A primazia da guarda compartilhada: uma breve análise crítica

19/10/2019

A guarda é um instituto jurídico que atribui ao guardião diversos direitos e deveres a fim de proteger e prover as necessidades do menor que seja posto sob sua responsabilidade.[i]

A Lei nº 11.698/2008 introduziu a guarda compartilhada ao lado da guarda unilateral, que era, até então, a única existente no Código Civil. A nova modalidade pode ser entendida como a “responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (art. 1.583, §1º, CC).

Posteriormente, a Lei nº 13.058/2014 passou a instituir, expressamente, tanto a guarda compartilhada jurídica (que trata da tomada de decisões em conjunto) quanto a física[ii], ao estabelecer que o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre os pais (art. 1.583, §2º, CC).

Esse dispositivo legal pode gerar a falsa impressão de que se trata de uma guarda alternada. Todavia, a guarda compartilhada e a guarda alternada não se confundem.

 Nesse sentido, a justificativa do enunciado 606 da VII Jornada de Direito Civil esclareceu que na guarda alternada o efeito da guarda exclusiva permanece, e apenas se viabiliza que cada genitor tenha o direito de visitação regulamentada de maneira proporcional.

Por exemplo: a mãe e o pai ficam alternadamente 6 meses com o filho, com a troca de residência, e cada um deles exerce a guarda exclusiva, tanto na acepção jurídica quanto na física, quando estão na companhia do menor.

Na guarda compartilhada, de modo diverso, há a entrega do exercício perene das principais decisões acerca dos filhos aos dois genitores, e a proporcionalidade diz respeito somente à guarda física, uma vez que os pais estão separados.[iii]

Conceituado o instituto e esclarecida tal diferença, a Lei nº 13.058/2014, também trouxe a “primazia da guarda compartilhada” [iv], como se extrai do art. 1.584, §2º, do Código Civil:

Art. 1.584. [...] § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.

Diante da novel legislação, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou que o artigo tem força vinculante e não deixa margem para debates periféricos: “se houver interesse na guarda compartilhada por um dos ascendentes, será esse o sistema eleito, salvo se um dos genitores [ascendentes] declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor (art. 1.584, § 2º, in fine, do CC)”.[v]

Ainda, em julgamento do Recurso Especial nº 1629994/RS, fixou-se que a guarda compartilhada só não será aplicada quando houver inaptidão de um dos ascendentes para o exercício do poder familiar, fato que deverá ser declarado por meio de decisão judicial, no sentido da suspensão ou da perda do Poder Familiar.[vi]

Assim, apenas dois casos poderiam impedir a aplicação obrigatória da modalidade: a inexistência de interesse de um dos genitores ou a incapacidade de um dos pais de exercer o poder familiar.

Essa posição foi reforçada na recomendação n° 25/2016 do CNJ, na qual se estabeleceu que mesmo com a inexistência de acordo entre os ascendentes, a guarda compartilhada deve ser a regra. Caso haja adoção da guarda unilateral, a recomendação menciona que o magistrado deve justificar o porquê da impossibilidade de aplicação da guarda compartilhada.[vii]

Como consequência desse panorama, a adoção do regime de guarda compartilhada aumentou, visto que o número de registros de guarda compartilhada quase triplicou entre 2014 e 2017, passando de 7,5% dos casos de divórcio de casais com filhos menores para 20,9%, de acordo com as Estatísticas do Registro Civil, do IBGE.[viii]

É notório que a legislação atende ao anseio social de responsabilização de ambos os genitores e representa avanço, especialmente pela predominância historicamente conhecida das mulheres como únicas guardiãs dos filhos menores, fato que os dados coletados em primeira instância evidenciam: em 2016, no Brasil, a guarda unilateral para as mães foi determinada em 74,4% dos casos de divórcios judiciais, diminuindo para 69,4% em 2017.[ix]

Dentro desse contexto, não se discorda que a guarda compartilhada é “expressão fidedigna do princípio de corresponsabilidade familiar”[x], e almeja o ideal para o desenvolvimento pleno da criança e do adolescente.

Contudo, a firmada primazia da guarda compartilhada pode incorrer em erro ao ignorar que a existência de um acordo de vontades e diálogo entre os ex-cônjuges é elemento fundamental em uma espécie de guarda que se baseia na tomada conjunta de decisões.

