A Prisão em flagrante nos crimes permanentes – basta seguir o que diz o velho CPP, ou o buraco [constitucional] é mais embaixo??

26/02/2015

Por Paulo Cesar de Oliveira – 26/02/2015

A atual conjuntura nos permite afirmar que o processo penal, assim como todo o arcabouço normativo, seja material, seja processual, deve ser interpretado à luz do que brota do Texto Constitucional, outra construção teórica nesse sentido será considerada subversiva. Não há ginástica hermenêutica que permita a lei ordinária dar vida a Constituição, ao contrário se consagraria o absurdo. A Constituição é o astro rei, é a fonte primária, é a partir dela que se fará qualquer interpretação. A aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais é advinda da força normativa trazida pelos ventos democráticos de 1988 (Art. 5°, §1°, CRFB/88). Por isso é que os direitos fundamentais individuais possuem eficácia plena, vigência automática e são autoaplicáveis. Desse modo, é dizer, a Constituição é completa em sua essência, independendo da lei para complementá-la.

O tema por ora enfrentado – a prisão em flagrante nos crimes permanentes (Art. 303, CPP) –, que remonta a uma legislação pensada e editada em uma fase de autoritarismo, de contornos visivelmente fascistas, deve passar por uma filtragem constitucional para assim se adequar a realidade do contexto atual. Não se trata de construir um “puxadinho” hermenêutico (Streck), mas de fazer uma leitura constitucional do que previsto na lei processual penal. Para os limites desse breve ensaio a pergunta que fica é: a prisão em flagrante delito a partir do cometimento de um crime permanente, havido no âmbito domiciliar, em que não haja autorização judicial prévia, torna legal a prisão executada e a lícita a prova eventualmente produzida?

Antes de tentar responder, por óbvio, é bom lembrar [e salientar] que a lei processual permite a prisão em flagrante enquanto durar a permanência da conduta delituosa. Há muita obscuridade e economia, por parte da doutrina e da jurisprudência (STJ e STF), ao enfrentar o tema, e quando enfrentado o é da maneira mais fácil, a interpretação é a mais pobre, qual seja, a literal (trazida do velho CPP). Parece um mantra! É repetido quase que em uníssono! A-Constituição-autoriza-a-prisão-em-flagrante-como-exceção-à-inviolabilidade-domiciliar,-prescindindo-de-mandado-judicial,-qualquer-que-seja-a-sua-natureza (A propósito ver STJ, HC 122.937/MG; HC 40.056/SP; HC 35.642/SP; HC 31.514/MG etc. e STF, 91.189/PR; HC 84.772/MG; HC 93.627/MS etc.). O crime permanente é aquele que a conduta delituosa se protrai no tempo, mantendo a situação de flagrância (Bitencourt). Não é tão simples assim!

Basta uma leitura constitucional do processo penal para que reste demonstrado que a prisão em flagrante, em especial nos crimes permanentes, não está presa às amarras do nosso velho código de processo. É preciso estabelecer limites à realização da prisão em flagrante nos casos de crimes permanentes. Ora, a “mera desconfiança”, o mero “achismo”, a suspeita infundada, por parte do agente público, não preenchem um dos requisitos configuradores do estado de flagrância, qual seja o da visibilidade (Paulo Rangel). Nesse tanto, a falta de “certeza visual” não permite a entrada em domicílio, pois nesse caso não há falar em flagrante delito, logo, imprescindível a prévia autorização judicial. A violação do direito material, em havendo a invasão domiciliar (sim, pois as “autorizações” concedidas sob coação devem ser consideradas criminosas), contaminam a prova produzida. Muito embora a “verdade” fática demonstre haver a materialidade do crime (posse de droga ou de arma, por exemplo), a verdade processual que se descortinará, sobre o crivo do contraditório, há que considerar ilícita a prova produzida, pois ilegal a prisão, por violadora de um direito material (Art. 150, §§1° e 2°, CP). A inviolabilidade domiciliar só pode ocorrer dentro das exceções constitucionais (Art. 5°, XI, CRFB/88). Ademais, vale dizer, a ilicitude inibe a produção probatória, a prova ilícita não é admitida em nosso ordenamento, e que, entrando ela no processo, deve ser desentranhada e destruída, bem como não há que ser considerada pelo julgador na hora de firmar o seu convencimento (Art. 5°, LVI, CRFB/88 e Art. 157, CPP). Sendo assim, a entrada injustificada em domicílio, viola o direito material, em consequência a prova colhida restará contaminada, portanto imprestável, pois derivada de um comportamento ilícito.

A Constituição protege o domicílio contra intromissões injustificadas, disso já sabemos, nesse tanto, extrai-se da norma constitucional (Art. 5°, XI, CRFB/88), e aqui se pretende demonstrar, que o flagrante autorizativo de violação domiciliar não é aquele previsto na lei penal adjetiva para as infrações permanentes, mas sim aquele que salta aos olhos, que está a crepitar (Tourinho Filho), o que traz uma certeza visual. A título de conclusão, uma premissa precisa ser construída. Para ser legal, a prisão em flagrante deve atender a dois requisitos: atualidade e visibilidade (Paulo Rangel). Ou seja, faltando um desses requisitos não se poderá considerar legal a prisão efetuada, devendo, portanto, ser imediatamente relaxada por imperativo constitucional (Art. 5°, LXV, CRFB/88). Se a prisão em flagrante deve atender aos requisitos de atualidade e visibilidade, em faltando um deles não se pode considerá-la legal, devendo, portanto, ser relaxada.

