Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Coronavírus e o cenário de crise e perdas
Estamos a aproximadamente 1 ano e 7 meses imersos e imersas em uma crise sanitária sem precedentes na nossa história recente. Quando o novo coronavírus chegou e se alastrou pelo planeta, não tínhamos formas de controle efetivas, além de medidas de restrição da circulação e contato, por meio do isolamento social e uso de máscaras. Ainda assim, muitos serviços - considerados essenciais - precisaram continuar funcionando, minimamente, como os serviços de saúde e assistência, alimentação e transporte. Em meio a pandemia da COVID19, no Brasil, enfrentamos também crises política, econômica, ambiental e social, que deixaram e deixam a sua população em situação de maior vulnerabilidade e adversidade. Essas crises foram agravadas a partir de uma gestão desastrosa do governo Bolsonaro, que aumentou as medidas de austeridade e segue retirando direitos e desmontando as políticas públicas, principalmente as de Assistência Social, Saúde e Educação.
Entre o início da pandemia, por volta de março de 2020, até o início de outubro de 2021, no Brasil, atingimos a marca de mais de 600 mil pessoas mortas pela COVID19, número que pode ser maior, vide os escândalos envolvendo a Prevent Senior[1], entre outras possíveis subnotificações. Um número como esse gera consequências as mais variadas, como por exemplo, uma quantidade alarmante de crianças e adolescentes órfãos, que perderam seus principais cuidadores e que não conseguem dimensionar ainda os efeitos dessas perdas nas suas vidas. De acordo com um estudo publicado pela revista The Lancet (2021)[2], o Brasil figura o 2º lugar em número de órfãos no mundo, com cerca de 130 mil, perdendo apenas para o México, com 140 mil crianças e adolescentes órfãos - número calculado entre março de 2020 e abril de 2021.
As perdas provocadas pela pandemia e por um mundo extremamente desigual[3] - em meio a pandemia da covid19, milionários brasileiros aumentaram seus patrimônios e seguiram lucrando e ficando mais ricos, ainda que a maioria da população tenham ficado ainda mais pobre, além do aumento da fome e miséria - são devastadoras, desde a perda física de um parente/cuidador/a que deixa crianças e adolescentes em situação de desamparo socioafetivo e econômico até as perdas macrossociais, de condições de vida e existência, que afetaram e afetam as populações mais vulnerabilizadas - mulheres, pessoas LGBTs, pessoa com deficiência e pessoas negras e indígenas.
Dentre esses grupos, as crianças e adolescentes que perderam seus pais e/ou responsáveis para a COVID19, estão sendo consideradas vítimas “invisíveis” da pandemia devido à falta de dados e informações mais precisas, assim como, ausência de um olhar atento para essa nova realidade, que possibilite ações rápidas e efetivas de suporte e assistência a essa população. Esses dados também são importantes pois, justamente por não serem o público que morre em virtude da pandemia, há implicações psicossociais, que afetam o desenvolvimento e as relações familiares e comunitárias (Weaver & Wiener, 2020), após a perda dos adultos cuidadores/responsáveis
De acordo com reportagem do El país (2021)[4], o Sistema Nacional de Adoção (SNA) informou não ter tido um aumento no número de acolhimentos, porque as crianças e adolescentes tendem a permanecer com a família de origem, principalmente avós e tias/os, após o falecimento dos seus responsáveis. A mesma reportagem apresenta dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontando que cerca de 168.500 crianças e adolescentes perderam pai ou mãe na pandemia até outubro de 2021 - número que pode chegar a 194.200, se forem considerados os avós que tinham a guarda da criança.
A Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), divulgou um dado que mostra que 12.211 crianças, com até seis anos de idade, perderam seus principais responsáveis entre março de 2020 até setembro deste ano. Na mesma reportagem, constam os estados que lideram o número de cuidadores/responsáveis que faleceram no período citado, são eles: São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná, de acordo com as informações disponibilizadas pelos cartórios. Especialistas apontam a necessidade de maior transparências dos dados e de mapear quem são essas crianças e adolescentes para que, assim, o Estado possa pensar e planejar ações de cuidado e assistência, previstas tanto pela Constituição Federal (CF) quanto pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).
Na reportagem para o G1[5],a pesquisadora de doenças infecciosas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do Estados Unidos, Susan Hillis, chama a atenção para a tragédia desse cenário, ela diz: "Se você parar agora e contar até 12, é o tempo que basta para haver um novo órfão por covid-19 no mundo." Dito de outra forma, uma criança é deixada órfã a cada dois adultos que morrem pela pandemia no mundo, o que demonstra a urgência de ações por parte do Estado e da sociedade.
