A previsão do crime de desacato no Brasil e o controle de convencionalidade

19/12/2016

Por Indyara Tayana Santos Rossetto - 19/12/2016

A criminalização da conduta de desacato no ordenamento jurídico brasileiro está em conformidade com os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos que foram ratificados pelo Brasil?

 A 5ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça, nesta quinta-feira, decidiu afastar a aplicação de crime de desacato à autoridade[1] sob o entendimento de que a norma interna não se coaduna com o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Partindo desse pressuposto, a conduta de desacato visa proteger o exercício da função pública, haja vista que se pretenda prezar e zelar pela integridade da atividade estatal.

Nas palavras de Bitencourt[2]:

Protege-se, na verdade, a probidade de função pública, sua respeitabilidade, bem como a integridade de seus funcionários. Objetiva-se, especificamente, garantir o prestígio e a dignidade da “máquina pública” relativamente ao cumprimento de determinações legais, expedidas por seus agentes. É considerado crime pluriofensivo, atingindo tanto a honra do funcionário como o prestígio da Administração Pública.

Diante do que expõe o doutrinador em questão, é mister salientar que se observa nas doutrinas uma proteção do prestígio da máquina pública, ou seja, enaltece-se a função estatal e por conseguinte os seus funcionários. Essa é uma problemática que deve ser analisada devido ao culto que se faz às funções públicas.

Destarte, dentro da visão do Direito Penal como medida de ultima ratio, esta eleição do bem jurídico fundamental ser o enaltecimento da máquina estatal soa como uma incongruência desmedida e até mesmo uma antinomia do Sistema.

Ademais, Mazzuoli leciona que deve existir um controle de convencionalidade das normas domésticas com os tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Governo e em vigor no País, isto é, já que os Tratados de Direitos Humanos tem status de norma constitucional de acordo com o §2º do art. 5º da CF ou no caso são equivalentes a emenda constitucional (vide §3º do art. 5º da CF).[3]

Contudo, todas as normas infraconstitucionais que forem elaboradas no Brasil devem passar pelo controle de convencionalidade, que nada mais é que analisar a compatibilidade da norma com o sistema atual do Estado. Dessa forma, o jurista Mazzuoli aduz que as normas que não passam por tal controle se tornam inválidas, e leciona que não se pode confundir normas vigentes com normas válidas.[4]

Sustenta-se, assim, que os tratados internacionais que versem sobre matéria de direitos humanos possuem um caráter especial, o que os diferencia dos demais pactos, uma vez que aqueles visam garantir os direitos do ser humano, e não as prerrogativas do Estado[5].

Destarte, considerando-se que a criminalização da conduta de desacato fere norma supralegal, qual seja, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, tem-se que referida tipificação não pode ser utilizada em nosso ordenamento jurídico, sob pena de configurar afronta aos princípios norteadores do Direito Constitucional, a exemplo: os princípios da convencionalidade, do direito à informação, da legalidade e, notadamente, da liberdade de expressão.

Neste sentido, importante trazer à baila a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da qual se extrai o seguinte:

[...] a liberdade de expressão é um direito fundamental reconhecido na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Resolução 59(I) da Assembléia Geral das Nações Unidas, na Resolução 104 adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e em outros instrumentos internacionais e constituições nacionais.[...] RECONHECENDO que os princípios do Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos representam o marco legal a que estão sujeitos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos; REAFIRMANDO o Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que estabelece que o direito à liberdade de expressão inclui a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e idéias, sem consideração de fronteiras e por qualquer meio de transmissão; CONSIDERANDO a importância da liberdade de expressão para o desenvolvimento e a proteção dos direitos humanos, o papel fundamental que lhe é atribuído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos[...]

Nota-se, com base no exposto acima, que a liberdade de expressão é um direito fundamental, inerente a todas as pessoas e indispensável para a existência de uma sociedade democrática. A própria Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, em seu art. 11, traz o seguinte:

Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.

Portanto, a ausência do controle de convencionalidade das normas domésticas com relação aos Tratados de Direitos Humanos, torna inválidos os dispositivos legais que não se coadunam com estes últimos.

Frisa-se que, a partir do momento em que o Estado se compromete a ratificar e coloca em vigor um Tratado, ele se vincula à referida norma internacional. Sendo assim, o controle de convencionalidade deve ser obrigatoriamente utilizado pelos legisladores para que não ocorram incongruências legislativas, como ocorre no caso sob análise.[6]

Por derradeiro, nota-se, que o afastamento da tipificação criminal da conduta de desacato não impede a responsabilidade posterior, tanto civilmente, quanto criminalmente, por intermédio da propositura de ação condenatória para a cobrança de eventual indenização por abalo moral ou, ainda, por meio da apresentação de queixa-crime pelo cometimento de qualquer um dos crimes contra a honra.

Evidentemente que poderão ocorrer excessos por parte do cidadão, extrapolando-se os limites da liberdade de expressão. Em tais casos, será cabível, ainda, a utilização dos remédios jurídicos mencionados no parágrafo anterior.

De qualquer modo, acertado o posicionamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, visto que a permanência da criminalização da conduta de desacato pelo art. 331 do Código Penal, viola diversos princípios constitucionais, além de significar uma afronta à Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, ratificada por nosso país e dotada de status supralegal, portanto, hierarquicamente superior à referida norma de direito material.

Resta saber, afinal, se as demais Cortes irão preferir a aplicação da lei em conformidade com a norma constitucional, seguindo o precedente formado com o julgamento do 1.640.084 – SP, ou se permanecerá aplicando norma sabidamente inválida e que não se coaduna com princípios constitucionais básicos, de maneira temerária, com o escopo de promover uma proteção injustificada aos agentes públicos.


Notas e Referências:

[1] RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 - SP (2016/0032106-0) Disponível em: < http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/RECURSO%20ESPECIAL%20N%C2%BA%201640084.pdf>. Acesso em: 15 de dezembro de 2016.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial.v.5. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.p.256.

[3]  MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Disponível em : < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3>. Acesso em: 15 de novembro de 2015.

[4] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Disponível em : < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3>. Acesso em: 15 de novembro de 2015.

[5] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15.ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2015, p.131.

[6] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Disponível em : < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3>. Acesso em: 15 de novembro de 2015.


indyara-tayana-santos-rossetto. . Indyara Tayana Santos Rossetto é Advogada, pós graduada em Direito Penal e Processo Penal, email: rb_advocacia@outlook.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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