A prisão cautelar, o “Pacote Anticrime” e o Giuseppe di Lampedusa: que algo não tenha mudado para que tudo continue como está

26/06/2021

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o Duque de Palma e Príncipe de Lampedusa, foi um dos vários autores que não viveu para ver seus escritos ganharem os leitores e a crítica literária mundial, tornando-se “O Leopardo” um clássico italiano, vertido também em filme pelo cineasta italiano Luchino Visconti no ano de 1963.

Eis a provocação para escrever sobre as alterações no Código de Processo Penal advindas da Lei nº 13.964/19 no tocante à prisão cautelar.

Em específico, apesar de eventuais variações de tradução da frase dita por Tancredi no romance, sua simplicidade, profundidade e provocação são incontestáveis: para que tudo permaneça como está, tudo deve mudar.

Isso porque, apesar da etiqueta que a Lei nº 13.964/19 ganhou – “Pacote Anticrime” – importantes avanços de cunho constitucional para proteção de garantias fundamentais foram implementados pela referida lei, tal como a revisão periódica.

Em uma breve retrospectiva histórica, cumpre mencionar que as medidas cautelares, ou, medidas assecuratórias, sempre se fizeram necessárias ao longo da instrução probatória.

O processo, por constituir uma sequência de atos que antecedem e servem a elaboração de um provimento final, reclama, por sua própria essência um desenvolvimento temporal.

Assim, surge a necessidade das medidas cautelares para se evitar que no momento final da decisão o estado de coisas tenha sofrido alterações substâncias capazes de tornar absolutamente ineficaz a intervenção estatal.

Nas palavras do Professor Antônio Magalhães Gomes Filho[1]: “A técnica processual serve-se das medidas cautelares como instrumentos para superar esse risco inerente a própria estrutura processual, possibilitando a antecipação dos efeitos de um futuro provimento, exatamente com o objetivo de assegurar os meios para que a decisão definitiva seja alcançada, e, ao mesmo tempo, possa ser eficaz. Mesmo com sacrifício de valores considerados essenciais a realização da justiça, em certos casos, o legislador se vê compelido a admitir essa antecipação, pois a demora exigida para a solução do conflito pelas vias normais, arriscaria tornar inócua a decisão definitiva.”

Por isso, os atores da persecução penal têm ao seu dispor medidas cautelares como instrumentos para superar esse risco inerente à própria estrutura processual.  Como já advertia Piero Calamandrei[2]: “sem a cautela, ter-se-ia um remédio longamente elaborado por um doente já morto”.

Em nosso ordenamento jurídico, as medidas cautelares podem recair tanto sob a pessoa investigada, como sob coisas.

Neste espaço, nos propusemos a discutir exclusivamente sobre a prisão cautelar, cuja utilização originária remonta ao direito romano, quando o sujeito investigado poderia ser preso para assegurar o seu comparecimento aos atos do processo.

Na Idade Média, o auge do sistema inquisitório foi marcado pela larga e expressa utilização da prisão cautelar como medida preparatória para infligir a tortura e então obter a confissão do investigado, na época considerada a rainha das provas, ainda no sistema probatório tarifado.

No período Iluminista, nos idos de 1777, Pietro Verri[3] já se pronunciava contra a prisão como meio de se obter a confissão do investigado: “Qual o sentimento que nasce no homem, ao sofrer uma dor? Este sofrimento é o desejo que a dor pare. Quando mais violento for o suplício, tanto mais violento será o desejo e a impaciência de que chegue ao fim. Qual é o meio que um homem torturado pode acelerar o término da dor? Declarar-se culpado pelo crime o qual é investigado. Mas é verdade que o torturado cometeu o crime? Se a verdade é sabida é inútil tortura-lo, se a verdade é duvidosa, talvez o torturado seja inocente e igualmente levado a se acusar do crime. Portanto, os tormentos não constituem um meio para descobrir a verdade, e sim, um meio que leva o homem a se acusar de um crime, tenha-o ou não cometido “.

Indispensável rememorar esse ponto, pois, a despeito de já passados séculos desde o Medievo, a prática de clara raiz inquisitiva “prender para a obtenção da confissão”, infelizmente foi revivida no seio do processo penal brasileiro pós 2014 cumulada com o instituto da colaboração premiada.

Voltando a perspectiva histórica da prisão cautelar, a redação originária do Código de Processo Penal previa que a prisão preventiva poderia decorrer do flagrante, da decisão de pronúncia ou da decisão irrecorrível.

Era ainda, facultado ao juiz a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal, ou, para assegurar a aplicação das lei penal, nos seguintes casos: i) Crimes inafiançáveis, ii) Crimes afiançáveis  quando se comprovasse que o acusado fosse vadio ou quando houvesse dúvida sobre sua identidade, iii) nos crimes dolosos, quando o acusado fosse reincidente em crime da mesma natureza.

Não obstante, a pronúncia implicava em prisão imediata e o réu só poderia apelar da sentença condenatória se estivesse preso.

A primeira alteração legislativa nesse tema foi introduzida pela Lei nº 5.349/67, responsável por abolir a prisão preventiva obrigatória. Na sequência, a Lei nº. 5.491/73, passou a admitir a não decretação de prisão em caso de pronúncia, se o réu fosse primário e de bons antecedentes.

A referida lei também alterou o artigo 564, que passou a viger com a seguinte redação: “O réu não poderá apelar sem recolher-se a prisão, salvo se primário e de bons antecedentes.”

Prosseguindo na linha do tempo, em 1997, a Lei nº 6.416 autorizou o juiz a conceder liberdade provisória ao sujeito que se comprometesse a comparecer a todos os atos do processo.

Finalmente, em 2008, com o advento da Lei nº 11.719/2008, a prisão deixou de ser pressuposto para legitimar a oposição de recurso para a segunda instância. Esta também determinou que o juiz, ao proferir sentença deve decidir fundamentalmente sob a imposição ou manutenção da prisão preventiva.

Conforme se vê, desde a promulgação do Código de Processo Penal em 1941 as garantias fundamentais foram ganhando força ao longo da história, ao passo que a prisão cautelar foi cada vez mais robustecida como a ultima ratio na persecução penal.

No entanto, apesar de o desenvolvimento normativo quanto ao tema ter sido afeito ao aumento das garantias e controle jurisdicional, é sabida a distância abissal entre “law in the books” e “law in action”, seja no espectro legislativo ou doutrinário.

A população carcerária remanesce formada por parcela importante de presos provisórios e é um movimento que não cessa com o tempo, haja o que houver com a lei processual penal.

Prova disso foi a edição da imprescindível Lei nº 12.403/2011, posto que responsável por introduzir no processo penal brasileiro a figura das medidas cautelares alternativas a prisão.  Nas palavras do professor Antônio Magalhães Gomes Filho[4]: “A lei n. 12.403/2011, ao prever medidas alterativas ou substitutivas a prisão preventiva, buscou assegurar essa incoerência entre o sistema penal e processual penal, colocando a disposição do juiz uma série de outros instrumentos capazes de assegurar a realização do processo e os seus resultados, sem, com isso, sujeitar o individuo ao encarceramento, com os malefícios que sabiamente causam ao acusado ainda não definitivamente condenado. ”

O professor Gustavo Badaró também comenta[5]: “Uma radical transformação do sistema de medidas cautelares pessoais ocorreu com a Lei n. 12.403/2011. Finalmente entre os extremos da prisão e da liberdade provisória foi inserida uma serie de medidas cautelares alternativas a prisão, que apresentam uma escala crescente de graus de restrição da liberdade de locomoção do acusado.”

Assim, a partir da vigência da Lei nº 12.403/2011, buscou-se aplacar o estado de tudo ou nada e os atores da persecução penal passaram a ter opções além da prisão. No entanto, passados aproximadamente 10 anos, ainda é indispensável reforçar o óbvio: são medidas aplicáveis em substituição à prisão.

Entretanto, na prática, o que ocorre é que as medidas cautelares alternativas a prisão são aplicáveis não como substituição da prisão, mas sim, em casos em que não caberia a aplicação de nenhuma cautelar, o que viola o princípio da proporcionalidade.

