A questão do Cânone na expressão do conhecimento médico: apontamentos filosóficos sobre uma leitura psiquiátrica

16/06/2015

I – Características e peculiaridades de uma obra de interesse:

Psiquiatria: Propostas, Notas, Comentários, livro recentemente editado por Sonenreich, Estevão e Altenfelder, psiquiatras de renome vinculados à área clínica e acadêmica do Hospital dos Servidores Públicos, em São Paulo (Lemos Editorial, 1999), consta de oito artigos, ou ensaios. Acrescido de breve prefácio e introdução, esse livro apresenta três estudos de caráter geral (Instrumental para a Atividade Psiquiátrica; Os Estudos Transculturais e Tratamento dos Distúrbios Psíquicos), ao lado de cinco estudos sobre “quadros” específicos (Alcoolismo e Toxicomanias; Delírio; Depressões; Fobias, Obsessões, Compulsões; Transtornos de Personalidade).

A questão central que permeia os diversos artigos é a crítica que se apresenta ao estatuto atual dos conceitos em psiquiatria entremeada por propostas dos autores visando estabelecer “novos” critérios para velhos temas da disciplina, com o objetivo de fundamentar caminhos de pesquisa, diagnóstico e clínica psiquiátrica.

A leitura cuidadosa de cinco destes ensaios e a atenta bisbilhotice nos demais permitem, de imediato, a afirmação de que se trata de obra de interesse para os não-médicos sob inúmeros aspectos. Dado o fato de que tais aspectos aventados são comumente desconsiderados por grande parte dos psiquiatras, que mesmo quando não os ignoram têm pouca clareza a respeito deles ou não lhes atribuem devida importância – certamente tal livro deve igualmente merecer atenção dos médicos.

O livro se presta de forma valiosa para a desconstrução da idéia de que a psiquiatria consiste em disciplina de caráter monolítico, despida de crítica interna e isenta de dissidências. Pode-se verificar que a divergência de pensamento se apresenta na disciplina não apenas entre suas grandes correntes (psiquiatria biológica x psicodinâmica, por exemplo), o que é de conhecimento geral, embora freqüentemente esquecido, como, igualmente – e é isto que o livro evidencia – a dissidência é intensa dentro de tais correntes.

Assim, sem camuflar sua manifesta simpatia pela corrente biológica, os autores vigorosamente criticam os critérios diagnósticos da psiquiatria contemporânea, de influência predominante de tal corrente, caracteristicamente estabelecidos a partir de descrições sintomáticas sem devida consideração à etiologia. Igualmente, sua posição veemente contrária à utilização de múltiplos medicamentos simultaneamente, em função dos imprevisíveis resultados das interações medicamentosas, corresponde a uma postura médica sabiamente conservadora, representando cautelas clínicas crescentemente desconsideradas pelo entusiasmo farmacológico predominante entre grande parcela dos psiquiatras de orientação biológica – o que com freqüência resulta em condutas excessivamente medicamentosas.

Os autores deixam evidente, mediante infindável apresentação de referências bibliográficas, que o padrão de pesquisa psiquiátrica é de ordem a apresentar resultados sempre contraditórios uns aos outros, demonstração de grande utilidade para contrapor à presunção de certeza que se manifesta amiúde em práticas médicas exercidas de forma prepotente sob o argumento do “conhecimento científico”.

Na crítica à pesquisa científica em curso, destacam-se dois argumentos fundamentais, ambos de interesse para o combate às justificativas freqüentemente pretensiosas e enganosas de pesquisadores. De um lado, enfatiza-se que o desenvolvimento da pesquisa, mesmo quando esta alcança êxito, pouco contribui à prática clínica. Em segundo lugar, dá-se ênfase ao fator serendipity, indicando que as descobertas relevantes na pesquisa psiquiátrica ocorreram ao acaso, de forma inesperada e não planejada.

As propostas específicas dos autores em cada área, assim como comentários diversos, no que se refere à análise de mérito, são de ordem muito variável, algumas aceitáveis, outras não, algumas apresentadas de forma fundamentada em argumentação, outras enunciadas ao estilo de argumentos de autoridade. Da parte examinada, seguramente às referentes a Alcoolismo e Toxicomanias são as menos consistentes, não merecendo consideração, salvo críticas.

Dada a própria estrutura do livro e sua concepção, na forma de artigos e ensaios, a obra é mais consistente na desconstrução do quadro conceitual e demais referenciais da psiquiatria atual do que na parte relativa a propostas. Não poderia ser diferente. Face à severidade das críticas apresentadas e à competência da desconstrução generalizada empreendida pelos autores, seria impossível reconstruir o arcabouço desmantelado por meio de poucos artigos, ainda que fatores metodológicos também tenham contribuído para esta dificuldade.

