A presunção de inocência, o STF e o projeto Moro  

09/02/2019

 

Em razão do “Pacote Anticrime” apresentado pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro na última segunda-feira (4), a discussão sobre o princípio da presunção de inocência voltou a ser o epicentro do debate jurídico. Assim, necessário, antes de avaliar o referido projeto, revisitar o tema e as decisões do STF que deram tratamento diverso a matéria.

1- O STF e o princípio da presunção de inocência: 

No dia 5 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Habeas Corpus 84.078, reconheceu que o princípio da presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação definitiva, transitada em julgada. A referida decisão impedia, assim, a chamada execução provisória (antecipada) da pena, enquanto houvesse recurso pendente.

EMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subsequentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7...

(HC 84078, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048

Decorre do voto do ministro (Relator) Eros Graus, que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação – prisão provisória (prisão em flagrante, de prisão temporária ou de prisão preventiva) - somente pode ser decretada a título cautelar.

A ampla defesa, asseverou o ministro Eros Grau, “não se à pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por que não haveria de ser assim? Se é ampla, abrange todas e não apenas algumas dessas fases. Por isso a execução da sentença após o julgamento   do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão”.

Todavia, em 17 de fevereiro de 2016 o Plenário do STF, por 7 votos a 4, em julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, revendo a posição anterior, considerou que é possível a execução da pena depois de condenação confirmada em segunda instância.

Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.

(HC 126292, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)

EXTRATO DE ATA

HABEAS CORPUS 126.292 PROCED. : SÃO PAULO RELATOR : MIN. TEORI ZAVASCKI PACTE.(S) : MARCIO RODRIGUES DANTAS IMPTE.(S) : MARIA CLAUDIA DE SEIXAS COATOR(A/S)(ES) : RELATOR DO HC Nº 313.021 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Decisão: A Turma, por votação unânime, afetou o julgamento do feito ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, por indicação do Ministro Relator. Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli. 2ª Turma, 15.12.2015. Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, denegou a ordem, com a consequente revogação da liminar, vencidos os Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski (Presidente). Falou, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador-Geral da República. Plenário, 17.02.2016.

Segundo o ministro (Relator) Teori Zavascki a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual...”

Em sentido oposto ao voto do ministro relator e daqueles que acompanharam o voto vencedor, o decano do STF, ministro Celso de Mello, em seu voto vencido, salientou que “a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República”.

No julgamento do Habeas Corpus 126.292, a decisão do Supremo Tribunal Federal, a um só tempo, afrontou o texto Constitucional (art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República), Tratados Internacionais – que o próprio Estado Brasileiro ratificou como a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 2) - a própria legislação processual penal (art. 283 do Código de Processo Penal) e também sua própria jurisprudência (HC 84.078/MG, de 05/02/2009). [1]

 

2- “Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância” (Projeto Moro):

A primeira medida apresentada pelo Ministro da Justiça é justamente a que diz respeito a possibilidade de execução antecipada da pena.

Inicialmente o projeto prevê mudanças no Código de Processo Penal, in verbis:

 “Art. 617-A.  Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. (grifamos)

§ 1º O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§ 2º Caberá ao relator comunicar o resultado ao juiz competente, sempre que possível de forma eletrônica, com cópia do voto e expressa menção à pena aplicada." (NR)

 

"Art. 637. O recurso extraordinário e o recurso especial interpostos contra acórdão condenatório não terão efeito suspensivo. 

§1º Excepcionalmente, poderão o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça atribuir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial, quando verificado cumulativamente que o recurso:

........................................................................................................................................................................

Antes da análise da proposta do Ministro da Justiça, necessário lembrar que tramita perante o STF as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54 que postulam a declaração da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal (CPP), com redação dada pela Lei nº 12.403/2011, que prevê:

“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Apesar do julgamento das referidas ADCs está pautado para o próximo dia 10 de abril, o autor do projeto propõe – desconsiderando uma eventual decisão do STF pela constitucionalidade do art. 283 do CPP – modificação na lei a fim de admitir a execução provisória (antecipada) da pena.

De acordo com o projeto, o art. 283 do CPP passaria a ter a seguinte redação:

"Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado ou exarada por órgão colegiado. (grifamos).

A proposta do ex-juiz é, para dizer o mínimo, uma desconsideração com o STF, já que as referidas ADCs, que tratam da matéria, ainda serão julgadas pelo Supremo. Não é demais martelar que o princípio da presunção de inocência insculpido no título que trata dos direitos e garantias fundamentais da Constituição constitui cláusula pétrea que não pode ser alterada nem mesmo por emenda constitucional.

Note-se que o próprio projeto, ao admitir, ainda que excepcionalmente, a possibilidade do tribunal “deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação” (parágrafo 1º do art. 617 da redação do projeto) e, de igual modo, tanto o STF (Supremo Tribunal Federal) como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) poderá “atribuir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial”,  acaba por reconhecer que as decisões, mesmo as proferidas na 2ª instância, estão sujeitas a serem modificadas pelos tribunais superiores.

O que é tratado como “excepcionalidade” deveria ser tratado como regra. Ou seja, sempre que o recurso for plausível, a inconstitucional execução provisória da pena deve ser suspensa.

Daí porque não há - sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência – como se admitir a execução provisória (antecipada) da pena sem que se tenha esgotado toda a via recursal e que tenha, portanto, transitado em julgado a sentença penal condenatória.

Contudo, verifica-se que o efeito suspensivo dos recursos deixa de ser uma questão de legalidade e passa a ficar completamente subordinado ao campo de discricionariedade dos juízes (arts. 421, §§ 3º e 6º, 617, § 1º, 637, §§ 1º e 2º, do CPP).[2]

O projeto Moro, calcado na sanha punitivista, também, afronta o princípio da presunção de inocência ao permitir que o juiz presidente do Tribunal do Júri determine a imediata prisão do condenado, independente de recurso para segunda instância. Aqui, a execução da pena é antecipada para uma decisão precária e de primeiro grau.

 

3- Conclusão:

Como bem salientou o eminente ministro Celso de Mello:

Nenhum dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios, ou a manipulações hermenêuticas, ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência ou de pragmatismo, eis que a relação de qualquer dos Três Poderes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de incondicional respeito, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma promessa frustrada pela prática autoritária do poder” (Habeas Corpus 152.752).

Em tese de doutoramento, Antônio Magalhães Gomes Filho assevera que: “À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de encarceramento ordenadas como antecipação da punição, ou que constituam corolário automático da imputação, como sucede nas hipóteses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do periculum libertatis”.[3]

No Estado de direito é inadmissível, intolerável e inaceitável flexibilizar direitos e garantias individuais em nome do combate deste ou daquele delito. A investigação, a acusação e o julgamento devem ser orientados pelos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, do juiz imparcial, da proibição de prova ilícita, da proporcionalidade etc.

O processo penal, verdadeiramente comprometido com o Estado democrático de direito, deveria ser dirigido, antes de tudo, para a garantia e realização dos direitos fundamentais, e que tem como objeto a limitação do poder punitivo estatal. O processo penal acusatório - único compatível com a democracia - deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República e não o contrário.

 

Notas e Referências

[1]Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Flávio Quinaud Pedron e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. Disponível: http://emporiododireito.com.br/presuncao-de-inocencia-uma-contribuicao-critica_/

[2] Vide nota do ICC (Instituto Carioca de Criminologia).

[3] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

 

 

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