Badaró Comenta [6]: Qualquer medida cautelar não é um fim em si mesma, mas um instrumento para atingir a finalidade de assegurar a utilidade e eficácia de um futuro provimento principal. Justamente por isso, a cautelar é sempre provisória, vigorando enquanto não houver o provimento principal que irá substituíla. Em outras palavras, a medida cautelar de natureza assecuratória, sempre deve ter em vista uma medida satisfativa e definitiva, resultado do reconhecimento do direito debatido no processo principal que exige tempo para ser reconhecido.”

Eis que então em 23 de janeiro do presente ano, entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, medida personificada na figura do então Ministro da Justiça, apesar da ampliação do espectro de alterações pelo Congresso Nacional. Apesar da quantidade de substanciais alterações, como a exclusão legal da decretação de cautelares ex officio, a inclusão expressa da audiência de custódia, a positivação do periculum libertatis, a disposição das exceções à liberdade provisória, discutiremos especificamente a incidência das garantias processuais fundamentais do contraditório e da motivação no âmbito da cautelaridade processual penal.

De início, a alteração promovida no §3º do artigo 282 verticaliza a aplicação do princípio do contraditório no âmbito cautelar inserindo prazo de 5 dias para manifestação da parte contrária quando não houver urgência ou perigo de ineficácia da medida cautelar requerida. Com isso, o legislador avança mais uma casa na valorização do contraditório, movimento já iniciado quando da promulgação da Lei nº 12.403/11.

Nunca é demais relembrar que o contraditório deve ser tomado sempre como o núcleo duro do processo, posto que a estrutura dialética para a formação do provimento jurisdicional é a regra. Nos clássicos ensinamentos de Joaquim Canuto Mendes de Almeida contraditório é composto da ciência e possibilidade de reação. Assim, a alteração legal merece aplausos na medida que reforça a incidência deste imprescindível princípio como regra e realça a busca recorrente por um contraditório substancial no processo penal, mesmo no âmbito das medidas cautelares.

O artigo 312 do Código de Processo Penal teve a adição do §2º indicando expressamente que: “A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifique a aplicação da medida adotada.” Da mesma forma, reitera o §1º do artigo 315.

Apesar de o legislador indicar de forma cumulada os vetores da “motivação” e da “fundamentação” a doutrina tem empregado com maior amplitude o termo motivação em detrimento da fundamentação[7]. Isso porque, tanto acompanhando um padrão internacional, quanto partindo do aspecto de que motivar compreenda demonstrar que a decisão proferida foi a melhor que poderia ser elaborada perante a totalidade dos elementos postos ao julgamento do magistrado, resultando, portanto, e algo maior que simplesmente indicar os fundamentos e razões que suportam a referida decisão[8].

Feito o destaque, importante avanço foi a imposição expressa da contemporaneidade concreta dos fatos a justificar a aplicação da prisão preventiva. Não raro, são verificadas prisões com fundamento nos fatos investigados Posicionamento há muito consolidado na doutrina e na jurisprudência reclamava há tempos sua inclusão expressa no texto legal a conferir maior segurança jurídica.

Uma das medidas mais substanciosas e impactantes para o processo penal, se dá com o artigo 315, §2º e seus incisos, responsável por trazer um rol não taxativo de formatos de decisões que diante mão aviltam a regra de cariz constitucional da motivação: 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acordão que: I. Limitar-se a indicação ou a paráfrase do ato normativo, sem explicar sua relação com a causa e a questão decidida; II. Empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III. Invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão, IV. Não enfrentar todos os outros argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão deduzida pelo julgador”.

Eis um avanço importante não somente para as medidas cautelares, mas para todo o sistema processual penal, pois dá concretude no âmbito infraconstitucional ao comando do artigo 93, caput, inciso IX da Constituição da República. A redação é idêntica ao disposto no artigo 419 do Código de Processo Civil que já vinha sendo objeto de luta pelos advogados criminalistas e defensores públicos para sua aplicação no âmbito do processo penal lançando mão da norma de extensão prevista no artigo 3º do Código de Processo Penal.

