A relação entre Dylan e Jayme Caetano Braum Direito (rock) de galpão

01/09/2015

Por  Germano Schwartz - 01/09/2015

No fim de semana passada, estive na Expointer, em Esteio. Um belo passeio em família. Tempo agradável e um pouco quente para essa época do ano. Ali, eu recordei um pouco das minhas origens, no interior do Estado. Vindo de uma cidade (Cruz Alta) cuja economia – ainda hoje – é baseada quase que exclusivamente no setor agropecuário, era natural que eu não tivesse uma formação roqueira. Tudo levava a crer que eu seguiria o ritmo do nativismo, certo? Errado.

Várias são as razões. Uma delas diz respeito ao espaço temporal em que eu restava inserido. Década de oitenta do século passado. Ventos democráticos começavam ser percebidos por entre as coxilhas, inclusive de minha terra natal. O rock brasileiro, de um passado – à época – já invejável (vide O Terço, Secos e Molhados, Made in Brazil, Raul Seixas, entre outros), “sintonizou-se” com aquilo que, como na magistral canção de Dylan (Blowin in the Wind), estava no ar. Fui, como tantos outros amigos, bombardeado por esse sentimento de mudança. O rock era o instrumento de catarse, de libertação nos saraus do Clube do Comércio.

Outro fator da minha adesão ao rock se relaciona com o espaço geográfico. O Rio Grande do Sul da época, ainda como hoje, restava longe demais das capitais. Por isso mesmo, aliada a outras razões, formou uma cultura roqueira funcionalmente diferenciada. O fato é que nos pampas gaúchos, o rock sempre foi muito mais a la Stones do que Beatles, e, muito embora, tenhamos tido vários representantes – bons – do punk , como é o caso dos Replicantes, a verve do cenário roqueiro dos anos oitenta estava conectada com os ventos da mudança já mencionados.

Dito isso, eu não poderia escapar de gostar de ser um adepto do rock. A uma, porque era o que a gurizada ouvia à época; a duas, porque era o estilo musical que traduzia um sentimento de mudança e de uma expectativa normativa futura chamada Constituição, aquela imagem-horizonte à qual nunca se alcançava.

Entenda-se, todavia, que o nativismo estava ali. Sempre esteve e sempre estará. Era a época áurea da Coxilha Nativista de Cruz Alta, um dos grandes festivais do gênero ainda nos tempos atuais. A cidade parava. Havia um acampamento nos arredores do município, no Parque de Exposições. Tanto ao evento em si quanto ao acampamento, eu fui uma ou duas vezes. Mas as razões para tanto não eram musicais.

Com tudo isso, quero dizer que rock e nativismo são duas faces da mesma expectativa normativa para quem nasceu nos anos oitenta do século passado no estado do Rio Grande do Sul. Para quem já leu a Constituição da República Rio-Grandense, não é surpresa notar que ela antecipou, em muito, o texto da Constituição de 1988, em específico, no que tange às liberdades individuais.

Não é por acaso que autores tradicionais do nativismo gaúcho da época estivessem tão antenados com a resposta soprada pelo vento (Dylan). Algumas bandas gaúchas, inclusive, agregaram elementos do nativismo às suas músicas, caso, por exemplo, do Nenhum de Nós e dos Engenheiros do Hawaii.

O que eu não havia visto até bem pouco atrás - e foi o que a Expointer me fez recordar – era o casamento, de fato, entre rock e nativismo gaúcho, visto que, como eu já disse, para um oriundo dos anos oitenta do século passado, essa fosse uma conexão evidente a partir de uma perspectiva de direito & rock.

A banda Estado das Coisas, junto com outros artistas consagrados do tradicionalismo gaúcho, fez um projeto chamado Rock de Galpão. Acho-o brilhante. Sensacional. Conseguiram trazer o poeta Jayme Caetano Braum para dentro do universo roqueiro. Genial é a versão que fizeram da sua “Bochincho”, um grande tema para uma aula de criminologia e de Direito Penal, como a Renata Almeida da Costa já provou em suas classes.

Deixo, abaixo, a letra, pois será necessária, junto com o vídeo da música. Infelizmente, ainda não inventaram um Google Tradutor para um índio macanudo como o Jayme Caetano Braum. E precisa?

https://youtu.be/KA2wyYxbDiQ

A um bochincho - certa feita, Fui chegando - de curioso, Que o vício - é que nem sarnoso, nunca para - nem se ajeita. Baile de gente direita Vi, de pronto, que não era, Na noite de primavera Gaguejava a voz dum tango E eu sou louco por fandango Que nem pinto por quireral.

