A quebra de sigilo telemático genérica na investigação o caso Marielle: violação da lei “em nome do bem”  

30/05/2019

 

Em 14 de março de 2018 a vereadora Marielle Fraco foi assassinada no Rio de Janeiro com vários disparos de arma de fogo. Sua morte foi marcada como um atentado contra os direitos humanos, já que Marielle, além de pautar sua atuação política na defesa de minorias, como a população negra, pobre e LGBT, também era uma grande crítica dos arbítrios que o Estado promovia usando a esfera penal.

O delito, ao que foi indicado na mídia, foi executado de maneira complexa e por pessoas que tinham conhecimento das técnicas de investigação e por isso, agiram para dificultar ou impossibilitar a identificação dos responsáveis.

O crime foi alvo de repercussão nacional e internacional, merecendo inclusive cobrança de responsabilização por entidades ligadas aos direitos humanos no âmbito internacional, como a Human Rights Watch[1], Anistia Internacional[2], Alto Comissariado das Nações Unidas par aos Direitos Humanos[3], entre outros.

A dificuldade da investigação ficou clara com o passar do tempo, inclusive com a informação de que a Polícia Federal instaurou inquérito[4] para apurar obstrução às investigações presididas pela polícia civil do Rio de Janeiro.

Prestes a completar um ano do crime, duas pessoas foram presas[5] acusadas de serem os executores do delito.

Em 17 de abril de 2018 veio a público[6] a informação de que o poder judiciário, atendendo a pedido da autoridade policial determinou quebra de sigilo telemático de um número indeterminado de pessoas, determinando que o GOOGLE fornecesse os endereços IP e devicesID de qualquer usuário que tenha feito pesquisas associadas ao nome de Marielle entre os dias 10 de março de 2018 e 14 de março de 2018.

Como o inquérito tramite em sigilo, a decisão que determinou tal quebra de sigilo não foi disponibilizada ao público, motivo pelo qual o presente artigo objetiva analisar os pressupostos constitucionais e processuais da legalidade desta.

Inicialmente é importante explicar tecnicamente alguns termos informáticos para melhor compreensão.

Endereço IP (ip address) é uma sequência de algarismos que identificam cada conexão com a internet. Ao contrário do que muitos afirmam, o endereço IP não necessariamente identifica o dispositivo que acessa a internet, mas sim a origem da conexão. Assim, como exemplo, vários computadores que estão dentro de uma rede doméstica, terão o mesmo endereço IP de internet, que é distribuído à entrada da conexão (modem ou roteador do provedor de internet). Neste caso exemplificado, o endereço IP será o da entrada daquela rede à internet.

Porém, quando o dispositivo se conecta diretamente à internet, como por exemplo no celular que usa internet através de uma conexão 3g ou 4g, este terá um endereço IP de internet diretamente atribuído a ele.

Assim, verificamos que o endereço IP tem o potencial de identificar a conexão de acesso a internet, seja direta ou indiretamente.

DeviceID, ou device identification, é uma sequência de 40 caracteres que identifica individualmente um smartphone ou tablet conectado à internet.

Estes dados são recolhidos por uma série de serviços na internet, desde o próprio google, que os utiliza para guardar o histórico de pesquisas e acesso e prover publicidade direcionada até os bancos, para auditoria de controle de segurança.

Os dados do endereço IP ou deviceID junto dos dados de acesso foram os chamados metadados, que são armazenados pelos provedores de serviço na internet.

A Constituição da República trouxe no inciso XII do artigo 5º a determinação de inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. Considerando que nenhum direito é absoluto, o mesmo inciso determinou que em hipóteses previstas em lei, tal inviolabilidade poderia ser afastada.

O art. 22 da lei 12.965/14, conhecida como marco civil da internet dispõe sobre a possibilidade de determinação de fornecimento de registros de conexão e registro de acessos a aplicações da internet:

Art. 22.  A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.

Parágrafo único.  Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:

I - fundados indícios da ocorrência do ilícito;

II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e

III - período ao qual se referem os registros.

Verifique que os requisitos expostos na legislação citada são: (1) fundados indícios de ocorrência de ilícito; (2) justificativa da utilidade dos registros solicitados e (3) período dos registros.

Não há nenhum requisito para proteger o cidadão de uma busca genérica. E mais, não há qualquer informação (dentre as divulgadas) de que houve alguma parte da execução do ilícito no período determinado.

O Superior Tribunal de Justiça (AgRg no HC 455292 – Relatoria: Ministro Nefi Cordeiro – Publicação em 18/02/2019) já decidiu que para afastar a garantia de inviolabilidade das comunicações deve-se necessariamente resguardar o disposto no art. 2º da lei 9.296/96, que trata sobre os requisitos limitadores para a interceptações do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática:

Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:

I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;

II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;

III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

Verifica-se que é requisito indispensável “indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal” do alvo da interceptação, ou, no caso, do afastamento de sigilo dos metadados de serviço de internet.

