A Redução da Maioridade Penal e o Estupro de Vulnerável

19/07/2015

Por Vitor Raatz Bottura - 19/07/2015 

Como toda sociedade brasileira tem acompanhado, foi aprovada na Câmara dos Deputados a PEC 171, que trata da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, devendo agora ser enviada para o Senado. Vale ressaltar que proposta de emenda constitucional deve ser votada em dois turnos em cada casa do congresso, ou seja, duas votações na Câmara e duas no Senado, todas as votações com pelo menos 3/5 dos votos de todos os membros eleitos.

Importante ressaltar que muitos detalhes importantes relativos à PEC 171 não foram devidamente discutidos e analisados pelos membros do legislativo e principalmente diante da sociedade. Existem muitos pontos, principalmente consequências jurídicas dessa perigosa alteração que não foram bem esclarecidos e amplamente divulgado para a população, que infelizmente acaba sendo destinatário, em sua grande maioria, de notícias extremamente sensacionalistas referentes a crimes cometidos por menores.

Iremos tratar nesse texto de uma dessas consequências jurídicas que serão decorrentes dessa possível alteração constitucional, o crime de estupro cometido contra vulnerável, segundo nossa legislação penal, menor de 14 anos.

Tendo em vista que a maturidade sexual dos jovens tem ocorrido cada vez mais cedo, como consequência, a primeira relação sexual dos nossos jovens também tem sido mais precoce, segundo estudo da ONU/UNIFEM[1], a idade média no Brasil é de 15,3 (quinze anos e três meses) anos, muito pela grande quantidade de informações disponíveis e também pela forma mais aberta e natural do tratamento desse tema entre pais e filhos.

Esse mesmo estudo aponta que de cada 5 (cinco) casos de gravidez na adolescência, 1 (um) desses ocorre com mães entre 10 (dez) e 19 (dezenove). Nesse sentido, podemos imaginar tranquilamente uma menina com 13 (treze) anos iniciando sua vida sexual e isso não seria nada absurdo ou irreal.

Chegamos agora no problema. Imaginamos que essa menina com seus 13 (treze) anos começa a namorar, escondido do seu pai, (geralmente as mães tendem a ser mais complacente com acontecimentos relacionados a esse tema) um garoto de 16 (anos), também nada muito incomum nos dias atuais.

O namoro evolui e eles acabam tendo uma relação sexual. Acontece que são pegos em “flagrante delito” pelo pai da moça, que transtornado, resolve envolver a polícia no caso e levar até as últimas consequências.

Pronto, o estrago está feito e será muito grande, vou explicar por que.

A atual redação do art. 213[2] do Código Penal adicionou a conduta típica do crime de estupro à ação de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, além da conjunção carnal já prevista em seu conteúdo anterior. Importante ressaltar também a exclusão da indicação direta do sujeito passivo “mulher”, razão pela qual poderá ser vítima desse delito qualquer pessoa, tanto homem quanto mulher, inclusive portadores de anomalias sexuais e submetidos à cirurgia para troca de sexo.

A forma de cometimento do estupro através da conjunção carnal será configurada com a introdução do pênis na vagina, de forma completa ou não, portanto exclusiva de uma relação entre homem e mulher. O ato libidinoso, conforme previsão do próprio tipo trata-se de relação física diversa da conjunção carnal, com conotação sexual explícita, com intuito de satisfazer a libido do agente. Importante destacar a utilização da violência ou ser a vítima considerada vulnerável em qualquer das modalidades para o enquadramento típico.

De outra parte, o art. 217-A[3], inserido no Código Penal como decorrência da CPI que investigava a exploração sexual de crianças e adolescentes, determina configurar o crime de estupro de vulnerável a realização da conjunção carnal ou qualquer outro tipo de ato libidinoso com pessoa menor de 14 (quatorze) anos, parâmetro usado pelo legislador em razão da maior vulnerabilidade em razão da pouca idade.

Por ter uma reprovabilidade maior que o estupro simples, sendo ambos considerados hediondo, obviamente a pena também é maior, iniciando o cumprimento da pena no regime fechado, insuscetível de graça ou indulto, lapso maior para a concessão da progressão de regime, além de, como forma de evitar qualquer tipo de influência negativa na vítima e uma possível impunidade do autor, é crime de ação penal pública incondicionada, conforme parágrafo único do art. 225[4].

Conseguem imaginar o terror que irá virar a vida desse garoto em caso de condenação?  Falo isso, pois existe materialidade delitiva com o exame de corpo de delito e indícios de autoria, pois é namorado, o pai flagrou, teve um enorme escândalo na residência e por aí vai.

