Ao ler o livro “Dama de Paus” da economista Eliana Cardoso, me deparei com um princípio constitucional muito aviltado nos últimos tempos, qual seja, a presunção de inocência. Ambientado na cidade de Pedra Bonita do Paracatu, noroeste de Minas nos anos 70, a obra narra a história de uma família influente que vivencia grandes tragédias humanas: um assassinato em defesa da honra e um suicídio.[1]
A personagem Flora é assassinada e quem vai a julgamento perante o Tribunal do Júri é o principal suspeito, seu esposo Lucas. Passado algum tempo, supõe-se que Flora teria sido assassinada por manter relações extraconjugais com Guy e ter sido descoberta pelo marido. Após isso, Lucas supostamente teria matado a esposa em um ato de legítima defesa da honra, tese muito acatada antigamente como algo que mitigava a culpabilidade do réu.
Antes dele ir a julgamento, os familiares de Flora acreditavam que Lucas era o responsável pela morte de Flora e após o julgamento dele pelo Tribunal do Júri, ele foi absolvido porque os jurados entenderam que não foi ele o autor do crime. Mas mesmo nessas condições, boa parte do habitantes da pequena cidade de Minas Gerais continuaram a acreditar que ele era o autor do delito.
Não é demais lembrar que estou citando um recorte de uma obra de literatura, mas a mesma guarda uma relação muito forte com a realidade a partir do momento em que o Direito e a literatura possuem uma interface digna de nota.
No dia a dia da Justiça brasileira assistimos ao esfacelamento da presunção de inocência, garantia esta prevista expressamente no texto constitucional, conforme a dicção do artigo 5º, inciso LVII da CF/88: “Ninguém será considerado culpado até transito em julgado de sentença penal condenatória”. Entretanto, este se apresenta como um dos princípios mais violados do ordenamento jurídico brasileiro.
Além do assento constitucional, o mencionado princípio também está fixado na Convenção Americana de Direitos Humanos no seu artigo 8.2 que estabelece: "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".
Basta lembrarmos que no Brasil, antes mesmo de se abrir o processo a opinião pública e a mídia exterminam a imagem do acusado. Temos antecipações de culpa, exibição de bodes expiatórios, dentre outros, mas não podemos esquecer que opinião pública e mídia não são fontes do direito.
Vale lembrar que o princípio em tela, também chamado de princípio da não culpabilidade, esquecido de há muito no cenário jurídico nacional se biparte em regra de tratamento e regra probatória. A primeira diz respeito ao acusado ser tratado como inocente e a segunda informa que o ônus da prova é da acusação.
Tais regras não são observadas em solo nacional. A uma porque nosso jeito de aplicar o processo penal é eivado de uma mentalidade inquisitória e a duas porque nunca fomos afeito ao cumprimento das regras advindas da lei e da constituição, nossas bússolas jurídicas.
Em tempos de pós-modernidade o processo penal se revela como um instrumento de punição imediata e como ferramenta de vingança pessoal, quando na realidade deveria se apresentar como uma forma de proteger o estado de inocência e maximizar os direitos e garantias fundamentais do acusado. As funções estão invertidas. É preciso organizar esse status quo.
Para quem ainda não leu o livro Dama de Paus, sugiro que leia imediatamente. É um livro vigoroso, bem estruturado e acima de tudo uma boa forma de entender melhor a condição humana e até mesmo certas questões jurídicas. Vale a pena passar vista d’olhos na obra. Boa leitura!
Notas e Referências
[1] CARDOSO, Eliana. Dama de Paus. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
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