Deduzindo, perante o Supremo Tribunal Federal, pretensões objetivando declaração de existência de omissão legislativa em criminalizar a homofobia e a transfobia com enquadramento de tais condutas, via interpretação judiciária, nos tipos penais definidos na Lei 7716/1989 até que o Congresso Nacional edite norma autônoma, os defensores de tal pretendida criminalização claramente desprezam o princípio da legalidade, pleiteando a utilização da classicamente vedada analogia in malam partem, pleito lamentavelmente acolhido nos quatro votos já proferidos no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e do Mandado de Injunção 4733.
A Lei 7716/1989, na redação original de seu artigo 1º, bem como em sua ementa, referia-se tão somente à criminalização de condutas configuradoras de preconceito de raça ou de cor. Tal regra estava assim redigida: “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.” Conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor do projeto, deputado Carlos Alberto Oliveira, de apelido Caó, notabilizado por sua luta em prol dos direitos dos afrodescendentes, aquele diploma objetivava, em sua origem, criminalizar o racismo, entendido no sentido que identifica o impróprio conceito de raça à cor da pele. Apresentado o projeto no início de 1988, a vinda da Constituição Federal fez do novo diploma, editado em janeiro do ano seguinte, instrumento de concretização da regra introduzida no inciso XLII de seu artigo 5º, a dispor que “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”
Note-se que tal regra constitucional foi deslocadamente incluída entre os direitos e garantias fundamentais. Junto com as demais cláusulas de penalização constantes dos incisos XLI, XLIII e XLIV[1], a regra do inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal resultou de negociações que, já na Constituinte, revelavam a indiferenciação entre direita e esquerda, ambos os lados do espectro político irmanados em seus desejos punitivos, diferenciando-se tão somente na escolha dos ‘inimigos’ a serem alvos da violência, dos danos e das dores produzidos pelo sistema penal.
Observando-se o processo de elaboração da Lei 7716/1989, é interessante lembrar parecer do relator do projeto no Senado, Maurício Correa, durante sua tramitação naquela Casa:
“O presente diploma visa a regulamentar um dos mais importantes princípios da nova Constituição, que é o inciso XLII, do Artigo 5º (...). A Lei nº 1390, de 03 de julho de 1951, definia - em seus nove artigos – as formas de contravenção e as punições a que estariam sujeitos aqueles que as praticassem (...). Mais recentemente, a Lei nº 7.437, de 20 de dezembro de 1985, dava nova redação à Lei nº 1390, ampliando as contravenções para os atos resultantes de ‘preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil’. Assim, cumpria o legislador o seu papel de aperfeiçoar o ato legislativo, ampliando sua abrangência e visando a garantir os direitos daqueles que sofrem de discriminação e redefinindo as penalidades para os responsáveis por esses atos discriminatórios e preconceituosos (...). O Projeto de Lei que ora apresenta o Deputado Federal Carlos Alberto Caó retoma os princípios e delimita as contravenções nos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (...). Outros crimes poderia o legislador prever e punir: os que discriminam os velhos e os jovens, os que discriminam judeus, imigrantes ou apátridas, os que discriminam a pobreza, a ignorância, a deficiência física ou mental. No entanto, trata-se aqui de legislar sobre a especificidade da discriminação que é também racismo e preconceito em relação à comunidade negra (...).”[2]
Somente em 1997, veio a Lei 9459 dar nova redação ao artigo 1º da Lei 7716/1989, incluindo em sua abrangência discriminações ou preconceitos fundados, não só em questões de raça ou cor, mas também em etnia, religião ou procedência nacional. Desde então, passou aquele dispositivo legal a estabelecer que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
Registre-se que, anteriormente, a Lei 8081/1990 já introduzira na regra do artigo 20 da Lei 7716/1989 a criminalização das condutas de praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional. Ainda antes da Lei 9459/1997, veio a Lei 8882/1994 introduzir parágrafo àquele artigo, criminalizando as condutas de fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
A Lei 7716/1989 não diz que seriam punidos os crimes resultantes de discriminações ou preconceitos referentes à sexualidade. Não. Diz apenas que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Tampouco acrescenta uma cláusula genérica, a dizer que seriam igualmente punidas quaisquer outras discriminações ou preconceitos. Não. Limita-se a lei a dizer que as discriminações ou preconceitos nela criminalizados são aqueles de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
É evidente que, assim como foi feito em relação a etnias, religiões ou procedências nacionais, para se estender a criminalização a quaisquer outras espécies de discriminação ou preconceito, como as consubstanciadas em manifestações de homofobia e transfobia, faz-se necessária nova alteração da Lei 7716/1989 ou edição de outra lei específica.
Sem isso, a extensão da criminalização inegavelmente se torna claríssimo exemplo da classicamente vedada analogia criadora de crimes.