Como mencionado no início desse texto, se antes da COVID19, a situação de vulnerabilidade socioeconômica já atingia boa parte das crianças e adolescentes brasileiros, com a pandemia, já é possível observar uma situação ainda pior em termos de condições de vida, uma vez que essa população perdeu suas e seus cuidadores principais e as/os responsáveis pela renda familiar. Nesse cenário, tios/as, avós/avôs e demais parentes que assumiram os cuidados dos seus familiares precisam recorrer, muitas vezes, a doações, porque ainda não existe uma política de transferência de renda que leve em conta a atual situação desse grupo. Se é fato que a pandemia pegou todas as pessoas de surpresa e que após cerca de um ano e meio depois ainda não foi possível dimensionar totalmente os danos, também é fato que já é possível verificar vários dos estragos, perdas, dores e consequências dessa crise sanitária.
Pandemia da dor e desamparo e a prioridade absoluta de crianças e adolescentes
Uma constatação feita a partir da crise que a pandemia desencadeou foi de que as políticas de saúde e, consequentemente, os equipamentos dessa política, ao redor do mundo, não estavam preparados para lidar com um evento dessa dimensão. Nesse sentido, a pandemia gerou um choque inicial e uma urgência em se pensar o enfrentamento à situação de morte provocada pela COVID19 e, em nenhum momento, os Estados pensaram nos desdobramentos dessas mortes.
Ao chamamos a atenção para as crianças e adolescentes que ficaram órfãos, também damos visibilidade a questões como: falta de políticas de assistência à crianças e adolescentes; prejuízos na convivência familiar e comunitária, prejuízos na escolarização e outras demandas de saúde; situação de miséria e fome, que podem levar a um aumento da vulnerabilidade e colocar essas crianças e adolescentes em maiores riscos.
Sabemos que ainda não há como produzir muitos estudos e pesquisas, até porque todos os esforços ainda estão direcionados a enfrentar a pandemia. Mas podemos e devemos aprender com as experiências anteriores e outras pandemias que se alastraram pelo mundo. Por exemplo, sabemos que as pandemias geram efeitos e consequências individuais e coletivas, tais como: aumento da pobreza e miséria que atinge, principalmente, os grupos mais oprimidos ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica e afetiva, como crianças e adolescentes, mulheres, população LGBTI, pessoas negras e pessoas com deficiência; desemprego; adoecimento psicológico, com deterioração da saúde mental, muitas vezes, provocadas pela perda de referências e isolamento social; e, luto, que atingiu pessoas de diferentes classes sociais. Nas classes sociais média e alta, no entanto, a possibilidade de contar com uma rede de suporte e com assistência em saúde, torna o processo do luto mais “possível” de encarar, enquanto que para a população pobre, até o velório e enterro dos seus entes queridos foi comprometido pela falta de recursos financeiros. Ou seja, ainda que todas/os nós estejamos passando pela pandemia, não estamos vivenciando da mesma forma, pois não estamos no mesmo barco, isso quer dizer que a depender da classe social, do gênero e da raça/etnia, as experiências podem ser ainda mais dolorosas e difíceis.
Nesse sentido, o Estado precisa atuar a partir de vários níveis. Os especialistas indicam a necessidade de fortalecermos os relacionamentos com familiares e amigos, na perspectiva de construção de redes de apoio e suporte mútuos, utilizando as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), por exemplo. Do ponto de vista do Estado e sociedade é necessário ampliar as possibilidades de atuação e intervenção para a prevenção de mortes, por meio da ampliação da vacinação para todas as pessoas, principalmente, para os grupos mais vulneráveis ao mesmo tempo em que ainda é importante manter as medidas de distanciamento social, utilização de máscaras e higienização apropriada das mãos, mas também nos perguntamos como é possível fazer isso quando a pressão para flexibilizar as medidas e normas se faz tão forte?
Ainda precisamos de campanhas que alertem que a pandemia não acabou e que, por mais que as mortes tenham diminuído, assim como o número de pessoas infectadas, ainda há mortes e pessoas infectadas. É preciso seguir falando e alertando as pessoas, na perspectiva da prevenção e também dialogando sobre as estratégias de lidar com as perdas e com novos modelos e configurações de famílias que passaram a se constituir a partir dessas perdas. Insistimos, mais uma vez, que precisamos proteger e amparar as crianças e adolescentes que perderam seus cuidadores/as e responsáveis diretos, pois além da perda de referência, essas sujeitas e sujeitos ainda estão lidando com a dor do luto - nas suas formas mais diversas -, com a maior exposição à violência, em muitos casos; com a mudança repentina e abrupta de contexto e rotina; entre outros efeitos.
