A Pré - Sal Petróleo S.A e a tentativa de enrijecimento do monopólio estatal

24/06/2016

Por Guilherme Chamum Aguiar - 24/06/2016

De acordo com o art. 21 da Lei do Pré-Sal, a estatal Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) integrará o Consórcio de Exploração Petrolífero na condição de representante dos interesses da União no contrato de partilha de produção firmado. Assim, além da participação obrigatória da Petrobrás como operadora obrigatória da exploração, o Consórcio será composto também pela nova estatal, que participará do negócio mesmo sem fazer nenhum investimento ou assumir qualquer risco na atividade.

Nesse contexto, dentre as diversas novidades implementadas pela Lei nº 12.351 de 2010, uma das mais peculiares é a composição do Comitê Operacional do Consórcio que explorará o bloco. Ao referido Comitê caberá a administração do Consórcio e ele será composto por representantes da recém criada estatal Pré-Sal Petróleo S.A. - PPSA e dos demais consorciados – incluindo-se no consórcio sempre, é claro, a operadora obrigatória, Petrobrás.

No rol de atribuições do Comitê Operacional do Consórcio estão:

“I - definir os planos de exploração, a serem submetidos à análise e à aprovação da ANP;

II - definir o plano de avaliação de descoberta de jazida de petróleo e de gás natural a ser submetido à análise e à aprovação da ANP;

III - declarar a comercialidade de cada jazida descoberta e definir o plano de desenvolvimento da produção do campo, a ser submetido à análise e à aprovação da ANP;

IV - definir os programas anuais de trabalho e de produção, a serem submetidos à análise e à aprovação da ANP;

V - analisar e aprovar os orçamentos relacionados às atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção previstas no contrato;

VI - supervisionar as operações e aprovar a contabilização dos custos realizados;

VII - definir os termos do acordo de individualização da produção a ser firmado com o titular da área adjacente, observado o disposto no Capítulo IV desta Lei; e

VIII - outras atribuições definidas no contrato de partilha de produção.”[1] 

Caberá ao Comitê, em síntese, proceder todo o planejamento e a administração da exploração petrolífera, traduzindo-se em verdadeiro órgão diretivo do Consórcio formado.

Quanto à sua composição, a PPSA indicará metade dos integrantes do Comitê Operacional, incluindo o presidente - que terá poder de veto e também voto de qualidade no caso de empate em votações[2]. Como consequência, mesmo participando do Consórcio com 0% (zero por cento) de investimento, a nova estatal deterá, na prática, o controle operacional quase absoluto do empreendimento.

De fato, com base no modelo de contrato de partilha de produção elaborado para o Leilão do Campo de Libra[3], uma vez submetido o Plano de Avaliação de Descobertas ao Comitê, torna-se imprescindível a anuência da PPSA para a aprovação de qualquer proposta levada ao Comitê Operacional.

É de causar estranheza o fato de que uma empresa que não realizará investimento algum e, portanto, não correrá nenhum tipo de risco na empreitada, seja a responsável por tamanho peso nas decisões administrativas para a condução do projeto[4]. Isso porque, mesmo no já questionado caso da participação obrigatória da Petrobrás nos Consórcios na condição de operadora, é inegável que há uma cooperação técnico-econômica oriunda de sua integração ao Consórcio. A Petrobrás efetivamente arcará com parte dos investimentos do empreendimento e se encarregará de dar cabo à sua operação. A PPSA, por outro lado, não acrescentará absolutamente nenhum ganho ao Consórcio, mas apenas se encarregará de aumentar ainda mais a imissão estatal na exploração petrolífera.

Frise-se, a PPSA não investirá um centavo sequer no Consórcio, não exercerá qualquer atividade de caráter técnico ou gerencial relacionada à operacionalização da exploração ou da produção do petróleo, mas mesmo assim será a responsável pela tomada das decisões administrativas.

Ora, não suficiente a nova Lei obrigar a associação entre as empresas interessadas em explorar petróleo na área do Pré-Sal e a Petrobrás, o novo marco legal obriga também as empresas a integrarem em seu negócio uma nova estatal, mesmo sem qualquer contrapartida por ela realizada, delegando-lhe ainda a direção e a administração do empreendimento.