Não fosse isso evidente, bastaria observar o apelo à analogia na própria formulação das pretensões deduzidas perante o Supremo Tribunal Federal: pede-se declaração de existência de omissão legislativa em criminalizar a homofobia e a transfobia com enquadramento de tais condutas nos tipos penais definidos na Lei 7716/1989.
Ora, se tais condutas pudessem ser enquadradas naqueles tipos penais não haveria omissão a ser declarada. Como é possível reconhecer a existência de uma omissão legislativa e, ao mesmo tempo, se valer de uma lei existente para afirmar a criminalização que se diz faltar? Única forma de fazê-lo é empregando a vedada analogia in malam partem. Evidentemente insustentáveis os discursos dos prolatores dos votos até agora proferidos no Supremo Tribunal Federal, negando, com grande desfaçatez, estarem se valendo da vedada prática.
Como podem negar a analogia? Por acaso, pensam que a homossexualidade e a transexualidade seriam uma raça? Uma cor? Uma etnia? Uma religião? Uma procedência nacional? É de se supor que não. Se, ao contrário, sustentam a criminalização porque discriminações e preconceitos em razão de homossexualidade e transexualidade são semelhantes a discriminações e preconceitos em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, estão indubitavelmente se utilizando da analogia. O processo lógico da analogia, no campo do direito – absolutamente vedado em matéria de criação de crimes e penas –, se configura exatamente na aplicação de um dispositivo legal a uma hipótese não prevista em lei, quando identificável uma semelhança de relações essenciais entre aquela hipótese e a outra legislada.
Em seus votos, os integrantes do Supremo Tribunal Federal que já se pronunciaram valem-se de um precedente estabelecido, por maioria, no julgamento do Habeas Corpus 82424, concluído em setembro de 2003. Ali, sendo inquestionada a configuração do crime previsto no artigo 20 da Lei 7716/1989, identificado na edição, distribuição e venda de livros contendo manifestações discriminatórias contra pessoas de origem judaica, discutia-se seu enquadramento como crime de racismo, a atrair a excepcional imprescritibilidade ditada pela regra do inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal. Afirmando a imprescritibilidade, o Supremo Tribunal Federal, então, aplicou indevidamente a classicamente vedada analogia in malam partem. Agora, os que invocam o precedente reincidem em tal vedada prática.
Na ocasião em que se discutia a questão suscitada naquele julgamento, assinalei que não havia qualquer dificuldade para solucioná-la, bastando obedecer a postulados clássicos de um direito penal garantidor, a impor a vedação de interpretações extensivas em matéria criminalizadora. Então, escrevi:
“Assim como as normas que asseguram direitos devem ser interpretadas da forma mais ampla possível, de modo a favorecer o bem-estar dos indivíduos, as normas criminalizadoras, que restringem ou privam os indivíduos de direitos, afetando sua liberdade e sua dignidade, devem, ao contrário, ser interpretadas da forma mais rígida possível, de modo a limitar o peso do poder de punir, assim, igualmente, tendo em conta o bem-estar dos indivíduos. Esta é antiga lição, inseparável do Estado Democrático de Direito. Qualquer que seja o impróprio conceito de raça que se queira adotar, nele, decerto, não há como enquadrar pessoas a partir de sua origem ou crença judaica. Aliás, excetuando Hitler e seus seguidores, poucos assim o fizeram. Não sendo os judeus uma raça, manifestações discriminatórias contra estes não podem constituir crime de racismo, da mesma forma que discriminações motivadas por orientações sexuais tampouco poderiam configurar um tal crime. A Carta de 1988 adotou aquele impróprio termo, tomando-o no sentido vulgar, que identifica raças a brancos, negros e amarelos. A finalidade era reprimir a discriminação contra afrodescendentes, de forte presença no Brasil. Estender à discriminação contra pessoas de origem ou crença judaica o tratamento de exceção que a Constituição Federal reservou unicamente à discriminação impropriamente denominada racial reflete um voluntarismo, que, por mais bem intencionado que seja, acaba por admitir o vedado recurso à analogia ‘in malam partem’, apenas consagrado em ordenamentos jurídico-penais autoritários, como o que vigorou na Alemanha, sob o jugo nazista. A essência do Estado Democrático de Direito mais se afirma quando seus princípios garantidores da liberdade são aplicados àqueles que os negam. O repúdio ao nazismo e a quaisquer outras ideologias ou manifestações de autoritarismo se faz com mais vigor exatamente quando se reconhece que mesmo seus partidários são titulares de direitos. Assim se demonstra o rompimento com tentações totalitárias; assim se ensina que todos os indivíduos devem ser respeitados, quaisquer que sejam suas origens, sua aparência física, suas crenças, suas atitudes, suas ideologias. Os sentimentos e manifestações discriminatórios partem de uma concepção, que, rompendo com a fraternidade genética e espiritual entre todos os indivíduos, divide-os em bons e maus, superiores e inferiores, bonitos e feios, ‘cidadãos de bem’ e ‘delinquentes’, desigualando, excluindo e estigmatizando, para assegurar poderes e privilégios de uns em detrimento de outros. A divisão, a exclusão e a estigmatização estão na raiz das diversas formas de autoritarismo. É, pois, no mínimo inadequado que se pretenda conter manifestações discriminatórias utilizando-se de mecanismos autoritários, como o emprego da analogia ou de interpretações extensivas em matéria criminalizadora (...).”[3]
O desvirtuamento da finalidade e da função das normas garantidoras de direitos fundamentais, ontem e hoje revelado, sob o mesmo pretexto de enfrentar manifestações discriminatórias, está a recomendar que se recordem alguns aspectos básicos do princípio da legalidade, não obstante sua obviedade. Nesses tempos de ‘pós-verdade’, nunca é demais repetir o óbvio.
