A “promoção acusatória” não é para todos

16/08/2015

 Por Eduardo Januário Newton - 16/08/2015

O contexto desse breve estudo é o cenário fluminense do início do século XXI, sendo certo que poderá ser encontrado em outros horizontes, uma vez que a sanha punitiva não é exclusividade deste ente da federação.

Dois aspectos não constituem novidade a serem apresentadas: existe uma construída imagem, e aqui não se pode deixar de realizar a devida responsabilização da mídia em todas as suas manifestações, que é transmitida à sociedade de que poderosas e articuladas “organizações” criminosas comandam a distribuição e comercialização de drogas no horizonte fluminense, e ainda a divisão, que veio a ser explicitada por Zuenir Ventura[1], entre o asfalto e morro.

As “organizações” criminosas teriam, segundo a versão que transcorre publicamente, na convivência entre criminosos comuns e aqueles que eram tidos como perseguidos políticos ao término da ditadura civil-militar as suas origens.

Uma singela análise sobre o crime organizado existente no Rio de Janeiro, mais especificamente na sua capital e região metropolitana, necessita ter o zelo como premissa para que seja possível se afastar de visões extremistas.

É fato de que a ausência do poder estatal facilitou a tomada de espaços menosprezados ou esquecidos. Da análise realizada pela ciência política é possível aferir que não existe a possibilidade de o vácuo ser observado no exercício do poder. Daí, a prática assistencialista pelos chamados “chefes do morro” foi uma estratégia utilizada naquelas localidades relegadas pelo poder público. No entanto, esse tipo de comportamento não permite que se construa a imagem de um “Robin Hood” tupiniquim. Aliás, a pessoa que adota, como modo de agir, a postura contrária ao ordenamento jurídico e, assim, auferir lucro não pode(ria) ser considerada como um modelo positivo para ninguém.

Por outro lado, o alarmismo criado pelo sensacionalismo da imprensa, postura que possui duvidosa compatibilidade frente ao disposto no artigo 221, Constituição da República, permite que se propague um “monstro” que é muito maior do que o existente. O estudo realizado pelo delegado de polícia Orlando Zacone[2], confere os subsídios críticos para a desconstrução desse mito, e não é por outra razão que denomina os varejistas do tráfico como “acionistas do nada”. O abalo, quando não desmoronamento, dessa ideia transmitida pelos setores da mídia, no que se refere às “organizações” criminosas pode ser conferido na descartabilidade e rápida substituição dos chamados “chefes do tráfico”.

Uma postura tida como ingênua, portanto, não pode ser adotada frente à forma como é realizada a divulgação das temidas “organizações” criminosas. A insegurança, que decorre do alarmismo, não só é capaz de gerar medo na população, mas também permite que o lucro venha a ser obtido por aqueles que se mostram hábeis a vender as mágicas soluções para esse cenário: os carros blindados, as empresas de segurança e os demais produtos divulgados pela indústria de armamentos.

Assim, deve-se, ao menos tentar, ter a noção exata do tamanho das referidas “organizações” criminosas (Comando Vermelho, Terceiro Comando, Amigo dos Amigos). Se não são insignificantes, não possuem o grau de articulação que é tantas vezes apregoado.

De outra banda, em se tratando da divisão entre “asfalto” e “morro”, é imprescindível ter em mente que os principais lucros decorrentes da atividade ilícita em questão não são obtidos pelos varejistas. São aqueles que se encontram no asfalto e protegidos pela indústria do medo e de biombos simbólicos que auferem a maior parcela do proveito obtido com o tráfico. Dessa forma, constata-se uma outra distinção, que repercutirá na forma como se realiza a persecução penal.

A seletividade, que não deve ser confundida com o princípio que pauta o legislador na proteção de bens jurídicos, se mostra escancarada quando o sistema de justiça criminal se volta com maior rigor para aquele que ganha a menor parcela do retorno da atividade ilegal em questão.

Dentre as mais variadas explicações para essa discriminatória realidade, é possível afirmar que, como regra geral, o trabalho investigativo em terrae brasilis é uma ficção. Ao ser investigado por portal jurídico sobre a forma como se realizada a investigação criminal, Lênio Streck faz as seguintes considerações:

“Para o jurista e professor Lênio Streck, a estrutura de inquérito no Brasil e a consequentemente investigação é arcaica. Ele também considera que hoje mais de 80% dos processos judiciais são produtos de autos de prisão em flagrante, portanto, sem investigação. ‘Na Câmara em que atuei durante 15 anos, a 5ª Criminal do TJ-RS, esse percentual chegou a 92% no ano passado’, destaca.”[3] (destaquei)

Como toda regra possui a sua exceção, essa indolência investigativa não se concretiza nos casos considerados como midiáticos, quando então são empregados métodos que mais se parecem com os utilizados na realidade cinematográfica. O “CSI” brasileiro, dessa forma, não é universal.

