A RECORRIBILIDADE DAS INTERLOCUTÓRIAS NO CPC: DO ROL TAXATIVO MITIGADO ÀS OUTRAS SITUAÇÕES ENFRENTADAS PELO STJ

11/08/2024

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

Mesmo passados alguns anos de vigência o atual CPC, o tema ligado à recorribilidade dos pronunciamentos interlocutórios continua sendo um dos mais debatidos na doutrina e jurisprudência nacionais.

Como é sabido, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese no Tema 988 da sistemática dos recursos especiais repetitivos.

Contudo, várias outras situações são enfrentadas na prática processual e que não se enquadram na solução encontrada pela Corte da Cidadania naquela oportunidade.

Aliás, em decorrência da restrição legislativa ligada à recorribilidade imediata das interlocutórias proferidas no processo de conhecimento (art. 1.015, do CPC), inicialmente enfrentou-se a possibilidade de manejo de mandado de segurança contra decisão judicial.

Sempre é bom ressaltar que, em outros procedimentos que consagram a irrecorribilidade imediata das interlocutórias (como o trabalhista[1], eleitoral e aqueles inerentes aos juizados especiais[2]), vem se admitindo, com ressalvas, a impetração do mandamus, desde que fundamentada em vícios teratológicos do pronunciamento judicial causador de gravame imediato à parte[3].

A pergunta feita no início de vigência do atual CPC foi a seguinte:  na fase cognitiva do procedimento comum havia esta mesma ampliação do cabimento do remédio constitucional em decorrência da inexistência de recurso imediato contra os pronunciamentos interlocutórios não previstos no art. 1015, do CPC?

A bem da verdade, com a restrição da recorribilidade advinda da opção legislativa, dois raciocínios tiveram que ser enfrentados pelos intérpretes: ou se entendia que o art. 1015, do CPC/15 apresentava apenas um rol exemplificativo (ou mesmo taxativo mitigado), ou se admitia a impetração de mandado de segurança contra as interlocutórias proferidas no processo de conhecimento e não previstas neste dispositivo, desde que presentes os requisitos necessários para o seu excepcional manejo.

O Superior Tribunal de Justiça teve preocupação específica quanto a este ponto. Após a Tese fixada no Tema 988/STJ, a Corte passou a restringir seguidas vezes a impetração do mandado de segurança contra pronunciamento interlocutório proferido no processo de conhecimento e não previsto no art. 1.015, do CPC (RMS 60367 / SP (Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. 08/10/2019 – DJe 18/10/2019; RMS  63.202. Rel. Min. Marco Aurélio Bellize, Rel. p. acórdão Min. Nancy Andrighi, 3ª T/STJ - J. 01/12/2020 – DJe  18/12/2020). 

Como consequência, resta esvaziada, por entendimento reiterado da Corte da Cidadania, a interpretação de que a urgência, aliada à impossibilidade de recurso imediato, seriam fundamentos para o manejo do Mandado de Segurança contra decisão judicial que, por exemplo, indefere a produção de provas, aprecia questão processual ligada à competência, indefere pedido de segredo de justiça, etc.

Contudo, outras situações jurídicas enfrentadas na prática forense não foram necessariamente apreciadas no resultado do Tema 988/STJ – que demandou enfrentamento específico pela Corte nos últimos anos.

O primeiro deles e que deve ser destacado neste breve ensaio refere-se à incidência ou não da Tese fixada no Tema em questão aos processos coletivos. A indagação que provocou enfrentamento específico do colegiado foi a seguinte: a restrição de recorribilidade imediata de alguns pronunciamentos interlocutórios também se aplicava aos processos coletivos, ou apenas às causas individuais?

No caso, houve a necessidade de conjugar e diferenciar o sistema de recorribilidade das demandas individuais e dos processos coletivos (ou do microssistema de processos coletivos) – que possui previsão expressa de imediato e irrestrito cabimento de agravo de instrumento. Como decidido pela 2ª T do STJ no REsp 1452660/ES (Rel. Min. OG Fernandes – J. em 19.10.2017 – DJe 27.04.2018):

“A jurisprudência do STJ pacificou orientação de que o Código de Processo Civil só se aplica de forma subsidiária ao microssistema de tutela  coletiva,  desde  que  não afronte os princípios do processo coletivo.  Nesse  sentido:  REsp  1.217.554/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 15/8/2013, DJe 22/8/2013”.

Logo, o que deve prevalecer: o disposto no art. 1015, do CPC e o resultado do Tema 988/STJ ou a ampla recorribilidade dos pronunciamentos interlocutórios consagrada para o processo coletivo (art. 19, da Lei da Ação Popular)? Considerando o espaço editorial aqui disponível, recomendo a leitura da íntegra do Acórdão da 1ª Turma do STJ  (AgInt no REsp 1733540 / DF – Rel. Min. Gurgel de Faria – J. em 25/11/2019 – DJe 04/12/2019).

