A presunção de inocência para acusados crimes sexuais  

19/04/2019

 Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

A presunção de inocência, prevista atualmente no artigo 5º, LVII, da Constituição da República, é uma garantia de imunidade aos inocentes, de extrema importância para a manutenção do estado democrático de direito.

Mesmo que para assegurar tal prerrogativa, em algum momento, pessoa culpável remanesça impune, deve ser suficiente que, constantemente os culpados, através do devido processo legal, sejam punidos, sem abrir mão entretanto, de que os inocentes, sem exceção, estejam protegidos[1].

O escopo da presunção de inocência, é justamente proteger os cidadãos do arbítrio punitivo estatal, e, o julgador, ao respeitar tal princípio, garante a aplicação da lei penal de acordo com o que rege a Constituição da República, e ainda, permite a construção do seu convencimento em contraditório quanto às imputações feitas ao acusado[2].

Embora exista o pensamento disseminado de que os julgadores conseguem se manter neutros[3] frente aos casos que julgam, tal percepção é um mito.

É necessário compreender os limites da interferência da subjetividade do julgador nas decisões, para que haja uma atuação imparcial dentro da técnica jurídica, sem permitir a interferência de questões íntimas existentes em todos os seres humanos, mas que, não podem ser trazidas ao analisar a prova, sob pena de contaminar a decisão pelo subjetivismo do magistrado[4].

Ocorre que, há crimes em que o judiciário, no afã de atender aos anseios punitivos da sociedade, abre mão da técnica jurídica, como por exemplo, os crimes sexuais - em especial quando a suposta vítima é uma criança, nos quais nota-se nitidamente o quanto a prática na aplicação do direito penal se distancia de “dever-ser” e da técnica.

Há um consenso atualmente entre julgadores de que, a palavra da vítima tem maior valor do que a do acusado em imputações de crimes sexuais - entendimento que vem se espalhando para outros crimes, uma vez que, tais crimes muitas das vezes são cometidos de forma clandestina e em algumas situações não deixam vestígios.

Verifica-se nestes casos, a inversão do ônus probatório[5], que deixa de ser da acusação e se torna dever do acusado. O que não deveria ocorrer, visto que não há no ordenamento jurídico tal previsão.

Neste momento, a proteção aos cidadãos contra o arbítrio estatal almejado com a presunção de inocência, é desconsiderado, em virtude do repúdio que crimes sexuais provocam em nossa sociedade, e na certeza que os julgadores tem de que a vitima não mente.

Neste sentido, não raro, os magistrados questionam por qual motivo haveria a suposta vítima de mentir e se sujeitar a um processo penal? Ou quando a suposta vítima seja uma criança tem-se a percepção de que crianças não mentem. Ora, não cabe ao acusado saber as razões que levaram a formalização da acusação.

Cristina di Gesu aborda o tema demonstrando[6] que, por influência da paixão, ou emoção, e muitas vezes, sem a consciência da própria pessoa que narra os fatos, ocorre uma deformação na narrativa dos fatos.

Apesar do entendimento baseado no senso comum de que a criança não mente, literatura específica sobre o tema demonstra que, ainda que não haja vontade consciente da suposta vítima em mentir[7] ou prejudicar o acusado, o depoimento de uma criança é extremamente sugestionável[8] e merece ser analisado com cautela, já que a criança está ainda mais sujeita as falsas memórias.

Casos emblemáticos já demonstraram a fragilidade do depoimento da vítima, como os da “escola base”[9] ou do “maníaco do Anchieta”[10].

Em ambos os casos a palavra das vítimas foram levadas em conta em detrimento da do acusado[11], e, culminaram em injustiças que acabaram com a reputação de pessoas inocentes que tiveram sua vida devastada em razão de uma presunção de culpabilidade.

A presunção de inocência pretende justamente proteger cidadãos inocentes de ficarem presos por dezoito anos, como foi o caso de Eugênio Fiuza de Queiroz[12] apontado por diversas vítimas como o “maníaco do Anchieta”, crimes que nunca cometeu.

Especialmente, por ter o Estado meios muito mais poderosos de investigar e provar o cometimento de um crime do que um cidadão lutando contra todo o judiciário para provar sua inocência, é que a presunção de inocência não pode ser invertida para a inconstitucional presunção de culpabilidade.

