A questão do livre arbítrio

05/03/2015

Por Marina de Cerqueira Sant´Anna - 05/03/2015

Parte 4

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Após a publicação dos estudos de Hans Welzel, verifica-se que a utilização da liberdade de vontade, orientadora do seu conceito material de culpabilidade, culminou na inclusão da referida construção conceitual como um dos problemas fundamentais do Direito Penal, introduzindo uma vasta, multidisciplinar e, até então, inacabável discussão acerca da existência do livre arbítrio e da sua relevância para a Teoria da Culpabilidade.

Consoante já sinalizado, Welzel sustenta os problemas do livre arbítrio apresentam três aspectos diferentes: um aspecto antropológico, um caracteriológico e outro categorial[1]. No que tange ao aspecto categorial, o mencionado autor tece tais considerações:

[...] como é possível ao homem o domínio da coação causal por meio de uma direção orientada finalisticamente, em virtude da qual, unicamente, pode ser fazer responsável por ter adotado a decisão errada em lugar da correta?[2]

E ele mesmo responde:

[...] A forma de execução dos atos do pensamento revela, portanto, com máxima clareza, a forma fundamental de realização dos atos finais: enquanto na causalidade o efeito é a resultante cega (indiferente aos fins) dos fatores causais existentes naquele momento, na finalidade o fim determina os passos que a ele conduzem, mas não de modo que ele, por sua vez, arraste para si cegamente os diversos atos (como uma espécie de causalidade final, como na predestinação), mas porque contém as razões evidentes, apoiadas nas quais o pensamento abre por si mesmo o caminho até ele[3].

Conclui-se, assim, que para Welzel, a capacidade de vontade reside na capacidade de poder conduzir-se conforme os fins.

Luzión Peña, por exemplo, defende que a liberdade de decisão consiste na capacidade racional de motivação e autocontrole, que é adquirida progressivamente, a partir de um paulatino processo de maturidade e educação[4]. Nesse sentido, revela que

[...] la libertad de decisión consiste en la capacidad, que se va adquiriendo progresivamente en el proceso de maduración, educación y socialización, de ser, gracias a la capacidad racional de motivación y autocontrol, dueño de los propios actos –naturalmente dentro de límites de lo humanamente factible–, en vez de un mero juguete de las circunstancias, los impulsos inconscientes y demás condicionantes, salvo cuando concurren condiciones o circunstancias totalmente anormales que impiden o perturban dicha capacidad de la voluntad consciente. Este dominio de los propios actos y control de los impulsos y emociones profundas es algo que, como es sabido, se puede adquirir paulatinamente con el uso de medios como fármacos o sustancias, o de diversas técnicas de ayuda psico-fisiológica como terapias y entrenamiento de conducta, yoga, meditación profunda o introspección [...][5].

Sobre o tema, Jorge de Figueiredo Dias assevera:

[...] a liberdade não é um estado, mas um acto: o acto de libertação de coacção causal dos impulsos para uma autodeterminação adequada ao sentido [...] O homem que quer e decide, não é fundamento de si próprio, mas instrumento físico-psíquico de uma espontaneidade que conforma a sua existência, sem que haja na sua pessoa algo a que possa imputar-se a decisão e, consequentemente, a realização da vontade como coisa sua[6].

E mais:

[...] tanto aquela liberdade como esta culpa só o são se e enquanto se supõe no agente a capacidade de se comportar de maneira diversa: ele é livre porque lhe era possível comportar-se como não devia – decidir-se em favor do mal – e é culpado porque lhe era possível comportar-se como devia, libertando-se da coação causal dos impulsos. Assim, o acto livre e o acto culposo dependem daquela capacidade (e portanto de um estado!) e a decisão da vontade vem a aparecer como fruto, não do homem que decide, mas de uma espontaneidade que o conduz arbitrariamente[7].

Nesse contexto, percebe-se que a concepção tradicional da culpabilidade, como possibilidade de reprovar o fato ao sujeito, se baseia na liberdade de vontade, na liberdade de decisão e na atuação do indivíduo diante do caso concreto. Segundo tal orientação, resta evidente que podendo o sujeito livremente ter decidido atuar de outro modo – lícito – e, nada obstante, tendo o mesmo agido em contrariedade ao comando normativo, o fato poderá ser reprovado.