Com relação ao luto, estudiosos enfatizam que é preciso conversar com a criança sobre esse tema de forma honesta e informativa, sem arrodeios, mas de forma a acolher os sentimentos e as dúvidas que possam existir, tratando esse processo como algo que faz parte do ciclo de vida, algo natural e que, portanto, pode aparecer nas histórias e brincadeiras, na escola, e em outros espaços de socialização das crianças (Silva, Miranda, Silva & Szylit, 2020).
De forma geral, quando as perdas abarcam pessoas da rede socioafetiva, é essencial prestar atenção em algumas questões para que o luto seja elaborado de uma forma saudável, por exemplo, lidar com a realidade da perda envolve a aceitação dessa realidade; o reconhecimento do sofrimento que essa perda acarreta é importante para não recair em subterfúgios para reprimir ou evitar a dor; as tarefas ou responsabilidades que a pessoa falecida deixou e que precisam ser exercidas por alguma outra pessoa, que vai exigir uma reorganização daquele contexto - como nos casos de crianças e adolescentes órfãos -; entre outras situações (Worden, 2018) que envolvem a necessidade e reconhecimento do significado das consequências e danos provocados pela pandemia.
No outro patamar, há processos incipientes que apontam alguma movimentação por parte do poder público e parlamentares, como a construção de projetos de lei que preveem uma pensão aos órfãos da COVID19, como uma espécie de compensação e garantia de renda mínima. De acordo com a reportagem do El país, alguns estados conseguiram aprovar auxílios, é o caso do Maranhão que aprovou o “Auxílio Cuidar”, que destina 500 reais, por mês, até os 21 anos de idade; já Pernambuco aprovou o benefício continuado “Pernambuco Protege”, com destinação de 550 reais até esse público atingir a maioridade, podendo se estender até os 24 anos caso o/a beneficiário/a ingresse em uma universidade. E há também iniciativas da sociedade civil, como o projeto “Mães que Acolhem”, de Jundiaí/SP, que foi criado com o intuito de prestar assistência a crianças que perderam seus cuidadores e/ou responsáveis diretos. Pelo grupo, há oferta de apoio psicológico, assessoria jurídica e médica, além da doação de alimentos e roupas para as famílias[6].
Por fim, é preciso reforçar que a pandemia ainda não acabou e que é possível que precisemos lidar com outras pandemias ou crises sanitárias no futuro próximo, tendo em vista a degradação do meio ambiente que pode produzir outras e novas ondas de enfermidades, e demais questões sociais que se intensificam a partir da intensificação da exploração produzida pelo capitalismo. É urgente atuar para fortalecer as políticas públicas e tornar lei os programas e projetos que, muitas vezes, deixam de existir em virtude de decisões políticas e dos interesses do capital e do grande empresariado, vide o caso do Bolsa Família, entre outros. A proteção integral de crianças e adolescentes, como prevê o ECA é uma responsabilidade de todas e todos nós e dever do Estado, portanto, precisamos dar visibilidade aos chamados "órfãos" da COVID19 e cobrar o que a lei prevê e novas leis que protejam, garantam direitos e deem assistência socioeconômica e afetiva a essa população.
Notas e Referências
Crepaldi, M. A., Schmidt, B., Noal, D. S., Bolze, S. D. A., & Gabarra, L. M. (2020). Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200090. https://doi.org/ 10.1590/1982-0275202037e200090
Hillis, S. D et al (2021). Global minimum estimates of children affected by COVID-19-associated orphanhood and deaths of caregivers: a modelling study. Lancet, 398, p. 391–402. https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(21)01253-8
Silva, I. N; Miranda, A. C. H.; Silva, L. T. P; Szylit, R. (2020). Ajudando as crianças a enfrentarem o luto pela perda de pessoas significativas por COVID-19. Revista da Sociedade Brasileira de Enfermagem e Pediatria (Especial COVID-19):85-90
Weaver, M. S., & Wiener, L. (2020). Applying palliative care principles to communicate with children about COVID-19 [Ahead of Print]. Journal of Pain and Symptom Management. https://dx.doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.020
Worden, J. W. (2018). Grief counseling and grief therapy: a handbook for the mental health practitioner. New York: Springer
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-07/escandalo-da-prevent-senior-ganha-rosto-com-depoimento-de-medico-e-paciente-a-cpi-da-pandemia.html
[2] https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(21)01253-8.pdf
[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml
[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-24/invisiveis-orfaos-da-covid-19-encaram-a-dor-e-o-desamparo-tentamos-seguir-a-nossa-vida.html
[5] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/07/22/brasil-tem-1-orfao-por-covid-a-cada-5-minutos-pensamos-que-criancas-nao-sao-afetadas-mas-e-o-oposto.ghtml
[6] https://extra.globo.com/noticias/rio/a-dor-de-uma-geracao-marcada-pela-covid-pandemia-ja-deixou-mais-de-130-mil-criancas-adolescentes-orfaos-no-brasil-25230957.html
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