No caso, pelas notícias apresentadas na imprensa, houve um mandado aleatório e genérico para tornar alvo de investigação todo aquele que eventualmente tenha pesquisado sobre Marielle nos dias determinados no mandado judicial.

Obviamente tal determinação se mostra como ato de arbítrio Estatal não autorizado seja pela legislação infra-constitucional ou pela Constituição da República. Philipe Benoni Melo e Silva adverte que o Estado não está autorizado a desrespeitar as normas legais para punir aqueles que a desrespeitam, cometendo atos típicos ilícitos e culpáveis:

o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão devem sempre prevalecer frente ao poder punitivo do Estado, uma vez que a imposição de limites ao totalitarismo estatal é a maior garantia alcançada pelo cidadão, dentro e fora do processo[7]

Tal ato configura-se como o chamado fishing expedition, que se trata de ordem judicial não delimitada, fomentando um estado policialesco onde os direitos e garantias fundamentais são afastados em prol de um bem maior, que seria o combate a criminalidade, como pontua Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa[8].

O fenômeno recente de análise dos metadados pelas autoridades é sedutor em termos que persecução penal. Afinal, não se pode afastar o pensamento de utilidade da quebra de sigilo telemático de quem pesquisou sobre Marielle nas vésperas do delito, porém isso é simplesmente uma sugestão. Não há notícias de que os responsáveis pelo seu homicídio de fato fizeram tal pesquisa.

Não há dúvidas, porém, que o resultado do afastamento de sigilo irá apresentar a identificação de centenas (talvez milhares) de pessoas que serão submetidas a investigação a partir do autor e não do fato. Ou seja, elas serão investigadas porque buscaram informações sobre Marielle e não porque há qualquer indício de sua participação no delito. Ainda assim, terão sua intimidade devassada, possivelmente com outras cautelares.

Esta violação da intimidade é vedada inclusive pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 11, item 2 dispoe:

“Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”

É impossível não ligar este tipo de decisão ao sistema inquisitório do processo penal, já que o Estado simplesmente ignora as garantias pelo qual deve se nortear no exercício da persecução penal. O Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho assim expõe sobre o sistema inquisitório:

“O estilo inquisitório inverte as perspectivas: o processo se torna negócio terapêutico; a pena é um remédio; queira ou não, é necessário que o imputado coopere; sendo ofendido pelos interesses supremos do pecado-delito, ignora-se qualquer limite de garantia, porque os indivíduos desaparecem diante de nomes como Igreja, Estado, Partido e simulares.”[9]

Não se pode admitir que o Estado, buscando a legitima responsabilização dos responsáveis pelo assassinato de Marielle e Anderson, ignore a própria ordem legal de limitação do poder punitivo, afastando os direitos fundamentais de garantia de privacidade e intimidade de um número indeterminado de pessoas.

Por fim, é importante lembrar Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[10] e o Marco Aurélio Mello[11] que convergem no entendimento de que o preço de se viver em um Estado Democrático de Direito é o respeito irrestrito à Constituição e determinações legais pelo Estado.

É desejo de todos que os responsáveis pelo bárbaro homicídio de Marielle e Anderson sejam responsabilizados, mas o marco civilizatório obriga que o Estado exerça seu jus puniendi respeitando os direitos e garantias fundamentais de todos. Somente assim será possível garantir legitimidade na decisão e segurança sobre os identificados como responsáveis.

 

Notas e Referências

[1] https://www.hrw.org/pt/news/2019/03/13/328111

[2] https://anistia.org.br/entre-em-acao/email/acao-urgente-justica-para-marielle/

[3] https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=24335&LangID=E

[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/01/politica/1541098339_721451.html

[5] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/12/policia-prende-suspeitos-pelos-assassinatos-da-vereadora-marielle-franco-e-anderson-gomes.ghtml

[6] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/17/justica-autoriza-quebra-de-sigilo-de-quem-pesquisou-sobre-marielle-na-internet-dias-antes-do-crime.ghtml

[7] Philipe Benoni Melo e Silva – Fishing Expedition: a pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. Em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-24/limite-penal-fishing-expedition-via-mandados-genericos-favelas#_ftn1

[8] Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa – A ilegalidade de fishing expedition via mandados genéricos em “favelas”. Em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-24/limite-penal-fishing-expedition-via-mandados-genericos-favelas#_ftn1

[9] Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: estudos sobre a reforma do CPP no Brasil: Volume 4. P. 113

[10] Glosas ao Verdade, Dúvida e Certeza, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. Em: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001). Editora Lumen Juris. P. 177

[11] Prende e Solta. Em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=287702&sigServico=noticiaArtigoDiscurso&caixaBusca=N

 

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