A lógica predominante atualmente seria, portanto, de que os fins justificam os meios, e, que um juiz possa condenar um acusado de acordo com suas convicções íntimas, não dá ao réu a possibilidade de se defender plenamente, já que tudo o que argumentar ou comprovar a seu favor será desconsiderado.

De forma recorrente verifica-se que a participação do acusado nos processos penais, em especial nos crimes de violência sexual, não é efetiva, uma vez que não lhe é dada a oportunidade de a argumentação defensiva interferir na decisão judicial, posto que a convicção do julgador está formada desde o inicio. A atuação da defesa nestes casos seria meramente formal, uma formalidade exigida pelo Código de Processo Penal e Constituição da República.

Ressalto, não se trata de ser contra ou a favor de suspeitos da prática de crimes sexuais, ou qualquer outro. Nem mesmo de estar contra, ou a favor, das vítimas.

A questão a ser observada, são os elementos técnicos do direito processual penal que estão sendo constantemente ignorados nas decisões judiciais, causando insegurança jurídica, colocando toda a sociedade em posição de vulnerabilidade, sem que se tenha consciência desta condição, em razão da tentativa justamente de atender ao anseio crescente de punitivismo.

A continuarmos seguindo esta lógica, em que a constituição da República e a lei penal não pautam a atuação dos magistrados, retornaremos ao raciocínio inquisitivo, do qual ainda estamos tentando nos libertar enquanto sociedade democrática de direito.

 

 

Notas e Referências

[1] LOPES Jr., Aury. Direito penal processual. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 217.

[2] “Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser submetido a pena.” FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 205.

[3] “(...) embora ainda navegue no (in)consciente social e jurídico o mito da neutralidade, considerando que 17% dos magistrados brasileiros acreditam ser neutros, conforme pesquisa.”DI GESU, Cristina. Prova Penal e falsas memorias. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.p.187

[4] DI GESU, Cristina. Prova Penal e falsas memorias. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.p.189

[5] Lenio Streck escreveu sobre esta prática em : <https://www.conjur.com.br/2015-fev-05/senso-incomum-tj-mg-mp-nao-provar-acusacao-la-invertem-onus-prova> Acesso em 10 abr. 2019.

[6] “Nesse estudo, Gorphe identificou alguns tipos de “mentira”, dos quais destaco a mentira negligente e a mentira passional. A negligente era produzida, conforme o autor, geralmente em resposta a uma sugestão e na qual a testemunha não separava o verdadeiro do falso. Já na passional, a testemunha, sob influência de uma paixão ou perturbação, se deixava levar até a deformação dos fatos, porém sem uma consciência clara de tal deformação. “ DI GESU, Cristina. Prova Penal e falsas memorias.2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 130

[7] As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois, a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação. Aury Lopes Jr., Direito Processual Penal. p. 691.

[8] “O depoimento infantil merece ser valorado com bastante cautela, pois além de todos os fatores acima elencados, ainda há que se destacar ser a criança extremamente sugestionável. Ademais, ela é instintivamente levada a adaptar seu testemunho àquilo que julga esperar dela. Nas palavras de Altavilla, “a criança tem grande intuição e descobre com facilidade a opinião de quem a interroga e isso perturba o que ela sabe”. Há uma tendência como já dissemos de corresponder ás expectativas do entrevistador.” DI GESU, Cristina. Prova Penal e falsas memorias. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.p. 151

[9] Disponível em: <http://www.justificando.com/2014/12/10/da-serie-julgamentos-historicos-escola-base-a-condenacao-que-nao-veio-pelo-judiciario/> Acesso em: 08 abr. 2019.

[10] Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/12/16/interna_gerais,717819/apos-18-anos-de-pena-sosia-do-maniaco-do-anchieta-e-inocentado-de-est.shtml> Acesso em: 08 abr. 2019.

[11]Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2016-jan-26/stj-reune-decisoes-valor-depoimentos-vitimas-estupro> Acesso em 07 abr. 2019.

[12] Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/08/17/interna_gerais,794854/estado-e-condenado-a-pagar-pensao-a-artista-confundido-com-maniaco.shtml> Acesso em: 08 abr. 2019.

 

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