É possível que escape aos próprios autores o tamanho da desconstrução empreendida e intentada na área da psiquiatria e da psicologia, o que justificaria sua tentativa de indicar caminhos para a reconstrução por meio de breves notas e comentários. Não seria esta a conclusão, possivelmente, de uma criteriosa análise da disciplina a partir de um crivo epistemológico rigoroso. Não sendo entendidas de forma meramente retórica, as críticas apresentadas caracterizam a psiquiatria, ainda, ou mais uma vez, como uma disciplina em profunda crise de identidade sem que tenha se assegurado de seu caráter científico, dada a imprecisão de definição de seu campo de estudo e de seus métodos de investigação e análise.

Esta consolidação da disciplina, ainda que os psiquiatras tenham dificuldade de aceitar tal fato, dificilmente pode dar-se de forma autônoma na esfera da reflexão de ordem exclusivamente médica. Haveria necessidade de reflexões instruídas por outra ordem de argumentos, a partir de instrumentos mais poderosos e aptos à ordenação epistemológica que se faz necessária. De outro modo, como até hoje, será continuar apostando na possibilidade de auto-organização a partir do caos que se denuncia.

II – Filosofia da ciência e psiquiatria

Embora os diversos artigos sejam de natureza caracteristicamente médica, enquanto temática e metodologia, tratam de questões cuja essência constitui substrato que se confunde com o campo da filosofia da ciência, podendo prestar-se tal obra de subsídio de interesse para tal natureza de discussão, de igual forma que pode e deve, sob este aspecto, ser submetida à crítica epistemológica de caráter sistemático. A apresentação de tal crítica certamente surpreenderia os autores pela quantidade de questões metodológicas que poderiam ser obstadas em relação às suas Propostas.

Dentre as questões metodológicas mais delicadas e presentes de formas as mais variadas nos textos, encontra-se a questão relativa ao tratamento reverencial que os autores emprestam ao cânone estilístico da literatura médica (a compulsória enunciação de referências bibliográficas é a principal característica, cujo efeito final é deletério em muitos casos, dada a não caracterização das referências citadas, transformando-se conhecimento em informação, à revelia do desejo dos autores), ao lado de tratamento irreverente, pouco rigoroso, que os autores emprestam a cânones conceituais. Desqualificar o conceito de inconsciente em Freud em dois breves parágrafos como invenção inútil, ou o conceito de esquizofrenia sob a única justificativa de tratar-se de mero rótulo, ou mesmo, em ponto menor, porém sem menos importância do ponto de vista metodológico, desqualificar o conceito de tolerância no estudo das dependências químicas sem nenhuma justificativa — não é razoável à medida que cada uma destas noções corresponde a idéias centrais que, não intocáveis embora, exigem sólida argumentação para que a elas se contraponham outros argumentos – sob o risco de se flutuar ao meio de enunciados retóricos vazios.

Ainda a título de exemplo a respeito da irreverência frente a conceitos canônicos, pode-se dizer que mesmo que fosse aceitável que os autores apresentassem um conceito próprio para lógica, o que não é, a definição apresentada precisaria ser compatível com a definição de não-lógico ou, no caso, pré-lógico, que os autores emprestam de Piaget (um psicólogo e não um lógico). Dado o fato de que pensamento lógico-formal para a epistemologia genética piagetiana é, em síntese, equivalente à capacidade de abstração matemática — em nada tendo que ver com comunicação — e que este autor entende lógica como regulada por preceitos axiomáticos de natureza matemática e explicitamente refuta a idéia de “psicologização” da lógica, não se sustenta formalmente o enunciado de delírio como “perda de capacidade de comunicação lógica”, resultante de uma regressão ao estágio pré-lógico de desenvolvimento piagetiano, independentemente de análise de mérito, segundo a qual dificilmente se sustentaria, tampouco, bastando evocar o caso Schereber e sua capacidade de, em meio a ininterrupto delírio, argumentar e vencer sua disputa judicial em tribunal, “comunicando-se logicamente”, portanto, de forma superior à parte adversária.

Assim, de primeiro plano, o maior interesse da obra, bem como sua maior fragilidade, consiste na riqueza que oferece, tanto em seus pontos altos quanto em suas deficiências, para a crítica de aspectos metodológicos, lingüísticos e outros afetos à metodologia científica em geral, inclusive a questão relativa à delimitação de campo de estudo da psiquiatria, a partir das práticas correntes nos trabalhos médicos acadêmicos.

A intersecção entre os campos da psiquiatria e da filosofia não é desconsiderada pelos autores, que, em breve referência, mencionam o aparecimento de associações (nos EUA e na Inglaterra) para o desenvolvimento da filosofia no campo psiquiátrico, ainda que sugerindo que seria a questão específica do combate à atual hegemonia dos sistemas de classificação diagnósticas por critérios meramente sintomáticos a razão de seu advento.

