Introdução.
Há uma perscrutação cotidiana que envolve toda a humanidade, como viver em harmonia e equilíbrio no meio ambiente1? As ciências buscam, por diversos meios, explicar os sentidos, as razões e os significados da existência do Ser Humano e de sua relação com tudo que o rodeia e o sustenta.
Nas ciências, fala-se na ética da reciprocidade, explicada pela descrição de que cada um deve tratar os outros como gostaria que ele próprio fosse tratado2. A religião, em sua catequese estrutura o dogma da regra áurea – um princípio moral deontológico traduzido no cristianismo pelo Sermão da Montanha, Mateus 7: 12, portanto, tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles (Bíblia Sagrada, 1992)
Entretanto, seja sob o aspecto científico ou religioso, não é simples retratar na vida a ética da reciprocidade ou a regra áurea; pois, a volúpia do consumo desmedido, que leva os Seres Humanos à frustração e a depressão; das relações interpessoais desconectada dos símbolos humanitários de convivência comunitária (solidariedade e fraternidade); da violência retroalimentada pela virulência, da cultura da disputa pela sobrevivência sem qualquer respeito à existência do outro ou da natureza, dentre diversos aspectos do ambiente que margeia a sociedade moderna, acabando por deixar o Ser Humano sempre à beira do abismo e da escolha perversa de fazer o bem ou o mal.
O presente ensaio apresentará a reciprocidade como uma alternativa ética de relacionamento entre os Seres que coexistem com e no meio ambiente.
A percepção sobre a reciprocidade na vida.
Tratar de reciprocidade é refletir sobre a base teológica de religiões antigas, como o confucionismo (Analectos de Confúcio, 552 – 479 a.C) não façais aos outros aquilo que não quereis que vos façam; o hinduísmo (300 a.C) não faças aos demais aquilo que, se a ti for feito, te causará dor; o judaísmo (200 d.C) o que é odioso para ti, não o faças ao próximo. Esta é a lei toda, o resto é comentário; o islamismo (570 – 632 d.C) nenhum de nós é crente até que deseje para seu irmão aquilo que deseja para si mesmo.
A reciprocidade representa uma particularidade axiológica importante na sociedade, pois, sob o aspecto social, colabora para a conservação espontânea das normas sociais; na perspectiva psicológica desenvolve a empatia entre os Seres Humanos; na visão filosófica representa a compreensão de que o próximo é, na verdade, eu mesmo e, na sociologia o adágio ame o próximo com a ti mesmo.
Para David Graeber, a reciprocidade, de alguma forma é, também, a base de sustentação do sistema econômico capitalista, pois, sem reciprocidade a sociedade não se sustentaria e, portanto, não existiria – é pela reciprocidade que ocorrem as trocas de favores e, consequentemente, a escravização, a dominação e a guerra3.
A mutualidade do que é reciproco entre os Seres pertence a base das relações sociais, econômicas e ambientais, exigindo que as ações humanas adotem posturas práticas que sejam éticas e ou morais. Sergio de Souza Salles4, no artigo a regra de ouro, entre o amor e a justiça: uma leitura sobre Paul Ricoeur, explica a diferença entre ética e moral:
A ética considera o que é estimado como bom, enquanto a moral o que se impõe como obrigatório. Assim, a ética distingue-se da moral como o desejo de viver bem não se identifica com o respeito devido às normas obrigatórias. Em suma, a ética pressupõe e invoca a dimensão teleológica da vida e de suas práticas, enquanto a moral a dimensão deontológica.
Aplicando a distinção retro citada, a reciprocidade religiosa seria representada pela moral, enquanto que a reciprocidade científica se desenvolveria pela ética. Na lógica, inicialmente, há um entrelaçamento entre o universo religioso e o universo científico, pois, lato sensu o que se pretende alcançar com a reciprocidade possui um núcleo comum – o desejo de viver bem e a necessidade de respeitar as normas de convivência social.
A reciprocidade como uma necessidade dos novos tempos.