Conclusão importante quanto ao ponto e que deve ser ressaltada:  prevalece o regramento específico quanto à recorribilidade dos pronunciamentos interlocutórios proferidos no microssistema dos processos coletivos (art. 1015, XIII, do CPC). Não se aplica, consequentemente, a restrição recursal aqui discutida às demandas relacionadas ao microssistema do processo coletivo, e sim a previsão expressa de ampla recorribilidade prevista na Lei da Ação Popular.

Sob outro enfoque, a Corte enfrentou a questão da recorribilidade das interlocutórias proferidas nos processos de recuperação judicial e falência, com a necessidade de novamente fazer a distinção em relação à tese fixada no Tema 988/STJ.

A questão submetida a julgamento no Tela 1.022/STJ foi a seguinte: “Definir se é cabível agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas em processos de recuperação judicial e falência em hipóteses não expressamente previstas na Lei 11.101/2005". A Tese (com modulação de efeitos), foi a seguinte:

"É cabível agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos de recuperação judicial e nos processos de falência, por força do art. 1.015, parágrafo único, CPC".

Logo, fazendo o mesmo corte interpretativo inerente ao processo de execução, cumprimento de sentença e liquidação (cuja recorribilidade está prevista no art. 1.015, parágrafo único, do CPC), a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça consagrou o amplo cabimento do Agravo de Instrumento contra as interlocutórias proferidas na recuperação judicial e falência.

Por derradeiro, necessário analisar outra situação: a recorribilidade dos pronunciamentos judiciais que rejeitam alegação de impossibilidade jurídica do pedido, prescrição e decadência.

Entendo que, pelo menos de forma direta, a tese fixada no Tema 988/STJ não tratou diretamente destas situações.

Destarte, não se está discutindo a eventual inutilidade da apelação futura (tratada no tema em questão), mas sim a interpretação do limite contido no art. 1.015, II, do CPC, a saber: a expressão “versar sobre o mérito do processo” inclui apenas o objeto litigioso do processo ou os fundamentos que, mesmo não sendo de mérito direto, são aptos à formação de coisa julgada?

No caso específico da impossibilidade jurídica do pedido, como deixou de ser considerada condição da ação para o CPC em vigor, é tratada como mérito e, em caso de rejeição, enseja a recorribilidade imediata.  Interessante fazer a leitura de trecho da Ementa do Acórdão da 3ª Turma do STJ, no REsp 1.757.123/SP (Rel. Min. Nancy Andrighi – J. em 13.08.19 – DJ 15.08.19):

“A possibilidade jurídica do pedido após o CPC/15, pois, compõe uma parcela do mérito em discussão no processo, suscetível de decomposição e que pode ser examinada em separado dos demais fragmentos que o compõem, de modo que a decisão interlocutória que versar sobre essa matéria, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, poderá ser objeto de impugnação imediata por agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, CPC/15”.

Também é necessário citar passagem do Voto do Min. Humberto Martins, na AR 3.667/DF (1ª Seção - J. em 27.04.2016 -  DJe 23/05/2016):

“A terceira das tradicionais condições da ação, a possibilidade jurídica do pedido, deixou de ser prevista como requisito de admissibilidade da demanda, o que denota o acolhimento pelo legislador da corrente doutrinária que há muito contestava a possibilidade jurídica do pedido como categoria válida, pois que na verdade se trataria de matéria de mérito (posição que posteriormente chegou mesmo a ser adotada por Liebman). Com efeito, verifica-se que, no novo CPC, a possibilidade jurídica do pedido passou a integrar o mérito da causa”.

Outrossim, em relação à prescrição e decadência, é necessário fazer uma afirmação e duas indagações: se forem acolhidas em demanda com objeto litigioso único, o recurso cabível é a apelação, eis que se trata de sentença (art. 487, II, do CPC); por outro lado, em caso de rejeição, o pronunciamento interlocutório é de mérito para fins de agravo de instrumento (art. 1.015, II, do CPC) ou a recorribilidade será apenas no momento do recurso de apelação ou nas contrarrazões recursais? E se forem acolhidas apenas para um dos pedidos cumulados, qual será o recurso cabível?

Não tenho dúvida em afirmar que o objetivo maior do art. 1.015, II, do CPC foi alcançar os pronunciamentos parciais de mérito direto – decisões interlocutórias de mérito (art. 356, do CPC), com a extinção parcial do processo com resolução de mérito (art. 354, parágrafo único, do CPC).

Contudo, para fins de recorribilidade, é importante defender que as situações que dizem respeito ao mérito indireto, bem como no caso de impossibilidade jurídica do pedido que deixou de ser condição da ação, quando rejeitadas, estão sujeitas à interposição imediata de agravo de instrumento.