Assim, forçoso é concluir que, se a prisão em flagrante, quando do cometimento de um crime permanente, ocorre através da violação de um domicílio, sem que o requisito da visibilidade (que segundo o professor Aury Lopes Jr. corresponde à conduta de “estar cometendo a infração penal”) esteja preenchido, e que não se tenha autorização judicial ou o consentimento voluntário do morador para a entrada naquele, inválida também será a prova ali produzida, pois ilícita (a prova restará contaminada, pois a violação do domicílio tornará a prova imprestável). O texto inserto no inciso I do art. 302 do Código de Processo Penal indica que considera-se em flagrante delito quem “está cometendo a infração penal”. Esse dispositivo é o único que se presta a caracterizar uma situação de ardência, de visibilidade incontestável da prática de um crime. Assim, se a conduta, quando o agente praticar um crime permanente, é a de quem “está cometendo a infração penal”, por óbvio ser imprescindível a certeza visual do crime.

Diante do que aqui lançado, concluímos ser ilegal a prisão em flagrante realizada quando do cometimento de um crime permanente, desde que haja invasão injustificada a domicilio, sendo também imprestável a prova colhida porque contaminada pela violação do direito material, isso porque ausente um dos requisitos configuradores da prisão em flagrante. Malgrado o crime permanente seja atual, é necessário que também o seja visual. O agente estatal há que estar vendo o crime acontecer, a mera suspeita, o achismo não legitima a sua ação. Com Alexandre Morais Da Rosa, “o crime acontece no espaço e tempo. Se no tempo em que houve a entrada na casa não havia crime visualizado, por dedução lógica, foi irregular. E se foi irregular, o que se apreendeu, também o é (Art. 5°, LVI, CRB/88 e Art. 157, CPP). Dito de outro modo: se antes de se entrar na casa (asilo inviolável) o flagrante estava posto (manifesto), desnecessária a discussão da legalidade do crime permanente, enquanto a entrada sem flagrante torna a materialidade maculada.”

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Referências:

BITENCOURT, CEZAR ROBERTO. TRATADO DE DIREITO PENAL: PARTE GERAL, V. 1, 17. ED. SÃO PAULO: SARAIVA, 2012.

TOURINHO FILHO, FERNANDO DA COSTA, PROCESSUAL PENAL, VOL. 3, 34ª ED. REV. DE ACORDO COM A LEI 12.403/2011. SÃO PAULO: EDITORA SARAIVA, 2012.

RANGEL, PAULO, DIREITO PROCESSUAL PENAL, 21ª ED. REV. AMPL. ATUAL. SÃO PAULO: EDITORA ATLAS S/A, 2013.

PACELLI, EUGENIO DE OLIVEIRA, CURSO DE PROCESSO PENAL, 17ª ED. REV. AMPL. ATUAL. SÃO PAULO: EDITORA ATLAS S/A, 2013.

JR, AURY LOPES, DIREITO PROCESSUAL PENAL, 9ª ED. VER E ATUAL. SÃO PAULO: EDITORA SARAIVA, 2012

LOPES, AURY JR. DIREITO PROCESSUAL PENAL E SUA CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL. 9ª ED. REV., ATUAL. E AMPL. SÃO PAULO: EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS 2008.

ZAFFARONI, EUGÊNIO RAUL E PIERANGELI, JOSÉ HENRIQUE. MANUAL DE DIREITO PENAL BRASILEIRO. VOL. 1: PARTE GERAL. 8ª ED. REV., ATUAL. SÃO PAULO: EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. 2010.

ROXIN, CLAUS. POLÍTICA CRIMINAL E SISTEMA JURÍDICO-PENAL. TRADUÇÃO: LUIS GRECO. RIO DE JANEIRO: EDITORA RENOVAR, 2000.

MENDES, GILMAR FERREIRA. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL / GILMAR FERREIRA MENDES, PAULO GUSTAVO GONET BRANCO. 7ª ED. REV., ATUAL. SÃO PAULO: SARAIVA, 2012.

STRECK, LENIO LUIS. HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE: UMA EXPLORAÇÃO HERMENÊUTICA DA CONSTRUÇÃO DO DIREITO. 11ª ED., VER., ATUAL. E AMPL. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO EDITORA, 2014.

STRECK, LENIO LUIS. VERDADE E CONSENSO: CONSTITUIÇÃO, HERMENÊUTICA E TEORIAS DISCURSIVAS. 4ª ED. SÃO PAULO: SARAIVA 2012.

DA ROSA, ALEXANDRE MORAIS, HTTP://WWW.CONJUR.COM.BR/2014-AGO-01/LIMITE-PENAL-MANTRA-CRIME-PERMANENTE-ENTOADO-LEGITIMAR-ILEGALIDADES-FLAGRANTES

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Paulo CésarPaulo César de Oliveira é Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduando em Direito Constitucional. É Agente de Segurança Pública, Policial Militar no Estado da Bahia. Agente da Lei contra a Proibição (Porta-voz da LAW ENFORCEMENT AGAINST PROHIBITION – LEAP BRASIL).

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Imagem ilustrativa do post: Signs Of The Storm // Foto de: JD Hancock // Sem Alterações

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