A quem serve o paradigma do “homem médio” ?      

31/07/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Como venho insistindo, é urgente repensar o conceito de culpabilidade sob o nosso olhar, o olhar da América Latina, se quisermos continuar apostando na função do Direito penal de contenção do poder punitivo do Estado. Sim, a dogmática precisa estar atenta à realidade, caso contrário se enclausura nas suas próprias teorias e conceitos, em vez de se prestar a melhor resolver casos concretos.

A 8ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em recente julgamento publicado em 22/07/2020, à unanimidade, afastou a preliminar suscitada e, no mérito, negou provimento a apelação criminal nº 5015547-31.2019.4.04.7000/PR[1]. O caso, em síntese, se refere a hipótese de condenação, em primeira instância, por prática de crime tipificado no art. 171, parágrafo 3º, do Código Penal, a pena de 01 (um) ano, 06 (seis) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, tendo sido substituída por penas restritivas de direitos. De acordo com os autos, o réu teria falsificado a anotação de rescisão do contrato de trabalho com intuito de sacar o FGTS e receber o seguro desemprego.

A primeira questão que merece algumas breves considerações é quanto a preliminar de suspensão do julgamento para o fim de possibilitar tratativas atinentes ao acordo de não persecução penal[2]. Com efeito, a citada turma não a acolheu, sob o fundamento de que “somente é cabível o referido acordo antes do início da ação penal”. Ora, estabelecer o recebimento da denúncia como marco temporal para fins de retroatividade do art. 28-A, introduzido no CPP pela da Lei nº. 13.964/2019, representa violação de direitos. Como se sabe, há consolidada doutrina estrangeira[3] e nacional[4] que defende a ampla retroatividade da lei processual penal quando implica em ampliação de garantias constitucionalmente asseguradas, daí porque sua aplicação no tempo deve ocorrer tal qual as normas penais[5].  

Mas não é só. O ponto da decisão que me parece mais importante para ser aqui refletido é o de mérito. A defesa sustentou inexigibilidade de conduta diversa, sob o fundamento de que, à época do fato, o réu enfrentava grandes dificuldades financeiras, na posição de arrimo da família, com um filho recém-nascido acometido de crises alérgicas e sua esposa desempregada, de forma que as despesas excediam em muito o que auferia mensalmente”. Registre-se que os autos apontam para a circunstância de que o acusado recebia, à época, como gerente de produção, cerca de R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais).

A mencionada Corte, ao enfrentar o citado argumento, decidiu que: "A mera insuficiência de recursos não caracteriza o estado de necessidade ou a situação de inexigibilidade de conduta diversa, bem como dificuldades pessoais de ordem econômica ou familiar não justificam a prática do ilícito, sob pena de violação dos princípios que regulam a vida em sociedade, sobretudo o respeito às leis."  Mais adiante, sustentou: de fato, situações de pobreza, exclusão social ou desemprego, tão comuns nos dias de hoje, não podem ser escusa para a prática de atividade criminosa, sob pena de se legitimar o cometimento de inúmeros de ilícitos, o que não se pode admitir”. (Grifos acrescidos).

Como já se afirmou[6], a culpabilidade como juízo de valor acerca do injusto, será confirmada quando, respeitados os seus demais elementos, e, partindo-se da figura do “homem médio”, restar demonstrado que o sujeito poderia ter atuado de outro modo, isto é, que a conduta conforme o direito lhe era exigível.

O “homem médio”, ficção jurídica, representa, portanto, critério para avaliar a exigibilidade de conduta diversa e possui adesão em boa parte da doutrina que, aliás, parte do princípio de que o “homem médio” deve ser colocado na posição do autor, imaginando-o com todos os seus conhecimentos e condições pessoais[7].     

Ocorre que, para além das críticas a essa categoria do “homem médio”, como um homem que não existe[8], o que se constata, ao sermos confrontados com a realidade do funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro, como bem retrata o julgado aqui compartilhado, é que a mencionada categoria não ocupa a posição do autor, mas ao contrário, é o autor quem é “deslocado” para o “lugar” do “homem médio”, compreendido como “la mayoría de los hombres”, “lo que suelen tener la generalidad de las personas”[9], que, frise-se, sob as lentes do julgador, e numa sociedade marcada pelo capitalismo, patriarcado e racismo[10], como é o Brasil, ocupa um lugar distante (e muito!) das circunstâncias e contingências nas quais se insere a  “clientela” preferencial do poder punitivo[11]

Ora, não se pode desconsiderar “todas las infuencias sociales, culturales e incluso econòmicas que de algún modo acotan su espacio de libertad y a veces influyen directamente en el grado de exigibilidad que pueda tener respecto de ellos”[12]. A relação (inversamente proporcional) entre os conceitos de vulnerabilidade e de culpabilidade, como brilhantemente nos ensina Zaffaroni[13], precisa ser urgentemente resgatada.