Logo, a leitura do art. 1.015, II, do CPC (agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que versa sobre mérito do processo) refere-se não apenas à resolução de parte do objeto litigioso, alcançando todas as decisões que formam coisa julgada, dentre as quais as elencadas no art. 487, I ou II, do CPC.

Um importante detalhe: nestas situações, não se admite fungibilidade entre os recursos de agravo de instrumento e apelação. Em recente julgado, a 3ª Turma ratificou o entendimento do STJ, como se pode observar neste trecho do Acórdão (AgInt no AREsp 2.303.935/SP – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – J. 20.05.2024 – DJe 23.05.2024):

Segundo a jurisprudência desta Casa, "o recurso cabível para impugnar decisão parcial de mérito é o agravo de instrumento, configurando erro grosseiro a interposição do recurso de apelação", o que afasta a aplicação do princípio da fungibilidade recursal (AgInt no AREsp n. 2.303.857/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 24/8/2023).

Há, portanto, a necessidade de análise com parcimônia, visando a adequada conclusão acerca de qual recurso é cabível em determinada situação concreta, restando afastado o princípio da fungibilidade recursal pelo entendimento do Tribunal Superior.

Demais a mais, a interpretação conjunta dos arts. 354, §único; 356; 487, I e II; 1009, §1º e 1015, II, do CPC,  permite apresentar as seguintes variáveis: a) acolhimento de prescrição e decadência, bem como a tese do CPC anterior ligada à impossibilidade jurídica do pedido, para a extinção total do processo passível de recurso de apelação; b) acolhimento da tese de parcial impossibilidade jurídica do pedido, prescrição e decadência parciais com a extinção de capítulos do objeto litigioso, prosseguindo o feito em relação a outros ainda não apreciados  – cabimento de recurso de agravo de instrumento; c) rejeição destes fundamentos no curso do processo de conhecimento  com um ou mais pedidos cumulados – recurso de agravo de instrumento. Caso não seja interposto o apelo cabível, a decisão interlocutória ou sentença será atingida pela imutabilidade decorrente da coisa julgada, dentro dos limites do que foi decidido[4].

O Superior Tribunal de Justiça reconhece o cabimento de Agravo de Instrumento nos casos de rejeição de prescrição, fazendo leitura conjunta dos arts. 487, II c.c 1.015, II, do CPC (REsp 1.778.237/ RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª T – J. em 19.02.2019; REsp. nº 1.738.756/MG – Rel. Min. Nancy Andrighi – 3ª T – J. em 19.02.19 – DJe 22.02.19)[5].

Em suma, é possível definir assim a interpretação do caso concreto: em caso de acolhimento ou rejeição da prescrição e decadência ou mesmo a impossibilidade jurídica do pedido que é mérito no âmbito do CPC em vigor, haverá decisão meritória para fins de recorribilidade pela apelação (se for o caso de obstar o prosseguimento da fase cognitiva do procedimento) ou agravo de instrumento (quando não impedir o prosseguimento da relação processual).

Estas são algumas variáveis não atingidas pelo Tema 988/STJ e que desafiam cautelosa análise pelos operadores do direito.

 

Notas e referências:

[1] Súmula nº 414 do TST: “MANDADO DE SEGURANÇA. TUTELA PROVISÓRIA CONCEDIDA ANTES OU NA SENTENÇA (nova redação em decorrência do CPC de 2015) - Res.  217/2017 - DEJT  divulgado em 20, 24 e 25.04.2017. I – A tutela provisória concedida na sentença não comporta impugnação pela via do mandado de segurança, por ser impugnável mediante recurso ordinário. É admissível a obtenção de efeito suspensivo ao recurso ordinário mediante requerimento dirigido ao tribunal, ao relator ou ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, por aplicação subsidiária ao processo do trabalho do artigo 1.029, § 5º, do CPC de 2015. II – No caso de a tutela provisória haver sido concedida ou indeferida antes da sentença, cabe mandado de segurança, em face da inexistência de recurso próprio. III – A superveniência da sentença, nos autos originários, faz perder o objeto do mandado de segurança que impugnava a concessão ou o indeferimento da tutela provisória”.

[2] Vale citar os seguintes Enunciados 62 do Fonaje (“Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais”) e 88 do Fonajef (“É admissível MS para Turma Recursal de ato jurisdicional que cause gravame a não haja recurso”).

[3] ARAÚJO, José Henrique Mouta Mandado de segurança. 10ª edição. Salvador : Juspodivm, 2013.

[4] Com maior aprofundamento, ver ARAÚJO, José Henrique Mouta. Prescrição e decadência: conteúdo decisório e oportunidade recursal. Revista de Processo 303, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 83-97.

[5] Ainda no tema: REsp 1.695.936/MG (2ª T – Rel. Min. Herman Benjamin – J. em 21.11.17 -  DJe 19/12/2017) e REsp 1.772.839/SP (4ª T – Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira – J. 14.05.19 -  DJe 23/05/19).

 

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