Para os casos tidos como comuns, há, assim, uma resignação à prisão em flagrante, quando então o labor administrativo se resume a coletar depoimentos daqueles que foram responsáveis pela captura de alguém, a oitiva, quando presente, de uma testemunha presencial. E o mais trágico consiste no fato de que a memorização do auto de prisão em flagrante induzirá, quando não determinará, para a trilha da condenação.

A realidade brasileira possui uma notória, e porque não dizer vergonhosa, dificuldade em lidar com o espírito republicano – muito embora essa expressão esteja em voga em uma época de constantes escândalos políticos – e a impessoalidade, o que denota a razão para o agravamento da seletividade da persecução penal. No caso tratado neste texto às raias do absurdo.

No cenário fluminense, quando a prisão-captura se dá no “morro”, é então aplicada uma perigosa presunção que não possui qualquer amparo fático e é, nesse instante, que se visualiza a denominada “promoção acusatória”. Na realidade tratada, as instituições voltadas para a persecução criminal adotam um “singelo” posicionamento, qual seja, somente se mostra possível traficar nessas localidades com o assentimento do “chefe do morro” ou então na condição de associada ao tráfico. Como consequência desse raciocínio, o imputado pelo crime previsto no artigo 33, Lei nº 11.343/06, é “agraciado” com a possibilidade de responsabilização pelo crime positivado no artigo 35, Lei de Drogas. Dito de maneira bem direta: é usada a seguinte lógica – cometa um crime e ganhe outro.

Não é por outra razão que nas audiências de instrução e julgamento realizadas em diversas comarcas fluminenses é habitual ser questionada, por parte do Estado-acusação, a possibilidade de traficar sem se encontrar associado, o que invariavelmente, com base nas crenças da autoridade policial, é tido como impossível.

O seguinte trecho de um voto proferido em recurso de apelação criminal demonstra, e em sua integralidade, essa “promoção acusatória” sendo referendada pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro:

Vale destacar que, de acordo ainda com as testemunhas, o local é dominado por facção criminosa conhecida como ‘Comando Vermelho’ e somente indivíduos que integral tal facção podem comercializar drogas ali, fato que demonstra que o ora apelante e o seu comparsa estavam associados entre si e com elementos não identificados, mas todos da mesma organização criminosa.”[4] (destaquei)

Não é postura isolada, vide voto proferido em outro apelo:

“De se ressaltar que a prova da associação entre traficantes não se faz com a exibição de contratos, estatutos, normas, regulamentos etc., como acontece com as associações lícitas. Para o reconhecimento da associação entre criminosos basta que fique comprovada a existência de um elo ligando um criminoso ao outro. No caso dos presentes autos, tal elo é perfeitamente visível entre os recorrentes, o menor Maurício e outros elementos não identificados, eis que, além dos elementos de prova trazidos aos autos, é de notório conhecimento que, nas localidades dominadas por facções criminosas, é impossível que alguém realize o comércio ilícito de entorpecentes sem pertencer a tais organizações espúrias ou aliar-se a seus chefes.”[5] (destaquei) 

O raciocínio adotado na comprovação e, o pior, na responsabilização pelo crime previsto no artigo 35, Lei de Drogas possui destinatário determinado: as pessoas que vivem em áreas carentes de atuação do poder público e que optaram pela prática do tráfico de drogas. Há, no entanto, um “pequeno” detalhe que permite a desconstrução dessa punitivista linha argumentativa, qual seja, em razão do estado de inocência que querendo, ou não, possui previsão constitucional, nenhuma presunção deve(ria) atuar em desfavor daquele que sofre a persecução penal.

Com o objetivo de ser mais direto na explicação: no âmbito do processo penal compatível com o Texto Constitucional vigente, mesmo diante da explícita preocupação com a criminalização do tráfico de drogas, vide o contido no artigo 5º, inciso XLIII, não se mostra possível afastar o estado de inocência.

A despeito de se voltar para contexto distinto – a possibilidade da execução antecipada no processo penal -, o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a condição de “criminoso” não exclui o patrimônio jurídico composto pelos direitos fundamentais de quem quer que seja, quando muito há restrição temporária de alguns direitos:

“Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.”[6]

Existem outros tópicos que permitem a censura à agregação do crime de tráfico com a associação para esse crime. Uma dessas vias passa pela questão da isonomia, que se trata de um conceito relacional – se igual, ou não, a uma outra pessoa. A priori, não existe qualquer diferença entre a prática do tráfico de drogas cometido na área mais nobre da antiga capital federal e aquela desenvolvida no maior bolsão de miséria. Não pode(ria) o IDH representar justificativa para o tratamento diferenciado pelos aparelhos repressivos do Estado. Esse pernicioso modo de enxergar o tráfico de drogas no horizonte abordado neste texto constitui, sem sombra de dúvida, privilégio odioso, o que não poderia ter ainda qualquer resquício na realidade fático-jurídica. Eis a prova do peso autoritário da história brasileira.

A presunção tantas vezes aqui mencionada e que se mostra em desconformidade com o Texto Constitucional vigente traz consigo uma indevida “importação” de um instituto próprio da responsabilização existente na área cível. Se no direito privado (e também para o Direito Administrativo) ocorreu o desenvolvimento da responsabilidade objetiva, quando então se mostra prescindível examinar a questão da culpa; na seara penal não há espaço para qualquer outra responsabilidade que não seja subjetiva. Permitir que a modalidade objetiva obtenha amparo na persecução penal poderá até atender outros fins; porém não são aqueles determinados pela Constituição da República.

Outra crítica quanto à visualização umbilical, caso a prática do crime de tráfico venha a ser realizada no “morro”, do artigo 33 com o artigo 35, ambos da Lei de Drogas passa, ainda, por um verdadeiro processo de criminalização da pobreza. O “brinde” acusatório não é concedido para todos. Se no “asfalto”, a comprovação da associação dependerá de sério – e raro – trabalho investigativo; no “morro”, basta a localização geográfica, sendo certo que um concurso eventual de agentes poderá representar a “pá de cal” em qualquer esforço defensivo.

Além dos efeitos penais – afinal o concurso de crimes permitirá que a pena mínima em caso de condenação alcance o patamar de 8 anos – ainda se mostra oportuno discorrer sobre as repercussões processuais.

A incidência do artigo 69, Código Penal necessariamente implicará no afastamento de um argumento válido para os pedidos de revogação da prisão preventiva ou imposição de medida cautelar diversa da prisão. A homogeneidade da prisão processual, a partir da chamada “promoção acusatória”, restará devidamente comprovada. Ainda que o acusado seja primário, apresente bons antecedentes, exerça ocupação lícita e possua endereço fixo dificilmente será solto. Na verdade, somente naqueles casos em que venha a ser afastada essa perversa presunção, o que ocorrerá ao término da instrução criminal ou quando da prolação da sentença, é que o acusado apreendido no “morro” poderá ser reinserido ao concerto comunitário. Indaga-se: qual teria sido o sentido dessa prisão processual? É possível prender alguém provisoriamente somente par estigmatiza-lo?

Para o universo virtual, o tamanho do texto pode até não ser o mais apropriado, o que tornaria cansativa a sua leitura. Todavia, se é verdade que a cidadania é um processo em eterna construção, toda e qualquer crítica à realidade pautada em violações ao modelo constitucional merece alguma consideração. Espero que essa provocação permita o prosseguimento do debate.


Notas e Referências: [1] VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[2] ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Quem são os traficantes de droga. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[3] CHAVES, Reinaldo. Baixo número de inquéritos mostra colapso de órgãos da segurança. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-jul-16/baixo-numero-inqueritos-mostra-colapso-orgaos-seguranca. Acesso em 12 de Agosto de 2014.

[4] Voto proferido nos autos da apelação criminal nº 0061723-98.2013.8.19.0021 julgada pela 4ª Câmara Criminal. Relator Desembargador Francisco José Azevedo.

[5] Voto proferido nos autos da apelação criminal nº 0035948-81.2013.8.19.0021 julgada pela 4ª Câmara Criminal. Relator Desembargador Antônio Eduardo F. Duarte

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 98.212/RJ julgado pela 2ª Turma. Relator Ministro Eros Grau.


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Eduardo Newton

Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).                                      

E-mail: newton.eduardo@gmail.com                                                                                                                                


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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