É preciso que haja uma harmonia, ainda que perdida a conexão afetiva por ocasião da separação, que advém da “tarefa de plena realização parental, ao cuidar de priorizar o fundamental interesse da prole e realizar no plano concreto a felicidade dos filhos”.[xi]

Embora uma decisão que imponha a guarda compartilhada aos pais em desacordo possa surtir os efeitos desejados pelo legislador, “dificilmente a obtenção da paz se dá por meio da imposição de um terceiro”.[xii]

Deixar ao arbítrio do Poder Judiciário os contornos da guarda compartilhada com o fito de resolver os dissensos e a falta de comunicabilidade dos ex-cônjuges, mesmo que possa se basear em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar (art. 1.584, §3º, CC), não parece ser melhor saída do que a encontrada através do consenso.

Isso porque não cabe ao Poder Judiciário a missão de apaziguar um relacionamento conflituoso do qual decorrerão mais problemas em razão do compartilhamento de decisões, e as repercussões dessa delegação podem ser atentatórias ao melhor interesse do menor.

Em casos como esses, é mais provável que a concessão da guarda compartilhada transforme o filho em um troféu de das desavenças judiciais do ex-casal.[xiii]

A preocupação em não fazer do texto legal que impõe a obrigatoriedade da guarda compartilhada uma letra morta já foi externada pelo Superior Tribunal de Justiça:

A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta.[xiv]

No entanto, tal preocupação não pode se sobrepor ao peso das decisões judiciais na realidade das famílias, cujas consequências são extremamente sérias.

De mais a mais, a fixação da guarda unilateral não obsta o exercício do poder familiar por parte daquele que não detém a guarda, que possui o dever e o direito de supervisão e convivência com o filho (art. 1.583, §5º, CC).

Portanto, nos casos em que não houver consenso entre os pais, a guarda unilateral pode ser a melhor escolha, como exposto por Coltro e Delgado:

Compartilhar a guarda significa agir em uníssono e conjunto em várias situações que, se já são de difícil condução para pais que convivem sob o mesmo teto e possuem laços afetivos que os unem, quão difícil será para pais desunidos e em discórdia, o exercício da guarda compartilhada imposta por decisão judicial!

Cada decisão relativa aos filhos a ser tomada, poderá ser motivo de novos conflitos e impasses. Partindo do princípio de que o melhor interesse dos filhos deve sempre ser preservado, temos receio de que a imposição da guarda compartilhada venha a gerar ainda maiores dissabores aos filhos já tão fragilizados por constantes desavenças. Diante dessa possibilidade, se o consenso não for construído, a guarda unilateral pode vir a ser mais aconselhável.[xv]

Nesse sentido, uma mitigação da primazia da guarda compartilhada é salutar, pois permite a adoção da guarda unilateral em situações nas quais a guarda compartilhada possa potencializar as hostilidades oriundas de conflitos pré-existentes, o que periga o melhor interesse do menor.

 

Notas e Referências

[i] CARBONERA, Silvana Maria. A guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Fabris, 2000. p. 47.

[ii] RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. Poder familiar e guarda compartilhada: novos paradigmas do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 73-74.

[iii] BRASÍLIA. Conselho da Justiça Federal. Jornada de Direito Civil VII. Enunciado número 606. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/842>. Acesso em: 09 de out. 2019.

[iv] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1560594/RS. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 23-2-2016.

[v] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1626495/SP. Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15-9-2016.

[vi] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1629994/RJ. Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 6-12-2016.

[vii] BRASÍLIA. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação número 25/2016. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/dje/djeletronico>. Acesso em: 09 de out. 2019.

[viii] MARTINS, Rita; TALLMANN, Helena. ZASSO, José. Pais dividem responsabilidade na guarda compartilhada dos filhos. Revista Retratos. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23931-pais-dividem-responsabilidades-na-guarda-compartilhada-dos-filhos>. Acesso em: 09 de out. 2019.

[ix] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estatísticas do Registro Civil. v.44. Rio de Janeiro: 2017. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2017_v44_informativo.pdf>. Acesso em: 09 de out. 2019.

[x] ROLF Madaleno. Manual de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 116.

[xi] ROLF Madaleno. Manual de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 133.

[xii] COLTRO, Antônio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz. Guarda compartilhada. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense: 2018. p. 111.

[xiii] ROLF Madaleno. Manual de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 119.

[xiv] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1428596/RS. Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3-6-2014.

[xv] COLTRO, Antônio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz. Guarda compartilhada. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense: 2018. p. 111.

 

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