Outro considerável avanço diz respeito à inclusão do parágrafo único no artigo 316 criando o dever da autoridade judicial revisitar a prisão preventiva aplicada para fins de revisão da sua manutenção: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

A mudança vem em ótima hora, já que não raro as prisões preventivas excedem a razoabilidade, tornando-se claramente desproporcionais e desvinculadas do procedimento que deveriam acautelar. Chama a atenção, mais uma vez a imposição expressa que a decisão deve ser fundamentada, sob pena de tornar a custódia ilegal.

Justamente embebidos no espírito da reforma com as mudanças destacadas nesta ocasião, deve se rememorar que o contraditório verticalizado pelo legislador no §3º do artigo 282 deve ser aplicado também neste momento revisional da prisão preventiva. Estando a custódia já decretada inexiste urgência ou perigo de sua ineficácia, impondo a autoridade judicial que intime as partes para dialeticamente discutirem sobre a necessidade da sua manutenção.

Ganha importância o trabalho da defesa em demonstrar todos os motivos para a substituição ou revogação da medida, impondo ao juiz que enfrente claramente todos argumentos trazidos pela defesa, sob pena de ilegal a decisão que a manteve por vício de fundamentação, caso incorra em alguma das hipóteses do artigo 315, §2º do CPP.

Além disso, não há dúvidas de que trazer as partes para o seio da discussão reduzirá os riscos de decisões padrões, muitas vezes fruto da massiva quantidade de casos penais sob a responsabilidade da mesma autoridade judicial.

O famigerado “Pacote Anticrime” mais uma vez coloca o Brasil escanteado no movimento reformador verificado em toda a América Latina e reacende o debate acerca precariedade das mudanças legislativas, quando não aliadas a uma renovação da mentalidade e do espírito dos sujeitos processuais em direção à constitucionalização do processo penal, sob pena de tornar letra morta todos avanços inseridos pelo legislador.

Em concreto, para os autores desse texto, eis mais uma alteração legislativa que nos enche de esperança para então dessa vez lembrar de “O Leopardo” de Giuseppe de Lampedusa e afirmar que algo mudou não para tudo continuar o mesmo, mas sim para avançarmos cada vez mais em direção a um processo penal servil às garantias e atento aos direitos humanos, principalmente no âmbito da prisão cautelar.

 

 

Notas e Referências

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas Cautelares e Princípios Constitucionais. p. 2.

CALAMANDREI, Piero. Introduzioni allo studio sistemático dei provvedimenti cautelare. Padova: Cedam, 1936.p.19

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. (trad. Federico Carroti São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.80)

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas Cautelares e Princípios Constitucionais. p. 39

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brazil, 2020. p. 1145

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brazil, 2020.p. 1148

Justamente por autorizada parte da doutrina processual utilizar o termo “fundamentação”, tal qual o faz Leonard Ziesemer Schmitz em Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015 e Nereu Giacomolli em O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica, São Paulo, Atlas, 2014, p.211-230.

DE LUCCA, Rodrigo Ramina. O dever de motivação das decisões judiciais. Salvador, Jus Podivm, 2015, p. 30.

[1] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas Cautelares e Princípios Constitucionais. p. 2.

[2] CALAMANDREI, Piero. Introduzioni allo studio sistemático dei provvedimenti cautelare. Padova: Cedam, 1936.p.19

[3] VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. (trad. Federico Carroti São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.80)

[4] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas Cautelares e Princípios Constitucionais. p. 39

[5] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brazil, 2020. p. 1145

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brazil, 2020.p. 1148

[7] Justamente por autorizada parte da doutrina processual utilizar o termo “fundamentação”, tal qual o faz Leonard Ziesemer Schmitz em Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015 e Nereu Giacomolli em O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica, São Paulo, Atlas, 2014, p.211-230.

[8] DE LUCCA, Rodrigo Ramina. O dever de motivação das decisões judiciais. Salvador, Jus Podivm, 2015, p. 30.

 

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