Atei meu zaino - longito, Num galho de guamirim, Desde guri fui assim, Não brinco nem facilito. Em bruxas não acredito 'Pero - que las, las hay', Sou da costa do Uruguai, Meu velho pago querido E por andar desprevenido Há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé, De pau-a-pique barreado, Num trancão de convidado Me entreverei no banzé. Chinaredo à bola-pé, No ambiente fumacento, Um candieiro, bem no centro, Num lusco-fusco de aurora, Pra quem chegava de fora Pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça Que me cruzou no costado E já saí entreverado Entre a poeira e a fumaça, Oigalé china lindaça, Morena de toda a crina, Dessas da venta brasina, Com cheiro de lechiguana Que quando ergue uma pestana Até a noite se ilumina.

Misto de diaba e de santa, Com ares de quem é dona E um gosto de temporona Que traz água na garganta. Eu me grudei na percanta O mesmo que um carrapato E o gaiteiro era um mulato Que até dormindo tocava E a gaita choramingava Como namoro de gato!

A gaita velha gemia, Às vezes quase parava, De repente se acordava E num vanerão se perdia E eu - contra a pele macia Daquele corpo moreno, Sentia o mundo pequeno, Bombeando cheio de enlevo Dois olhos - flores de trevo Com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina - Cumpriu-se o velho ditado, Eu que dançava, embalado, Nos braços doces da china Escutei - de relancina, Uma espécie de relincho, Era o dono do bochincho, Meio oitavado num canto, Que me olhava - com espanto, Mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio, Pois era dele a pinguancha, Bufando e abrindo cancha Como dono de rodeio. Quis me partir pelo meio Num talonaço de adaga Que - se me pega - me estraga, Chegou levantar um cisco, Mas não é à toa - chomisco! Que sou de São Luiz Gonzaga!

Meio na volta do braço Consegui tirar o talho E quase que me atrapalho Porque havia pouco espaço, Mas senti o calor do aço E o calor do aço arde, Me levantei - sem alarde, Por causa do desaforo E soltei meu marca touro Num medonho buenas-tarde!

Tenho visto coisa feia, Tenho visto judiaria, Mas ainda hoje me arrepia Lembrar aquela peleia, Talvez quem ouça - não creia, Mas vi brotar no pescoço, Do índio do berro grosso Como uma cinta vermelha E desde o beiço até a orelha Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro, Mas até touro se ajoelha, Cortado do beiço a orelha Amontoou-se como um couro E aquilo foi um estouro, Daqueles que dava medo, Espantou-se o chinaredo E amigos - foi uma zoada, Parecia até uma eguada Disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato Dum bochincho - quando estoura, Tinidos de adaga - espora E gritos de desacato. Berros de quarenta e quatro De cada canto da sala E a velha gaita baguala Num vanerão pacholento, Fazendo acompanhamento Do turumbamba de bala!

É china que se escabela, Redemoinhando na porta E chiru da guampa torta Que vem direito à janela, Gritando - de toda guela, Num berreiro alucinante, Índio que não se garante, Vendo sangue - se apavora E se manda - campo fora, Levando tudo por diante!

Sou crente na divindade, Morro quando Deus quiser, Mas, amigos, se eu disser, Até periga a verdade, Naquela barbaridade, De chinaredo fugindo, De grito e bala zunindo, O gaiteiro - alheio a tudo, Tocava um xote clinudo, Já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim, Balanceei a situação, - Já quase sem munição, Todos atirando em mim. Qual ia ser o meu fim, Me dei conta - de repente, Não vou ficar pra semente, Mas gosto de andar no mundo, Me esperavam na do fundo, Saí na Porta da frente...

E dali ganhei o mato, Abaixo de tiroteio E inda escutava o floreio Da cordeona do mulato E, pra encurtar o relato, Me bandeei pra o outro lado, Cruzei o Uruguai, a nado, Que o meu zaino era um capincho E a história desse bochincho Faz parte do meu passado!

E a china - essa pergunta me é feita A cada vez que declamo É uma coisa que reclamo Porque não acho direita Considero uma desfeita Que compreender não consigo, Eu, no medonho perigo Duma situação brasina Todos perguntam da china E ninguém se importa comigo!

E a china - eu nunca mais vi No meu gauderiar andejo, Somente em sonhos a vejo Em bárbaro frenesi. Talvez ande - por aí, No rodeio das alçadas, Ou - talvez - nas madrugadas, Seja uma estrela chirua Dessas - que se banha nua No espelho das aguadas!


 

GermanoGermano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.      

Publica na coluna semanal DIREITO E ROCK no Empório do Direito, às terças-feiras.      


Imagem ilustrativa do post: Autor desconhecido // Sem alterações Disponível em: https://cultureprojetos.wordpress.com/2014/05/30/apoio-ao-projeto-rock-de-galpao/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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