Ocorre que, consoante afirmam alguns doutrinadores, o livre arbítrio, nos moldes em que proposto pela teoria finalista é indemonstrável, vez que é impossível repetir a experiência daquele determinado sujeito, que atuou de maneira contrária ao comando normativo, pois, na situação posterior, já não existiriam as mesmas circunstâncias de outrora e o indivíduo já teria a experiência de ter passado pela situação pretérita e, dessa maneira, já não seria mais o mesmo[8]. Veja-se as lições de Peña:

[...] También se critica, de modo más extendido en la ciencia penal, la aceptación de la libertad desde una posición (el llamado “agnosticismo”, que no sabe si hay o no libertad) no determinista pero que objeta que la libertad de voluntad, el poder actuar de otro modo de un sujeto concreto en el hecho concreto es empíricamente, científicamente indemostrable y una tesis puramente metafísica, dado que no se puede repetir experimentalmente exactamente esa circunstancia histórica concreta de ese hombre en el tiempo y en el espacio para comprobar reiteradamente si podía decidir de otro modo, dado que la vez siguiente el sujeto ya no sería exactamente igual, pues tendría la experiencia de la vez anterior y lo sucedido después y las circunstancias no serán idênticas [...].[9]

Note-se que, para suprimir as críticas finalistas e não negar a liberdade humana, doutrinadores apresentam novas definições de liberdade. Jorge de Figueiredo Dias sustenta uma nova concepção de liberdade centrada na personalidade do agente. A liberdade nada teria a ver com o livre arbítrio, com a liberdade indeterminista de escolha e, portanto, com a capacidade de poder agir de outro modo. A liberdade, para o citado autor, residiria no ato singular determinado pelo eu ou pela personalidade do homem que atua.

Nesse contexto, registra que:

[…] o <<lugar>> da liberdade vem a cobrir-se com a mais radical e originária das realidades: o existir humano; com o que se abre à sua investigação um novo campo de possibilidades (para onde, de resto, apontam já quase todas as considerações críticas anteriores): o da essência da liberdade de cobrir com a peculiaridade irredutível do ser-homem, o de constituir ela, afinal, a originalidade de um modo de ser próprio que, como fundamento oculto, se exprime no homem e na sua obra […][10].

Com efeito, segundo Figueiredo Dias, a liberdade deve estar situada no plano em que o pensamento antropológico – associado ao orgânico do homem- e o pensamento ontológico – relacionado a inserção do ente no ser - possuam relação de verdadeira interlocução, sustentando-se, desse modo, que “uma teoria positiva da liberdade do homem só pode ser obtida a partir de uma fundamentação ontológica e tem que alcançar uma concretização antropológica”[11].

Como se percebe, há críticas contundentes ao fundamento material proposto pelo finalismo que, naturalmente, não são aqui esgotadas e nem este é o propósito. Nesse cenário, a dogmática jurídico-penal buscou avançar na busca de novos e, talvez, mais coerentes, conceitos materiais da culpabilidade - instituto de especial valor para a teoria do delito.

Após diversos questionamentos acerca da indemonstrabilidade do livre arbítrio, os mais renomados doutrinadores estrangeiros apresentaram teses que, em linhas gerais, substituem a culpabilidade por outro instituto jurídico ou indicam um novo fundamento material para a culpabilidade ou buscam a atribuição de um sentido à compreensão sobre liberdade humana.

Apenas a título de ilustração, pois não se encaixa no corte epistemológico do presente trabalho, vale citar alguns doutrinadores jurídico penais que se esforçaram nessa tentativa:  Sem desconsiderar as importantes contribuições de professores como Francisco Muñoz Conde, Eugenio Raúl Zaffaroni, Santiago Mir Puig, Armin Kaufmann, Enrique Gimbernat Ordeig, Winfried Hassemer, Jorge de Figueiredo Dias, Hans Joachim Hirsch e José Cerezo Mir, Günther Jakobs, Claus Roxin e Bernd Schünemann.

Conforme se observará no tópico seguinte, as recentes pesquisas neurocientíficas produzem, mais uma vez, novas reflexões sobre o problema do livre arbítrio na construção do conceito material da culpabilidade, já que as conclusões apresentadas, ainda que de forma incipiente, prometem uma verdadeira revolução na imagem que o homem faz de si e com uma verdadeira repercussão no âmbito da Teoria da Culpabilidade defendida pelos finalistas.


Notas e Referências:

[1] WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico Penal. Op Cit.

[2] Ibidem. P.98.

[3] Ibidem. P.99.

[4] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Libertad, Culpabilidad y Neurociencias. Disponível em: <www.indret.com>.

[5] Ibidem. P.36.

[6] DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade, Culpa, Direito Penal. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.P.45.

[7] DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade, Culpa, Direito Penal. Op. Cit.P.52-53.

[8] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Libertad, Culpabilidad y Neurociencias.Op.Cit.

[9] Ibidem. P.20-21.

[10] DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade, Culpa, Direito Penal. Op Cit. P. 136.

[11] Ibidem. P.139.


MarinaMarina de Cerqueira Sant´Anna é Graduada em Direito pela Universidade Salvador (UNIFACS), Especialista em Direito do Estado pelo Instituto Excelência- JUSPODIVM, Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Servidora Publica do Ministério Público do Estado da Bahia e membro efetivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).


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