Note-se, demais, que a culpabilidade, como “qualidade da ação”[14], não pode se distanciar das condições que permitiram afirmar a conduta como típica e antijurídica, mas, a partir daí, não se deve, de pronto, afirmá-la como juízo de reprovação, mas sim verificar se é possível afastá-la/excluí-la, apesar da prática do injusto. Dito mais claramente, é fundamental (re)pensar a culpabilidade como conceito limitador[15].

O aludido julgado é apenas uma exemplo do cotidiano do nosso sistema de justiça criminal que deve servir para reforçar a importância da (constante) reflexão crítica sobre a necessidade de (re)construção de uma dogmática atenta à realidade, sob pena de, ensimesmada, servir ao poder punitivo, ao invés de contê-lo.   

 

Notas e Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. - 3ª edição, Rio de Janeiro, Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, São Paulo: Selo Negro, 2011. 

CARVALHO, Américo Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 3ª edição, Coimbra editora, 2008.

CERQUEIRA, Marina. Culpabilidade: um conceito em (re) construção. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-22/marina-cerqueira-culpabilidade-conceito-reconstrucao

JUNIOR, Aury Lopes. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal

MARTÍNEZ, Milton Cairoli. La inexigibilidad de otra conducta. Una aproximación desde la dogmática. In Direito Penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. Organizadores: Luís Greco e Antônio Martins, Marcial Pons, 2012.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Crime de estelionato depende de representação: e agora?  Disponível em: https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/802022250/o-crime-de-estelionato-depende-de-representacao-e-agora?ref=serp

QUEIROZ, Paulo. A Aplicação da Nova Lei no Tempo. In: Inovações da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Coletânea de Artigos, vol. 7. Ministério Público Federal. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy_of_2CCR_Coletanea_Artigos_FINAL.pdf#page=13

SCARANO, Luigi. La non esigibilità nel diritto penale, Casa Editorial Libraria Humus. -Nápoli, 1948.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual do Direito Penal Brasileiro. 6º edição: São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[1] TRF 4‘ REGIÃO -  8 TURMA - APELAÇÃO CRIMINAL N. 5015547-31.2019.4.04.7000/PR - Data da publicação: 22/07/2020. EMENTA: “DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. ESTELIONATO MAJORADO. ART. 171, § 3º, DO CP. ESTADO DE NECESSIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. 1. A Lei n.º 13.964/2019, no ponto em que dispõe sobre o acordo de não persecução penal, aplica-se de pronto aos procedimentos de investigação que ainda não tenham redundado em denúncia recebida, desimportando a data do fato. 2. Situações de pobreza, exclusão social ou desemprego não podem ser escusa para a prática de atividade criminosa, de forma que a insuficiência de recursos, por si só, não caracteriza o estado de necessidade ou a inexigibilidade de conduta diversa, sob pena de violação aos princípios que regulam a vida em sociedade” (Grifos acrescidos). https://www.conjur.com.br/dl/acordao-turma-trf-mantem-sentenca9.pdf

[2] Art.28-A, do CPP, introduzido pela Lei nº. 13.964/2019.

[3] CARVALHO, Américo Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 3ª edição, Coimbra editora, 2008.

[4]Vale consultar: JR., Aury Lopes: https://www.conjur.com.nr/2020-mar-06/limite-penal-questões-polêmica-acordo-ao-persecução-penal.

QUEIROZ, Paulo. A Aplicação da Nova Lei no Tempo. In: Inovações da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Coletânea de Artigos, vol. 7. Ministério Público Federal. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy_of_2CCR_Coletanea_Artigos_FINAL.pdf#page=13

MOREIRA, Rômulo de Andrade: https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/802022250/o-crime-de-estelionato-depende-de-representacao-e-agora?ref=serp

[5] Art.5º, XL, da CF/88, e art. 2º, § único, do CP.

[6] CERQUEIRA, Marina: https://www.conjur.com.br/2020-jul-22/marina-cerqueira-culpabilidade-conceito-reconstrucao

[7] MARTÍNEZ, Milton Cairoli. La inexigibilidad de otra conducta. Una aproximación desde la dogmática. In Direito Penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. Organizadores: Luís Greco e Antônio Martins, Marcial Pons, 2012, p. 43.

[8] SCARANO, Luigi. La non esigibilità nel diritto penale, Casa Editorial Libraria Humus, Nápoli, 1948, p. 80 e 81.

[9] Ibidem, p. 43.

[10] CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, São Paulo: Selo Negro, 2011. 

[11] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. - 3ª ed., Rio de Janeiro, Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 105.

[12] MARTÍNEZ, Milton Cairoli. La inexigibilidad de otra conducta. Una aproximación desde la dogmática. Op. Cit., pp.50-51.

[13] ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual do Direito Penal Brasileiro. 6º ed: São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[14] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p.419.

[15] Ibidem, p.419.

 

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