A REFORMA TRABALHISTA E A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE: OPÇÃO POLÍTICA RAZOÁVEL?

11/06/2018

A nova redação do § 2º do art. 58 da CLT, determinada pela Lei nº 13.467/17, sepulta antiga discussão na jurisprudência e doutrina trabalhistas quanto às chamadas horas in itinere ou horas de trajeto. Assim está redigido o novo dispositivo: 

Art. 58 A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite. […] § 2º O tempo despendido pelo empregado até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.[1] 

As horas in itinere constituem nítida criação da jurisprudência trabalhista, posteriormente incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 58, § 2º. Maurício Godinho Delgado define que:

[...] considera-se integrante da jornada laborativa o período que o obreiro despenda no deslocamento ida-e-volta para local de trabalho considerado de difícil acesso ou não servido por transporte regular público, desde que transportado por condução fornecida pelo empregador (Sum.. 90, I, TST; art. 58, §2º, CLT).[2] 

O instituto jurídico em questão, previsto na antiga redação do § 2º do art. 58 da CLT, baseava-se na premissa de que a escolha do empregador em se instalar em locais de difícil acesso ou não servidos por transporte público regular, gerando o fornecimento de transporte ao empregado, faria com que o tempo de deslocamento fosse considerado tempo à disposição. Caso o tempo de trajeto excedesse à jornada de trabalho regular do empregado, o tempo excedente geraria o pagamento de adicional legal ou convencional de horas extraordinárias.

Os julgados editados pelo Tribunal Superior do Trabalho sobre a questão culminaram com a edição da Súmula nº 90 em 10/11/1978[3]. Referido verbete sumular baseia-se na premissa de que as empresas se instalam em zonas rurais ou distantes dos perímetros urbanos para obterem o barateamento de suas atividades (os impostos nas zonas rurais são menores, aliados aos incentivos fiscais pela instalação em “distritos industriais”). Tal escolha empresarial não poderia ocasionar o ônus do deslocamento do empregado e a perda de seu tempo livre. Com o tempo, a Súmula nº 90 ganhou novos itens (I a V), incorporando outras súmulas e OJ's do referido Tribunal Superior, regulando questões como a incompatibilidade e a insuficiência do transporte público, bem como a natureza das horas de trajeto que excedessem à jornada legal.

Recentemente, algumas decisões elasteceram o sentido originário da Súmula nº 90, com o deferimento de horas in itinere em perímetros urbanos em horários em que não haja o transporte público circulando, e no que diz respeito às chamadas “horas de espera”, quando o empregado está esperando a condução antes e após o horário de trabalho. Nesse sentido, são invocadas, como exemplos, as decisões da 1ª Turma do TRT da 4ª Região, no processo 0000771-08.2014.5.04.0662 (RO)[4], e do TST nos processos RR 138000-51.2009.5.18.0191[5] e RR 37641-14.2005.5.05.0121[6]. Tais entendimentos, salvo melhor juízo, afastam-se dos precedentes que formaram a Súmula nº 90 do TST, estes que tratam da instalação das unidades empresariais em zonas distantes das cidades, referindo-se ainda, tão somente, às horas de deslocamento, e não às “horas de espera”. 

Deve ser ressaltado ainda que o transporte é fornecido pelo empregador para acesso a um lugar que não necessariamente foi escolhido para baratear a sua produção. Muitas atividades econômicas, como, por exemplo, a exploração de minas de subsolo, pavimentação e conservação de rodovias, trabalhos rurais, pesquisas e sondagens de terrenos e empreendimentos de reflorestamento, só podem ser explorados em localidades não servidos por transporte público ou de difícil acesso, isso pela própria natureza da atividade. Nesse sentido, nem sempre o empregador escolhe realizar suas atividades na zona rural apenas para “baratear” os custos de sua produção ou do seu escoamento.

É interessante notar que a evolução da jurisprudência veio mitigando, paulatinamente, o pagamento integral das horas in itinere como tempo à disposição. O próprio Tribunal Superior do Trabalho vem, por meio de sua Seção de Dissídios Individuais – SDI plena, possibilitando a negociação coletiva das horas in itinere, com estipulação de tempo médio de deslocamento, desde que limitado a 50% do tempo de trajeto (vide informativos de nºs 25, 29, 51, 54 e 145)[7], algo que não se permite com outros institutos relativos à jornada de trabalho, v.g., as horas extras por sobrelabor e os repousos remunerados. A este respeito, leia-se o acórdão da SDI do TST nos Embargos de Divergência do feito RR – 2200-43.2005.5.15.0072[8]

É de se ressaltar que o próprio Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do RE 895.759[9], de relatoria do ministro Teori Albino Zavascki, reforçando o prestígio das negociações coletivas (art.7º, XXVI, da CF/88), reconheceu a possibilidade de disposição total do pagamento de horas in itinere por meio de acordo coletivo de trabalho e convenção coletiva de trabalho. 

As decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho acima citadas dão força às conclusões do legislador reformador de que o fornecimento de transporte é um benefício fornecido pelo empregador, entendimento que foi cristalizado na nova redação do § 2º do art. 58 da CLT. 

Analisando a nova redação do § 2º do art. 58 da CLT, determinada pela Lei nº 13.467/17, observa-se que o legislador passa a não mais considerar o tempo de trajeto como tempo à disposição, agindo em compasso com a redação do art. 4º, § 2º, da CLT, que versa sobre o que não se considera tempo à disposição. 

