que a vítima faleceu após cair da carroceria de uma camionete. Em primeira instância, houve condenação fundamentada unicamente no nexo de causalidade entre a ação do motorista em conduzir a vítima em situação precária e o resultado morte, sem indagação acerca da imputação objetiva. Em segunda instância, foi corrigida a omissão, tendo ressaltado o juiz revisor que o motorista não estava sob o efeito de bebidas alcoólicas, dirigia em velocidade normal e obedecia todas as regras de circulação, exceto uma: a de transportar passageiros sem a devida segurança, o que, no entanto, foi objeto de advertência do motorista que teria imposto como condição para o transporte a necessidade de os passageiros permanecerem sentados durante todo o trajeto, não tendo sido atendido pela vítima, motivo pelo qual o comportamento da vítima foi o que determinou a ocorrência do resultado lesivo, e não a conduta do motorista. Assim, não houve, nesse caso, criação de uma situação de risco não permitida por parte do motorista, mas apenas uma participação na conduta perigosa da vítima.[10]
No entanto, há hipóteses em que não é a própria pessoa quem se coloca dolosamente em perigo, mas se deixa colocar por outrem, tendo consciência dos riscos a que está submetida.[11] Nesses casos, a realização do risco criado se dá por outra pessoa que não a vítima, contudo, é a motivação da vítima que anima o nexo de causalidade entre o agente e o resultado.[12]
Esta hipótese se diferencia da autocolocação em risco, pois aqui é o próprio agente quem executa a ação perigosa, contando, apenas, com a contribuição da vítima, enquanto na autocolocação em perigo a conduta lesiva é praticada pela própria vítima com a contribuição do agente. Segundo Tavares, nesses casos, não haverá imputação do resultado “quando o ponto de gravidade da ocorrência do dano se situa na dependência da ação da vítima.”[13]
A doutrina majoritária, bem como a jurisprudência, pretende resolver os problemas da heterocolocação em perigo consentida por meio da figura do consentimento do ofendido.[14] Contudo, segundo ROXIN, não é este o caminho mais viável, pois o consentimento no resultado raramente existe, tendo em vista que aquele que se expõe a um risco costuma confiar que tudo terminará bem.[15] Assim, o fato de a vítima ter aceito que outro participe de uma conduta perigosa e a exponha a perigo não significa, necessariamente, que ela tenha consentido na produção do resultado.[16]
De acordo com ROXIN, para que seja possível a exclusão da imputação objetiva do resultado na hipótese de heterocolocação em perigo consentida, a relação entre o autor e a vítima deve ser equivalente a uma autocolocaçãoem perigo. Essa equivalência dependeria dos seguintes pressupostos: primeiramente, o dano deveria surgir como a consequência da ação e do risco consentidos, e não de outros erros adicionais, não previstos. Além disso, a vítima deve ter o mesmo controle sobre o acontecimento que o autor, de modo que o resultado se encontre em uma esfera chamada de competência da vítima, havendo uma “organização conjunta” entre ela e o agente.[17]
A jurisprudência brasileira já se pronunciou sobre o tema em um acórdão do Tribunal de Minas Gerais, em que um delegado insistiu que seu subordinado (detetive) o levasse de viagem para Carandaí/MG, mesmo advertido que o carro da polícia não tinha condições, por estar “puxando”, conforme mecânicos afirmaram. Durante a viagem, o carro perdeu o controle, invadiu a contramão e colidiu com um caminhão, o que ocasionou a morte do delegado que estava no banco do passageiro. Em primeira instância, o detetive foi condenado pelo artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, nos moldes da doutrina tradicional. Contudo, no julgamento pelo Tribunal foi absolvido, pois a própria vítima, por livre e espontânea vontade, se colocou em situação de risco ao ordenar a seu subordinado que a conduzisse em um veículo desprovido de condições de segurança, das quais ela tinha sido advertida. Assim, o Tribunal reconheceu que o evento decorrente do comportamento imprudente não poderia ser atribuído ao autor, excluindo a imputação do resultado.[18]
Por todo o exposto, nota-se que o papel da vítima tem ganhado, cada vez, mais um maior destaque na análise acerca da imputação do resultado, não se atendo mais apenas ao âmbito da doutrina, na medida em que também passa a ser objeto de inúmeras decisões jurisprudenciais.
Notas e Referências:
[1] MASI, Carlo Velho. A teoria da imputação objetiva e a sua influência na moderna dogmática jurídico-penal. In: Revista Magister de Direito Penal e Processo Penal, n. 42, v. 7, 2011.p. 49.
[2] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Uma contribuição à teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.344.
[3] MASI, Carlo Velho. A teoria da imputação objetiva e a sua influência na moderna dogmática jurídico-penal. In: Revista Magister de Direito Penal e Processo Penal, n. 42, v. 7, 2011.p. 49.
[4] TAVARES, Juarez. op. cit. p.344.
[5] MASCARENHAS JÚNIOR, Walter Arnaud. Aspectos gerais do risco na imputação objetiva. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 225.
[6] MASCARENHAS JÚNIOR, Walter Arnaud. Aspectos gerais do risco na imputação objetiva. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 226.
[7]O segundo critério pra exclusão da imputação nos casos de autolesão é objeto de inúmeras controvérsias, pois se discute se os critérios a ser utilizados dever ser os da capacidade para consentir ou os da culpabilidade. (GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.69s.)
[8] Assim prevê o Código Penal em seu artigo 122: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”
[9]TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Uma contribuição à teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.346.
[10]MASCARENHAS JÚNIOR, Walter Arnaud. Aspectos gerais do risco na imputação objetiva. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 229.
[11]Roxin exemplifica as hipóteses de heterocolocação em perigo consentida com o seguinte exemplo: “Apesar da tempestade, o freguês quer que o condutor de um barco faça com ele a travessia do Rio Memel. O condutor desaconselha a que se proceda a travessia, apontando para os perigos nela envolvidos. O freguês insiste, o condutor acaba correndo o risco, o bargo afunda-se e o freguês afoga-se.” (ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal.Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 367.)
[12]MASCARENHAS JÚNIOR, Walter Arnaud. op. cit. p. 234.
[13] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Uma contribuição à teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.348.
[14] No que diz respeito ao consentimento do ofendido nos crimes culposo, nos posicionamos no mesmo sentido que D’AVILA. Segundo o autor, o consentimento do ofendido, nos delitos culposos, não deve se condicionar à disponibilidade do resultado produzido, restringindo-se enfaticamente à conduta perigosa, sem qualquer vínculo psicológico com o resultado. D’AVILA afirma que nos delitos culposos, os efeitos do consentimento da vítima não podem estar vinculados à disponibilidade ou indisponibilidade do bem lesado, pois este não se encontra na órbita da vontade ou anuência da vítima ou do agente. Nesses casos, não possuí relevância se trata-se de culpa consciente ou inconsciente, na medida em que o consentimento se dá, especificamente, em relação ao risco, e nunca ao resultado provável ou previsível, devendo o risco ser visto sempre como um elemento da órbita de disponibilidade da vítima. (D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 74s.)
[15] ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 368.
[16] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.69s.
[17] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.73.
[18]MASCARENHAS JÚNIOR, Walter Arnaud. Aspectos gerais do risco na imputação objetiva. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 236.
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Letícia Bürgel é Mestranda em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGCrim) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CAPES. Membro do Corpo Editorial da Revista de Estudos Criminais. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito Penal Contemporâneo e Teoria do Crime, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio Roberto D’Avila. E-mail: leburgel_@hotmail.com
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