A Prisão em Flagrante nos Crimes Permanentes e a ruptura do Fio de Ariadne: Um Estado Democrático de Direito em crise

27/07/2015

Por Juliano Keller do Valle e Marcelo Pertille - 27/07/2015

Nos tempos atuais, imersos em uma crise que confunde critérios de segurança pública com questões de direito penal e criminologia, o judiciário, reiteradamente, tem revelado o caráter utilitarista de suas decisões. A busca por respostas à sociedade, condizentes com os anseios daqueles que a compõem (permeados por reduzido alicerce constitucional), parece ser o mote de aplicação do direito penal. É a egoísta despreocupação com o alcance e a eficiência da produção normativa, como minotauro, exigindo o sacrifício de alguns em troca da aparente estabilidade produzida pelo sistema.

Nesse cenário, a teoria jurídica, fruto de uma produção científica, e que, portanto, só admite desprezo a partir de outros estudos que concluam novas perspectivas, desenvolveu o conceito de crime permanente, também conhecido como durável. Diz-se permanente ou durável a conduta típica que tem sua consumação prolongada. Há uma “extensão no tempo da situação típica criada conforme a vontade do autor[1].

Também como produto da teoria, a prisão em flagrante encontra justificativa nas situações em que se tem certeza da ocorrência do ilícito. A própria expressão flagrante, oriunda do latim, remete à ideia daquilo que arde, queima, ou seja, que encontra evidência na vivacidade que transparece, justificando a importância da atuação estatal ou particular (art. 301 do Código de Processo Penal) para que se reestabeleça a ordem jurídica comprometida.

O CPP narra, de forma taxativa, no art. 302, as hipóteses de flagrante, que são divididas, de acordo com a doutrina, em dois blocos: próprios (incisos I e II) e impróprios (incisos III e IV). Logo, apenas estará em flagrante aquele que I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

Por isso, tranquilo rematar que a todo tempo da consumação do crime permanente o agente estará em situação de flagrante, sendo até desnecessária a previsão do art. 303 do CPP nesse sentido, justificando-se a constrição da liberdade do autor.

Ocorre que a questão ganha contornos ainda mais complexos quando é invocada a previsão constitucional acerca da inviolabilidade do domicílio. Prescreve a Constituição Federal, no art. 5º, XI, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Importa enfatizar que a proteção recai sobre “todo aquele espaço (local) delimitado e separado que alguém ocupa com exclusividade, seja para fins de residência, seja para fins profissionais (...)[2], constituindo-se esse direito fundamental em um dos mais importantes colorários da dignidade da pessoa humana, fundamento da república brasileira (art. 1º, III, da CF).

Não obstante a importância do amparo constitucional, vê-se que a própria Carta Magna prevê a relativização do direito, pois admite a violação do domicílio, dentre outras hipóteses, quando estiver configurado o flagrante delito. Por lógica, se nos crimes permanentes a consumação é estendida, permitindo a todo tempo a constatação do flagrante, não é difícil entender que, tido como certo o estado flagrancial, estará afastada a antijuridicidade da violação perpetrada pelos agentes da força pública.

Ocorre que muitas vezes policiais, no tráfico de drogas (que admite a forma permanente), por exemplo, acabam por justificar violações de domicílio em razão do encontro, no interior da residência, de quantidade de substância ilícita ou de outros elementos reveladores da prática criminosa. Agem sem a certeza indispensável sobre as condições do flagrante e acabam chancelados pelo Judiciário em nome do crime permanente e do utilitarismo. No momento da conduta postam-se entre a cruz e a espada, pois, receosos sobre com o que vão se deparar, dependem do encontro de algo capaz de lhes dar a pecha de heróis, quando, em verdade, no momento em que deram início a entrada, já assumiram o abuso de autoridade.

Mais curioso é que provavelmente o mesmo tribunal que lhes dá guarida e acaba por convalidar tamanho vício, também os condenará quando, “por azar”, não puderem justificar a violação em algum ilícito de natureza permanente.      Os tribunais atuam como se rompessem o fio de Ariadne, quebrando o vínculo lógico-teórico dos institutos, justificando os meios empregados pelos fins pretendidos.

Ao contrário de Teseu, o Direito fica na escuridão, fadado à fome de “justiça” do Estado-Minotauro, colocado reiteradamente em crise. Como no aspecto metafórico da mitologia, a saída para o labirinto deve ser conduzida sobre um método capaz de atribuir razão às respostas, não se podendo admitir linhas empiricamente criadas em prejuízo de toda uma ciência reconhecida.

Daí que se pode afirmar sem embargo de outras perspectivas no campo processual penal, que vivemos um verdadeiro frisson em decorrência não só dos questionamentos acerca da eficiência do processo penal, mas, também, do agigantamento do Direito Penal só superados pelos anos de chumbo de triste memória.

O direito penal do inimigo de Jakobs e sua fórmula do medo e periculosidade ganha novos capítulos diários[3], impondo, destarte, o paulatino açodamento das garantias processuais penais como dito acima.

A ideologia da Lei e Ordem e o fomento ao espetáculo midiático é explicitada no Direito Penal, campo do Direito muito mais sensível do que nos demais[4], pelo Processo Penal pois é ele – o processo – o instrumento de manifestação do poder político e do movimento do jogo processual conforme a conveniência do Estado e todo o seu aparato repressivo que provoca a tensão entre o poder de penar versus o direito de liberdade[5].

Vivemos em um Estado Democrático de Direito em manifesta crise, denunciado não só flexibilização das garantias mas pelo utilitarismo judicial e “em atos dominados pelo segredo, forma escrita, aumento das penas processuais (prisões cautelares, crimes inafiançáveis etc.), algumas absurdas inversões da carga probatória e, principalmente, mais poderes para os juízes “investigarem[6].

A encruzilhada em que nos encontramos só poderá ser superada quando, de fato, o sistema acusatório prevalecer sobre o inquisitório – sempre refratário às garantias – caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece em face dos direitos fundamentais da pessoa[7].


Notas e Referências:

[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal – parte geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito editorial, 2012. p. 102.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 405.

[3] Deve ser registrado recente discussão no Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 94.620 e no HC 94.680 que tendo como fundamento o RE 591.054, manteve a tese de que inquérito policial e processo penal em curso não geram antecedentes, todavia, o posicionamento poderá ser revisto. Do mesmo modo, a PEC 171 que promove ainda a discussão sobre a redução da maioridade penal para um grupo de atos infracionais/crimes praticados por adolescente.

[4] “Nessa linha, MAIER explica que no Direito Penal "a influência da ideologia vigente ou imposta pelo efetivo exercício do poder se percebe mais à flor da pele que nos demais ramos jurídicos." LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 8ª ed., p. 52.

[5] Ob. cit., p. 52.

[6] Ob. cit., p. 52.

[7] Ob. cit, o. 52.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 8ª ed.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal – parte geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito editorial, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.


juliano

Juliano Keller do Valle é Mestre em Ciência Jurídica (CPGD/UNIVALI). É Professor de Direito Processual Penal na Univali e IES/FASC e da Especialização em Ciências Criminais do CESUSC. Email: julianokellerdovalle@gmail.com

..


Sem título-9  

Marcelo Pertille é Especialista em Direito Processual Penal e Direito Público pela Universidade do Vale do Itajaí, Advogado e Professor de Direito Penal de cursos de graduação em Direito e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina.

.


Imagem Ilustrativa do Post: Hide and Speak Maze - Trentham Gardens - shadow // Foto de: Elliott Brown // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ell-r-brown/9516995283/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura