A recuperação judicial, extrajudicial e falência, foram incorporadas no Brasil pela Lei n.º 11.101 de 09 de fevereiro de 2005, um avanço no âmbito empresarial, porque a legislação anterior (Lei n.º 7.661, de 21 de junho de 1945) previa uma única maneira prévia de se evitar a falência, via concordada (art. 139).
Se comparada a lei atual com a sua antecessora, é notório um avanço no que diz respeito ao processo de recuperação da saúde financeira do devedor. No antigo não era permitido que o empresário convocasse credores e lhes propusesse dilação, remissão de créditos ou cessão de bens, caso essas práticas fossem comprovadas, fatalmente, a empresa teria a falência caracterizada.
Atualmente, o processo de recuperação judicial, em específico, busca manter a empresa em atividade, garantindo não apenas o seu soerguimento, mas também é por meio deste instrumento processual que a empresa recuperanda consegue superar a crise financeira que lhe atinge, podendo, assim, manter sua produção, os empregos dos seus cooperadores e os interesses de seus credores. Existe, pois, um propósito social atribuído pelo direito ao instituto da recuperação judicial.
O objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da crise econômico-financeira da empresa e o artigo 47 da Lei n.º 11.101/2005, deixa muito bem claro o objetivo deste processo:
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Note-se que, se o intuito da recuperação judicial é manter viva as atividades da empresa, e consequentemente suas práticas no comércio, esse procedimento deve levar em conta o interesse social, não apenas os dos credores, sendo o papel do Estado crucial nessa fase.
No mesmo sentido, o doutrinador e ministro Luis Felipe Salomão, em sua obra de recuperação judicial, extrajudicial e falência, ensina que “a participação do Estado nesse processo, seja no âmbito do Poder Executivo, seja no do Judiciário, interferindo nas "leis de mercado", deve ser considerada sob a perspectiva do interesse público”.[1]
Registre-se, ademais, que se por um lado o objetivo da recuperação judicial é de preservar a atividade econômica, por outro, tem o fim de retirar do mercado as empresas que não conseguem se manter, pois tem seu passivo em números bem maiores que o ativo. Sob esse aspecto, Manoel de Queiroz Pereira Calças em depoimento ao caderno de recuperação de empresas da Fundação Getúlio Vargas defende:
“A Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (lei n.º 11.101/2005) é inspirada por dois princípios complementares: de um lado, a preservação de empresas economicamente viáveis; de outro, a retirada do mercado daquelas consideradas inviáveis ou nocivas à economia”.[2]
Assim, entende-se que a recuperação judicial é o instrumento que concede à empresa devedora a chance de uma reestruturação para que consiga recuperar o exercício de suas atividades e preservar o interesse social.
Muito bem, para estabelecer certos limites sobre a possibilidade de prosseguimento da execução de crédito individual em face do devedor em recuperação judicial, primeiro, deve-se apurar a data em que ocorreu o fato gerador do direito pleiteado. Quer dizer, é necessário verificar quando foi que se constituiu efetivamente o crédito do credor.
Nesse sentido, o art. 49 da Lei n.º 11.101/2005 é cristalino ao estabelecer que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. O Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Tema 1051, o qual possui efeito vinculante nos termos dos artigos 927, inciso III e 1.040, inciso III, do Código de Processo Civil, estabeleceu o entendimento de que para se apurar se determinado crédito se submete ou não aos efeitos do processo de recuperação judicial de um devedor, deve-se verificar a data do seu fato gerador.
Sob esse aspecto, leia-se a tese firmada pelo STJ ao julgar o Tema Repetitivo 1051:
“Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”.[3]
Entenda, se o crédito cujo credor busca o recebimento foi originado em data anterior ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial do devedor, o crédito seria considerado concursal (se sujeita aos efeitos da recuperação), devendo ser habilitado no processo de recuperação para recebimento conforme o plano aprovado.
Porém, se eventualmente o marco inicial do fato gerador do crédito se deu em data posterior ao pedido de recuperação judicial do devedor, a quantia será considerada extraconcursal (não se sujeita aos efeitos da recuperação), podendo o credor buscar o recebimento por meio de uma execução individual.
Não são todos os credores que estão submetidos aos efeitos da recuperação judicial do devedor, mas somente aqueles titulares de créditos existentes na data do pedido, e que não foram excepcionados pelo artigo 49, §§ 3º e 4º, da Lei n.º 11.101/2005, cuja redação sugere-se a leitura.