Deve ser frisado, novamente, que a nova redação do § 2º do art. 58 da CLT trabalha com a premissa de que o fornecimento de transporte para o local de trabalho pelo empregador é um benefício aos seus empregados interessados em prestar serviços empregatícios em locais não acessíveis por transporte regular público ou de difícil acesso. O legislador reformista catalisou no novo dispositivo as críticas[10] no sentido de que é um contrassenso o empregador ser obrigado a computar na jornada regular de trabalho o tempo de deslocamento pelo fornecimento do benefício do transporte. Se o empregador não fornecesse o transporte, o empregado teria que se deslocar por condução própria, arcando com os custos do deslocamento, o que constituiria um ônus em seu desfavor. 

O novel dispositivo consolidado estipulou que o fornecimento de transporte para o local de trabalho de difícil acesso ou não atendido por transporte público é um verdadeiro benefício que o empregador concede aos seus empregados interessados em prestar serviços empregatícios em seu favor. Passa-se a incentivar que o empregador forneça, gratuitamente, o transporte aos seus empregados. Vê-se que o legislador entendeu, quando da redação do dispositivo (§ 2º do art. 58 da CLT), que há uma mera troca de benefícios. Troca-se a inclusão do tempo de deslocamento na jornada pelo incentivo ao empregador fornecer aos seus empregados condução gratuita e de qualidade aos locais de trabalho.

Muito embora tenha sido essa a opção política do legislador reformador, é inegável que há situações de longos deslocamentos que superam o razoável, nas quais o empregado pode ficar, por exemplo, por três ou até quatro horas dentro da condução fornecida pelo empregador, reduzindo o seu tempo livre e de desconexão com o trabalho. Tais situações deveriam ter merecido uma atenção mais especial e pontual do legislador reformista. A Lei nº 13.467/17 poderia ter estabelecido balizas seguras, como distâncias ou tempos médios de deslocamento que não fossem considerados como tempo à disposição, prevendo a possibilidade de discussão quanto a períodos maiores em normas coletivas. Ou, então, poderia o legislador, simplesmente, ter legislado o critério estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal através do julgamento do RE 895.759 sem a extinção do instituto das horas de trajeto, critério já comentado em linhas anteriores que parece ser mais justo, confere segurança jurídica e prestigia a autonomia privada coletiva. 

Destarte, o tempo de deslocamento pela concessão de transporte pelo empregador, seja para local de fácil ou de difícil acesso, servido ou não por transporte regular público, por escolha política do legislador, não mais será computado na jornada de trabalho, independentemente do tempo do trajeto ou se o empregador cobra ou não pelo transporte. Espera-se ao menos que, com a nova regra, os empregadores passem a conceder mais transportes como benefício aos seus empregados, sendo que as irregularidades quanto à qualidade e quantidade do transporte poderão ser fiscalizadas pela auditoria do Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério Público do Trabalho. As irregularidades sempre serão passíveis de apreciação pela Justiça do Trabalho (art. 5º, XXXV, da CF/88).

A revogação do § 3º do art. 58 da CLT, que previa a possibilidade das micro e pequenas empresas negociarem o tempo de deslocamento, deu-se por questão de lógica, visto que tal dispositivo não mais será necessário diante da modificação da natureza jurídica do tempo de trajeto.

Por fim, chega-se à conclusão de que a Súmula nº 90 do Tribunal Superior do Trabalho deverá ser cancelada diante da nova redação do § 2º do art. 58 da CLT imprimida pela Lei nº 13.467/17.

Notas e Referências 

BRASIL. Consolidação as Leis do Trabalho (1943). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 09 jun. 2018. 

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 90. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018. 

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho – 14ª ed. - São Paulo: Ltr, 2015. 

HERZMANN, Edgar.  A hora in itinere e a esquizofreina do legislador. Disponível em: <https://edgarherzmann.jusbrasil.com.br/artigos/132795164/a-hora-in-itinere-e-a-esquizofrenia-do-legislador. Acesso em 09 jun. 2018. 

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional da 4ª Região. RO 0000771-08.2014.5.04.0662. 1ª Turma. Disponível em: <http://www.trt4.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[1]      BRASIL. Consolidação as Leis do Trabalho (1943). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 09 jun. 2018.

[2]      DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Ltr, 2015, p. 936.

[3]      BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 90. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[4]      RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional da 4ª Região. RO 0000771-08.2014.5.04.0662. 1ª Turma. Disponível em: <http://www.trt4.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[5]      BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 138000-51.2009.5.18.0191. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[6]      BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 37641-14.2005.5.05.0121. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[7]      BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Informativos. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[8]      BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho.  E- RR 2200-43.2005.5.15.0072. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[9]      BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 895.759. Relator: Teori Zavaski. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 09 jun. 2018.

[10]     A tal respeito, leia-se o artigo de Edgar Herzmann intitulado A hora in itinere e a esquizofreina do legislador. Referido autor é crítico do referido instituto, afirmando que o empregador deveria ser incentivado a fornecer transporte gratuito aos seus empregados, para qualquer lugar onde estiver instalada a sua unidade, e não penalizado com a inclusão das horas de deslocamento na jornada regular, como entende ocorrer. (HERZMANN, Edgar. A hora in itinere e a esquizofreina do legislador. Disponível em: <https://edgarherzmann.jusbrasil.com.br/artigos/132795164/a-hora-in-itinere-e-a-esquizofrenia-do-legislador>. Acesso em: 09 jun. 2018).

 

Imagem Ilustrativa do Post: El sol y la luna en Praga / The sun and moon in Prague // Foto de: Hernán Piñera // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/hernanpc/6975886521

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura