“A PRISÃO PREVENTIVA NÃO É ANTECIPAÇÃO DE PENA.” SERÁ?  

09/08/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Será tratada, neste curto texto, a banalização da prisão preventiva no Poder Judiciário e o efeito reverso da edição da Lei n.º 12.403/11, a Lei de Prisões.

Antes da edição da mencionada Lei, o julgador não tinha muitas opções quando se deparava com um cidadão apreendido em flagrante pela prática, em tese, de um crime, tendo, basicamente, duas opções relativamente a esse indivíduo: prisão ou liberdade.

As prisões eram demasiadas, a taxa de encarceramento, elevada e medidas a esse respeito precisavam ser tomadas.

Nesse contexto, a Lei n.º 12.403/11, a princípio, mostrou-se como uma alternativa, ao dar ao julgador mais opções do que a liberdade plena ou a restrição total da liberdade, porque trouxe um rol de medidas cautelares diversas da prisão que poderiam ser aplicadas em detrimento do cárcere, conforme recomendasse a análise do caso concreto.

Na prática, no entanto, as medidas cautelares diversas tornaram-se, não só inócuas, mas, mais gravosas do que o motivo pelo qual foram criadas, eis que tornaram alternativa não à prisão, mas, à liberdade. A prisão continuou sendo a regra e, nas raras hipóteses em que, anteriormente, seria concedida a liberdade provisória ao flagranteado / investigado / acusado (mas o foco, aqui, será a prisão preventiva decorrente de apreensão em flagrante, por ser a hipótese mais comum), atualmente, são fixadas medidas cautelares diversas da prisão, em casos, às vezes, estapafúrdios, nos quais qualquer cautelar se mostraria inadequada, seja porque ausente a materialidade delitiva, seja porque lacônicos os indícios de autoria e/ou por não encontrarem-se presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, ou, ainda, porque materialmente atípico o fato (como no caso de crimes bagatelares).

O momento em que se deveria, após ouvidas as partes, realizar um filtro sobre a necessidade x adequação do estabelecimento de uma cautelar, corporal ou não, tornou-se o momento de decidir quais das cautelares seriam adequadas ao caso, sendo a liberdade provisória hipótese absolutamente remota.

Na prática, vemos magistrados decretando a prisão preventiva de ofício[1], em uma leitura do artigo 310 do Código de Processo Penal totalmente dissociada do texto constitucional, ou, pior, magistrados decretando a prisão do flagranteado quando o Ministério Público manifesta-se pela soltura do cidadão preso em flagrante delito, em clara ofensa ao sistema acusatório, que, pressupõe a separação das funções de acusação e julgamento.

Sobre o tema,

Uma vez ouvido o preso, o juiz dará a palavra ao advogado ou ao defensor público para manifestação, e decidirá, na audiência fundamentadamente, nos termos do artigo 310 do CPP, acerca da homologação do flagrante ou relaxamento da prisão e, após, sobre eventual pedido de prisão preventiva ou medida cautelar diversa. Aqui é importante sublinhar, uma vez mais, que a prisão preventiva somente poderá ser decretada mediante pedido do Ministério Público (presente na audiência de custódia), jamais de ofício pelo juiz (até por vedação expressa do artigo 311 do CPP. A tal ‘conversão de ofício’ da prisão em flagrante em preventiva é uma burla de etiquetas, uma fraude processual, que viola frontalmente o artigo 311 do CPP (e tudo o que se sabe sobre sistema acusatório e imparcialidade), e aqui acaba sendo (felizmente) sepultada, na medida em que o Ministério Público está na audiência. Se ele não pedir a prisão preventiva, jamais poderá o juiz decretá-la de ofício, por elementar. – grifei. (“Afinal, quem continua com medo da audiência de custódia? (parte 2)”, in http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/limite-penal- afinal-quem-continua-medo-audiencia-custodia-parte2, acesso em 08/08/2019)

Verificam-se, ainda, magistrados decretando a prisão preventiva com base na gravidade abstrata do crime[2], utilizando elementos inerentes ao tipo penal para manter encarcerado o indivíduo (fundamentos como roubo cometido com ameaça à vítima; tráfico como um crime grave porque instiga o vício, gera outros crimes; crimes contra a administração pública que geram prejuízo ao erário, furto que causa prejuízo financeiro à vítima, entre outros), elementos esses geralmente acrescidos de valores morais trazidos pelo julgador, que, não obstante possam (ou não) dizer algo acerca da formação humanista daquele que julga, não se prestam a manter uma pessoa inocente – porque sobre ela, não há condenação definitiva – tolhida de sua liberdade de locomoção. Ao menos, não em um Estado Democrático de Direito.

Nesses casos, há ofensa não só à presunção de inocência, mas, também, ao dever de fundamentação das decisões judiciais insculpido no artigo 93, X, da Constituição da República, o que é inadmissível, pois o cidadão tem o deve poder saber por qual motivo está sendo cerceado de bens e direitos, até para exercer de forma ampla seu direito de defesa.

Essas fundamentações obscuras, inconstitucionais e antidemocráticas não são novidade. Exemplo disso é a “garantia da ordem pública” como fundamento para a colocação de uma pessoa em cárcere. Trata-se de expressão absolutamente vaga, impassível de definição precisa, podendo significar tudo, nada ou qualquer coisa. O abuso na decretação descomedida de prisões cautelares não surgiu com a edição da Lei n.º 12.403/11.

A crítica somente fica mais veemente pois, após a entrada em vigor da nova lei de prisões, mesmo se tratando de texto legislativo em tese mais benéfico, na prática, o efeito foi um aumento do encarceramento que, como se sabe, já era alto.

Assim, fundamentos já obscuros se tornam ainda piores, porque, a cada vez que é criada medida mais garantista, quem defende a atuação jurisdicional como combate à impunidade tem que dar conta de superá-la, em um verdadeiro contorcionismo argumentativo para que a convicção do julgador prevaleça sobre o dever de cumprir o que determinam os textos constitucional e infraconstitucional.

Outro exemplo claro disso é o que ocorreu com a despenalização do crime de porte de droga para consumo pessoal (artigo 28 da Lei n.º11.343/06). Aparentemente, a ausência de pena privativa de liberdade cominada a um tipo gera naqueles agentes estatais que têm vínculo com a persecução penal (polícias civil e militar, Ministério Público, Poder Judiciário) um sentimento de injustiça e impunidade, o que faz com que condutas que, anteriormente, seriam facilmente tipificadas como porte de droga para consumo pessoal sejam, hoje, imputadas como tráfico, para dar uma resposta à sociedade – e resposta a crime na nossa cultura, necessariamente, deve ser o cárcere.

Salientou, oportunamente, o Ministro Gilmar Mendes, no bojo do Habeas Corpus n.º 123221/SP1, que

a mudança de tratamento promovida pela Lei 11.343/06, que aboliu a pena privativa de liberdade para usuário (art. 28), provocou uma reação inesperada e indesejável: fatos limítrofes, anteriormente registrados como uso, passaram a ser tratados como tráfico de drogas. Conforme dados do Infopen, em 2006, houve 47.472 prisões por tráfico de drogas. A Lei 11.343/06 entrou em vigor em outubro de 2006. No ano seguinte (2007), foram registradas 65.494 prisões por tráfico, um aumento de 38%. E essa escalada prosseguiu. Em 2010, foram 106.491 prisões.

A situação ficou tão absurda que foi necessário que o Ministro Gilmar Mendes, do STF, determinasse expedição de ofício ao CNJ

para que fomente a uniformização de procedimentos e a conscientização dos órgãos envolvidos na persecução penal acerca da importância da verificação, em todas as fases do procedimento, da justa causa para enquadramento mais gravoso - tráfico -, em lugar do mais benéfico - uso de drogas.

Como bem ressaltado pelo Ministro, em casos como esse, não caberia nem mesmo a deflagração da ação penal:

A pequena apreensão de droga (1,5g de maconha) e a ausência de outras diligências investigatórias, no meu entender, apontam que a instauração da ação penal com consequente condenação representa medida nitidamente descabida. (STF. HC 123221/SP. Relator Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma. DJe 10/02/2015). 

Qual o nosso problema, então? Por que conseguimos transformar um texto legislativo que deveria se aproximar da consolidação de garantias processuais constitucionalmente asseguradas em um instrumento de opressão do Estado, do exercício de força, do punitivismo desenfreado?

Porque nossa mentalidade é inquisitória. Há muitos magistrados que se olvidam da sua função constitucionalmente demarcada e se vêem como agentes de segurança pública, atribuindo a si uma função heróica a qual não lhes compete: de purgar os pecados da sociedade, de trazer paz, tranqüilidade social, de salvar a sociedade desse câncer que é o crime (todas essas expressões foram retiradas de decisões por meio da qual se decretou a prisão preventiva ou se indeferiu o pedido de revogação desta), especialmente aquele praticado pelas classes sociais mais baixas.

Não é feito um esforço para ter um sistema mais acusatório e menos inquisitório, na medida do possível (já que sabemos não ser possível a existência de um sistema puro), eis que frequentemente o juiz retira-se do seu lugar de imparcialidade (a neutralidade já é uma questão superada[3]) e atua, lado a lado, com o delegado de polícia que investiga e com o Ministério Público que acusa, tornando a relação Estado x Indivíduo, que já era desproporcional, praticamente impossível para aquele que é alvo da persecução penal.

Como nos ensina o mestre jacinto Nelson de Miranda Coutinho,

A cultura acusatória, do seu lado, impõe aos juízes o lugar que a Constituição lhes reservou e de importância fundamental: a função de garante! Contra tudo e todos, se constitucional, devem os magistrados assegurar a ordem posta e, de consequência, os cidadãos individualmente tomados. À ordem de prevalência, nesta dimensão, não se tem muito o que discutir, mormente porque não há direito coletivo mais relevante que aqueles fundamentais dos cidadãos. Deve-se ver com parcimônia, portanto, toda a grande disputa que se levou à ribalta entre os direitos individuais e os coletivos (da sociedade, como um todo), mormente porque em um Estado de democracia tardia, a figura do juiz é imprescindível para o cidadão, com frequência vilipendiado em seus direitos e infinitamente mais fraco, por sinal como projetado pelos contratualistas, embora não se possa ingenuamente asseverar sem restrições, em relação a todos, coisa do gênero. A isonomia, porém, não faz distinção entre os cidadãos e isso é imprescindível para se deitar a luz constitucional sobre todos.

Devemos internalizar algumas questões se quisermos ter um processo penal minimamente em consonância com o que dispõe a Constituição da República - primeiro: processo penal não é a panaceia; segundo: ao magistrado, compete julgar aquilo que foi produzido pelas partes, em contraditório efetivo, significativo, e não como mera homologação do que foi produzido na fase inquisitorial, transformando o processo em mero simulacro, instrumento para a aplicação – o mais célere possível – da pena a um acusado que, sabemos, já veio condenado da sua prisão em flagrante.

 

 

Notas e Referências

LOPES JR. Aury e ROSA, Alexandre Morais da. Afinal, quem continua com medo da audiência de custódia? (parte 2)”, . Disponível em < http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/limite-penal- afinal-quem-continua-medo-audiencia-custodia-parte2> Acesso em 08 de agosto de 2019.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: Revista de informação legislativa. vol. 46, n.o 183, p. 103-115. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/194935> . Acesso em: 08 de agosto de 2019.

RITTER, Ruiz. A Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS, 2016. 197 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.p.

STF. HC 123221/SP. Relator Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma. DJe 10/02/2015)

[1] Vide: processo criminal n.º TJMG, 0004993-11.2019.8.13.0543.

[2] Vide processo criminal n.º 0161716-25.2018.8.13.0145

[3]Elementar que no atual estágio do conhecimento, falar em neutralidade pressupõe ignorar os estudos da psicanálise e da fenomenologia, primordialmente, que há muito denunciaram a inseparável relação do homem com seu meio social. Não obstante, por incrível que pareça, não raras vezes se observa tal confusão, sendo necessário salientar que como ser humano comum o julgador jamais conseguirá se afastar de sua subjetividade para conduzir o processo. Tanto por pertencer e ser fruto do contexto social em que habita, quanto por possuir um sistema psíquico complexo, cujo consciente representa somente um dos processos mentais, circunstâncias que inevitavelmente influenciarão o pensar e o agir do magistrado (repita-se, homem comum)”. (RITTER, 2016. p. 54)

 

 

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