A crise que envolve as relações humanas impõe a necessidade de introduzir elementos de mutualidade para pacificar a guerra social (uma guerra com contornos de violência moral, psicológica, material e física), bem como para garantir a sustentabilidade das relações subjetivas que são desenvolvidas em favor do Ser Humano e dos Seres Humanos para com os demais Seres da Natureza.
A ausência da aplicação teórica e prática da reciprocidade nas sociedades torna as relações interpessoais, econômicas e ambientais finitas, fazendo com que o desenvolvimento de ações na esfera pública e na esfera privada altere o quadro socioeconômico, gerando toda sorte de miséria socioambiental e colocando a humanidade em uma guerra infinita.
Embora não se possa pretender erigir a ética da reciprocidade como um princípio supremo, universal, com capacidade de resolução de todos os problemas, a busca da simetria e da equivalência nas relações é uma necessidade das sociedades modernas. Uma sociedade justa, pacífica, onde o crescimento econômico seja realizado com a distribuição adequada dos impactos e com atenção à sustentabilidade dos recursos naturais não será alcançada através de um sistema de mais valia, um sistema que exclui os direitos sociais, condenando a maior parte da população a viver no submundo da indignidade humana; um sistema que oprime direitos civis e revela os privilégios de uma casta que assenhora a força do poder político, a opressão pelo poder econômico e a doutrinação de massa pelos diversos meios de comunicação social (rádio, televisão, redes sociais).
O desafio para a conversão (individual ou coletiva) à ética da reciprocidade encontra barreira na distinção elementar sobre o que seja um compromisso ético unilateral e bilateral. Na ética da reciprocidade unilateral, o compromisso moral é realizado com o objetivo de alcançar o bem-estar, sem qualquer intenção ou expectativa de troca ou recebimento reciproco – é o fazer pelo bem querer da humanidade. Já na perspectiva da ética da reciprocidade bilateral, o compromisso moral é realizado na forma sinalagmática, cujo descumprimento por uma das partes resulta na cólera do outro e, consequentemente, na mudança de paradigma de convivência social – é o fazer apenas pela troca, uma ética utilitarista que desconsidera a importância da cidadania, da participação, da colaboração, da fraternidade, da solidariedade e da compaixão.
Conclusão.
A reciprocidade pode ser estudada na base cientifica da filosofia, da sociologia, da economia e da psicologia. É, também, a moral religiosa, presente desde as mais remotas religiões até chegar no cristianismo protestante; todavia, o que se vê é um paradoxo, uma dicotomia, uma vez que países majoritariamente cristãos não reconhecem e não praticam a reciprocidade como regra de convivência para o bem-estar.
Destarte, a falta de reciprocidade é vista a olha nu, quando a natureza responde com catástrofes climáticas, resultado da exploração econômica predatória; quando falta água nos grandes centros urbanos, uma resposta que nasce do desmatamento, do assoreamento dos rios e do descuido com as áreas de preservação permanente; quando os animais marinhos atacam banhistas nas praias, pela falta de alimento em alto mar, decorrente da pesca predatória e da exploração de petróleo a qualquer custo. No meio ambiente social, a falta de reciprocidade é vista pelo aumento da violência, fruto da exclusão social e da falta de oportunidades para estudar, trabalhar e viver com dignidade. A ausência da ética da reciprocidade unilateral permite o surgimento de uma sociedade gélida, desumana e sem compaixão.
É necessário que a reciprocidade seja uma prática, uma forma de vida, não importa se decorre da compreensão cientifica ou religiosa, pois, reciprocidade é ao mesmo tempo uma medida de amor e uma medida de justiça, assim explicado aos cristãos em Lucas 6:38 - Dai e vos será dado. Uma medida boa, socada, sacudida e transbordante será colocada na dobra da vossa veste, pois a medida que usardes para os outros, servirá também para vós (Bíblia Sagrada, 1992).
Em outra medida, valem as composições inigualáveis da Legião Urbana, que na voz saudosa de Renato Russo transpassa o tempo para lembrar a virtude de servir a quem vence, o vencedor (Monte Castelo) e a reciprocidade do amor, suplicando que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã porque se você parar pra pensar na verdade não há (Pais e Filhos).
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