Fica difícil falarmos aqui de excludente de ilicitude. Legitima defesa? Não. Estado de necessidade? De forma alguma. Estrito cumprimento do dever legal? Muito menos. Exercício regular de direito? Sem chance.

Podemos entrar nas excludentes de culpabilidade. Talvez seja caso de enquadramento no erro de tipo[5], mas seria uma estratégia de defesa sujeita a apreciação do juízo, analisada já na instrução processual, transcorrido todo o trâmite processual e suas agruras, pois sabemos os grandes transtornos trazidos com o processo penal, que por si só são suficientes para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral e em sua vida social.

Um grande problema enraizado no direito penal brasileiro é a falta de técnica legislativa, com consequências danosas e não calculadas, de forma que o resultado irá aparecer somente com sua vigência. Entre outras, uma das razões são os projetos de afogadilho, surgidos após alguma situação de comoção geral da sociedade, demasiadamente explorada e extrapolada pelos meios de comunicação, geralmente criando uma visão distorcida diante da realidade fria e racional.

A questão da redução da maioridade penal precisa ser mais discutida em todas as suas vertentes e principalmente pensada com responsabilidade e seriedade. Existem muitos outros pontos importantes que trarão consequências práticas extremamente danosas, mas que em nenhum momento foram expostos e debatidos. Estamos diante de um movimento excessivamente populista, punitivista e deveras desonesto, pois indo contra todas as recomendações mundiais (ONU[6], UNICEF[7]), dados estatísticos do Ministério da Justiça indicam que menos de 1% (um por cento) dos crimes são cometidos por menores e que quando falamos de crimes contra a vida, esses índices caem para menos de 0,5% (meio por cento), apostando em um sistema prisional falido, com índices de reincidência altíssimos e a beira de um colapso. Sem contar os altos índices de mortalidade entre os jovens brasileiros[8].

Precisamos evoluir como sociedade e civilização, não regredirmos. E a redução é um grande passo para trás. Mais escolas e menos presídios, mais professores e menos políticos, mais cadernos e menos armas, mais amor e menos intolerância. Assim que conseguiremos dar alguns passos para frente.


Notas e Referências 

[1] http://www.unifem.org.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=174327

[2] Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:   Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.   § 1o  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:   Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.   § 2o  Se da conduta resulta morte:   Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos

[3] Estupro de vulnerável  Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:   Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

[4] Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

[5] Erro de tipo é o que recai sobre circunstância que constitui elemento essencial do tipo. É a falsa percepção da realidade sobre um elemento do crime. É a ignorância ou a falsa percepção de qualquer dos elementos constitutivos do tipo penal. É indiferente que o objeto do erro se localize no mundo dos fatos, dos conceitos ou das normas jurídicas. Importa sim, que faça parte da estrutura do tipo penal. . BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral – 14ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009. p. 412.

[6]http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/05/onu-reducao-da-maioridade-penal-pode-agravarviolencia

[7] http://www.unicef.org/brazil/pt/media_29163.htm

[8] Para sustentar suas críticas, a ONU aponta uma série dados públicos que mostram a ineficácia da proposta em discussão. Do total de 21 milhões de jovens brasileiros, só 0,013% deles cometeram homicídios. Os homicídios representam 36% das mortes de jovens que não são por causas naturais – um número bem acima da média de 4,8% no restante da população. O cenário de violência contra a juventude colocou o Brasil no segundo lugar do ranking mundial de homicídio nessa faixa etária, ficando atrás somente da Nigéria. “Na grande maioria dos casos, as vítimas são adolescentes que vivem em condições de pobreza na periferia das grandes cidades”, ressalta a nota. De 2006 e 2012, um total de 33 mil adolescentes entre 12 e 18 anos foi assassinado no Brasil. Fonte: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/05/onu-reducao-da-maioridade-penal-pode-agravarviolencia

AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo – 10 ed. rev. ampl. e atual – São Paulo: Malheiros Editores, 1994.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral – 14ª ed. atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal – 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014.

DELAMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; JUNIOR, Roberto Delmanto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Código Penal Comentado – 8. ed. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral – 3 ed. rev. atual. ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Código penal comentado: Parte geral; Parte especial – 1ª ed. – Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais – 1ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal – 5 ed. – São Paulo: Saraiva, 1994.


Vitor

Vitor Raatz Bottura é Advogado Criminalista, Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-SP; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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