Para o leitor afeito a discussões filosóficas, mormente as relativas à filosofia da ciência, desde logo fica claro, pela leitura de tal obra, que a retomada de preocupações de natureza filosófica por parte dos psiquiatras é não apenas possível quanto altamente interessante para que se possam empreender novas tentativas de sistematização da disciplina em todos os seus aspectos metodológicos, desde a definição de seu próprio campo, até a hierarquização de conceitos, métodos, linguagem, etc., tratando-se de uma reflexão necessária por razões que podem ser definidas, a partir das próprias críticas apresentadas pelos autores (e acrescendo-lhes uma avaliação sintética), pelo fato de que o estado da arte da psiquiatria como um todo, hoje, revela uma autêntica Torre de Babel (lingüística, conceitual, doutrinária) que é, afinal, o que acaba por repercutir em práticas caóticas e antagônicas não apenas na clínica como na pesquisa e nas tentativas de formulação conceitual.

A principal importância deste livro, portanto, independentemente de análise de mérito de suas Propostas específicas (várias padecendo de mazelas equivalentes àquelas que denunciam quanto ao caos conceitual da disciplina em geral) é a destemida disposição dos autores em apresentar a público reflexões de ordem geral sobre inúmeros assuntos centrais atinentes à psiquiatria, englobando-se nestas Notas e Comentários desde a crítica à estrutura conceitual da disciplina, a demonstração das discrepâncias de resultados de pesquisas, a insatisfatória relação entre o avanço da pesquisa e a melhora das práticas clínicas, sem deixar de descer ao particular pelo fato de situar, de início, suas análises em nível abrangente.

Neste sentido, o trabalho afronta a idéia da hiper-especialização, predominante hoje na medicina em geral (assim como na psiquiatria em específico), rompendo o tabu que mantém os acadêmicos agrilhoados a temas a cada dia mais estritos, só sendo possível pensar, escrever e publicar sobre detalhes cada vez menores de uma construção teórica que assim a cada dia, quando se tentam juntar as partes, revela-se crescentemente disforme.

Esta tentativa de refletir sobre o todo é em si mesma louvável, sendo digna de respeito e incentivo (ao invés de ser criticada em si mesma como o tabu contemporâneo estabelece). Se, de outro lado, os autores incidem em equívocos equivalentes aos que criticam, isto pode-se explicar pelo fato de que, simplificadamente, há de considerar-se a possibilidade de duas naturezas distintas de reflexões na construção de um saber científico, sendo uma de função criativa, envolvida na formulação das hipóteses e dos enunciados e outra, complementar, de natureza crítica, necessária à verificação da coerência interna (lógica) de cada conceito específico, assim como a sua articulação com os demais conceitos da mesma disciplina e de outras disciplinas correlatas.

A grande contribuição que a filosofia da ciência pode oferecer a cada disciplina específica consiste, justamente, no fornecimento de um instrumental metodológico para o exercício sistemático desta reflexão crítica, propiciando condições de um ordenamento teórico mais consistente da reflexão criativa. Mais do que meramente instrumental, entretanto, a contribuição filosófica advém de uma tradição de pensamento que se alimenta reflexivamente das propostas científicas, oferecendo uma explicitação a respeito da natureza e do significado dos saberes científicos que são desconhecidos da própria ciência e, assim, dos cientistas.

Há reflexão de ambas as naturezas no livro de Sonenreich, Estevão e Altenfelder, entretanto de forma desbalanceada. Há reflexão crítica, instruída por vasta bibliografia em grande parte, em outra parte enunciada na forma de argumentos de autoridade, a respeito de conceitos (e circunstâncias correntes) da psiquiatria atual e de disciplinas correlatas (psicologia principalmente).

Não há reflexão crítica suficientemente instruída, entretanto, a respeito da reflexão criativa apresentada pelos próprios autores. A este fato é que se deve debitar a parte frágil da obra, sendo de se notar que, desta forma, do ponto de vista metodológico e epistemológico, a reflexão crítica apresentada a respeito da psiquiatria em geral não é nitidamente incorporada na própria obra dado o fato de que ela reproduz características que são objeto de sua própria crítica, tal qual se tratasse de um texto que é inconsciente de si mesmo.

Extrapola a possibilidade deste comentário a identificação, ponto a ponto, dos pecados metodológicos dos autores, eventualmente aceitáveis pelo crivo da medicina mas certamente não admissíveis sob o crivo de análise epistemológica mais criteriosa.

Sendo justo disto que se trata o livro afinal (o que os autores apresentam como sendo a parte mais vulnerável da psiquiatria atual é justamente a precariedade conceitual — a tal ponto que defendem novas propostas), não me furtarei à tal responsabilidade de oferecer contribuição mais específica, caso de interesse, em próxima oportunidade.

Não obstante a natureza da apreciação crítica aqui apresentada, característica que distingue recensões de resenhas, é de se louvar a iniciativa dos autores pela amplitude de pensamento a que elevam as discussões em psiquiatria, não se deixando enquadrar na escravidão da hiper-especialização. Outras obras de igual gênero são necessárias e serão igualmente bem vindas.


Publicado inicialmente em: Psychiatry on Line – Brasil, Volume 5/ano 2000/nº 10/outubro.

Part of The International Journal of Psychiatry

Disponível em: http://www.polbr.med.br/ano00/artigo1000.php


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

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