A vedação do emprego da analogia in malam partem é corolário inafastável do princípio da legalidade, que expressa a ideia básica do modelo democrático de máximo respeito aos direitos individuais e máximo controle do exercício do poder. Só a lei pode estabelecer limites à liberdade de ação do indivíduo, enquanto o exercício do poder estatal só pode se fazer quando a lei o determina. A liberdade individual é sempre a regra geral. Proibições e restrições a direitos individuais são exceções.
Dada a necessidade de controlar e conter aquele que é o mais violento poder estatal – o poder de punir –, o princípio da legalidade, em matéria penal, adquire ainda maior relevância, expressando-se de forma específica na clássica fórmula nullum crimen, nulla poena sine legem, traduzida em normas fundamentais das declarações internacionais de direitos humanos e constituições democráticas.
Implicando no conhecimento prévio da proibição, para que possa ser exigida a abstenção da conduta proibida, o princípio da legalidade não convive com a possibilidade de alguém ser punido por um comportamento apenas semelhante ou equivalente ao que é expressamente proibido. O comportamento semelhante ou equivalente ao proibido não é o mesmo que está previsto na lei. O comportamento semelhante ou equivalente não é aquele que está proibido.
Nenhuma interpretação de dispositivos criminalizadores pode ultrapassar os limites expressa e taxativamente estabelecidos na lei. Não se trata de apego servil à literalidade da lei, nem de uma pobre ou retrógrada interpretação filológica de seu conteúdo. Trata-se, apenas, de assegurar a eficácia das normas garantidoras do princípio da legalidade. Para tanto, é sempre necessária exegese estrita e rigorosa, afastando-se interpretação que, como na pretendida criminalização da homofobia e da transfobia através de seu enquadramento nos tipos penais definidos na Lei 7716/1989, invoca o ‘espírito da lei’ para acrescentar expressões não constantes do texto legal e, assim, dilatar seu alcance criminalizador.
Já em 1764, Beccaria advertia, na obra-prima dentre os textos iluministas, que não há nada mais perigoso do que o axioma de que seria preciso consultar o ‘espírito da lei’[4].
A pretendida criminalização da homofobia e da transfobia através de seu enquadramento nos tipos penais definidos na Lei 7716/1989 é assustador exemplo de total descompromisso com o princípio da legalidade, de total descompromisso com os postulados do estado democrático, de total descompromisso com o primado dos princípios e normas garantidores de direitos fundamentais assentados nas declarações universais de direitos e na Constituição Federal brasileira, como, de resto, em todas as constituições democráticas.
Quando até aqueles que se intitulam defensores dos direitos humanos transformam justas reivindicações político-sociais em intrinsecamente injustos desejos punitivos, não hesitando em paradoxalmente compactuar – e, pior, pleitear – a violação de normas garantidoras, como até mesmo as que positivam o próprio princípio da legalidade, a destruição daqueles direitos fundamentais caminha para irremediavelmente se consumar.
Notas e Referências
[1] “Inciso XLI. A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Inciso XLIII. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los se omitirem. Inciso XLIV. Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.” Registre-se que, além destas cláusulas deslocadamente inseridas em incisos do artigo 5º, existem, ainda, na Carta de 1988, outras cláusulas expressas de penalização, como as constantes do § 3º do artigo 225 e do § 3º do artigo 192, em que se cuida, respectivamente, da tutela penal do meio ambiente e da criminalização da usura.
[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=180567 (acesso em 21/02/2019).
[3] Artigo publicado em edição de 16 de abril de 2003 do Jornal do Brasil, que então circulava.
[4] “Non v’è cosa più pericolosa di quell’assioma comune che bisogna consultare lo spirito della legge.” Beccaria, Cesare. Dei delitti e delle pene. Torino: Einaudi, 1965: 16.
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