Importante mencionar que é preciso se atentar para o fato de que a competência para deliberar sobre atos de constrição que recaiam sobre bens da empresa que busca a superação da crise econômico-financeira é do juízo da recuperação judicial, não importando se o crédito é concursal ou extraconcursal.
Outrossim, se o crédito perseguido estiver sujeito aos efeitos da recuperação judicial do devedor, não há possibilidade de pagamento na execução individual, ante a novação que afeta os créditos anteriores ao pedido (art. 59, da Lei n.º 11.101/2005), e que impõe ao credor a necessidade de habilitar seu crédito no Juízo Universal, caso queira recebê-lo.
Por isso, em face do devedor em recuperação, a execução que busca a satisfação de crédito sujeito deve ser extinta, porque a novação resultante da concessão da recuperação judicial após aprovado o plano em assembleia é sui generis (de espécie única), de modo que as execuções individuais ajuizadas contra o próprio devedor devem ser extintas, e não apenas suspensas (STJ. Recurso Especial n.º 1.272.697-DF. Quarta Turma. Min. Rel. Luís Felipe Salomão. J. 02 jun. 2015).
É importante mencionar que o crédito sujeito aos efeitos da recuperação judicial tem a incidência de correção monetária limitada à data do deferimento do pedido de recuperação (artigo 9º, II, da Lei n.º 11.101/2005), no entanto, embora seja uma faculdade do credor habilitar o seu crédito no processo de recuperação judicial, enganam-se aqueles que entendem que caso não façam a habilitação poderão receber o crédito sem ter que respeitar a limitação da atualização dos valores até a data do pedido de soerguimento.
Isto porque, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, mesmo o crédito não habilitado na recuperação judicial, que precisaria aguardar o término do soerguimento para pagamento, deverá observar os termos e índices deliberados no plano, ou seja, somente será atualizado até a data do pedido de recuperação judicial. (STJ. Recurso Especial n.º 2.041.721-RS. Terceira Turma. Min. Rel. Nancy Andrighi. J. 20 jun. 2023).
Por fim, mesmo o credor que habita o seu crédito, mesmo aquele que não o faça, terão o crédito atualizado conforme o artigo 9º, II, da Lei n.º 11.101/2005, no entanto, se existir na relação jurídica um devedor solidário ou coobrigado que não esteja em processo de recuperação judicial, poderá o credor intentar o recebimento de seu crédito em face deles, que eventualmente poderão regressar em face daquele por quem pagou, respeitadas as disposições previstas no artigo 934 do Código Civil.
Notas e referências
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em : https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1051&cod_tema_final=1051. Acessado em 20/04/2024, às 14h22, São Paulo.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 2.041.721-RS. Terceira Turma. Min. Rel. Nancy Andrighi. J. 20 jun. 2023
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.272.697-DF. Quarta Turma. Min. Rel. Luís Felipe Salomão. J. 02 jun. 2015.
BRASIL. Lei n.º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acessado em 20/04/2024, às 13h00, São Paulo.
Brasil. Decreto-Lei n.º 7.661, de 21 de junho de 1945. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-7661-21-junho-1945-449981-publicacaooriginal-3689.pe.html#:~:text=Lei%20de%20fal%C3%AAncias.&text=caracteriza%C3%A7%C3%A3o%20da%20fal%C3%AAncia-,Art.,que%20legitime%20a%20a%C3%A7%C3%A3o%20executiva. Acessado em 19/04/2024, às 15h00, São Paulo.
CADERNO FGV PROJETOS, RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS, setembro de 2018, ano 13, nº 33, pg. 27.
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas – 8 ed. São Paulo: Ed. Saraiva 2011.
SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
SCARPINELLA BUENO, Cassio. “Curso sistematizado de direito processual civil”. São Paulo: Saraiva, 2010. Vol 2, Tomo I. 3ª ed.
[1] SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 10 -12.
[2] CADERNO FGV PROJETOS, RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS, setembro de 2018, ano 13, nº 33, pg. 27.
[3] Confira-se: REsp 1843332/RS; REsp 1842911/RS; REsp 1843382/RS; REsp 1840812/RS; REsp 1840531/RS.
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