O excesso da intromissão estatal na atividade exploratória contratada com o particular se mostra em descompasso com os interesses coletivos.  Da mesma maneira que se verifica no caso da instituição da participação da obrigatória da Petrobrás nos Consórcios, a medida aqui em análise representa novo avanço em direção oposta à liberdade associativa e à liberdade de iniciativa, interesses públicos constitucionalmente eleitos. Querer obrigar os demais integrantes do Consórcio a acatarem decisões tomadas por um ente que não contribuirá com nenhum recurso no negócio, com o qual não houve nenhuma criação de afinidade comercial justificadora de seu ingresso na empreitada, bem como delegar a tal ente a condução do empreendimento, não parece se amoldar aos preceitos constitucionais, sobretudo em relação à livre iniciativa.

O papel do particular parece ser de mero ente financiador da atividade, ficando à mercê das decisões administrativas tomadas pela PPSA e das operações realizadas pela Petrobrás. Apesar de contratar o particular para a realização da atividade, a Administração, na prática, direciona para si a tomada das decisões gerenciais e a atividade exploratória strictu sensu, sendo meramente subsidiário o papel delegado aos integrantes privados do Consórcio. Ao fim, a Lei nº 12.351/2010 parece querer reinstalar um modelo exploratório semelhante ao existente antes da vigência da Lei nº 9.478/97, onde o monopólio estatal na exploração do petróleo era absoluto e concentrado nas mãos do Estado, mesmo que ao arrepio da livre concorrência e da isonomia de tratamento entre empresas estatais e empresas privadas na exploração de atividades econômicas[5].

Ademais, quando se passa a analisar especificamente as atribuições instituídas ao Comitê Operacional, há um ponto específico que anseia por uma análise mais detida. O inciso VI, art. 24, da Lei do Pré-Sal, supra, atribui ao Comitê controlado pela PPSA a supervisão das operações exploratórias e dos custos operacionais. Assim, além de dirigir o empreendimento, o Comitê será responsável também pela fiscalização das atividades. A incongruência é gritante.

Ao delegar ao Comitê Operacional a tarefa de fiscalizar as atividades que o próprio Comitê dirige e gerencia, a Lei do Pré-Sal cria uma situação de conflito de interesses totalmente evitável.

Em primeiro lugar, há um esvaziamento do papel do ente regulatório do setor, a ANP, a qual deveria ser a fiscal natural das atividades empreendidas no âmbito da exploração petrolífera. É evidente que a supervisão das atividades desenvolvidas pelo Consórcio contratado é própria da atividade reguladora do Estado, na medida em que busca a proteção aos interesses da coletividade na exploração de recursos púbicos[6].

Em segundo lugar, a fiscalização empreendida pelo próprio Comitê parece uma espécie de autofiscalização, uma vez que o órgão estará responsável por fiscalizar atividades dirigidas e gerenciadas por ele próprio, o que pode comprometer inclusive a lisura do processo. Além de a ANP ser tecnicamente mais apta e juridicamente responsável por desempenhar a função de ente regulador-fiscalizador, o fato de se encontrar em posição externa à atividade fiscalizada inevitavelmente aumenta o grau de confiança na isenção da supervisão.

Verifica-se uma mudança de instância decisória, no caso fiscalizatória, de um ente mais apto a agir de maneira isenta e técnica a um outro ente cujas capacidades parecem mais limitadas, o que leva a uma possibilidade real de perda de eficiência na atividade de supervisão, debilitando a efetiva regulação estatal por meio de fiscalização das atividades econômicas.

Os defensores da concentração da gestão da atividade nas mãos da PPSA alegam por, seu turno, a necessidade de se assegurar um melhor exercício do monopólio estatal sobre o petróleo, de modo a garantir o controle sobre o recurso com o fim de preservar a soberania nacional no setor[7]. Todavia, se é esse o objetivo por trás dessa participação impositiva da PPSA na gestão da atividade, não há dúvida que existem outras maneiras de se alcançar o mesmo fim de formas muito menos gravosas e ofensivas às liberdades associativa e de iniciativa, tudo com lastro na legislação já existente.

Em primeiro lugar, a Lei da PPSA estabelece que caberá à estatal a venda da produção, não seu armazenamento ou estocagem, uma vez que seu objeto é a gestão dos contratos para a comercialização de petróleo[8]. Assim, a produção continuará a ser vendida, sendo a PPSA responsável apenas pela gestão dos contratos de comercialização e não pela construção de reservas em óleo que visem garantir a soberania e estabilidade do mercado nacional.

Em verdade, se o objetivo é permitir que o Estado controle melhor as reservas de óleo no mercado interno, tendo, para isso, a propriedade do óleo para compor estoques que possam garantir o preço e o abastecimento no mercado nacional, seria suficiente e até mais eficaz que alterasse apenas a Lei do Petróleo para estabelecer que as participações especiais e royalties devidas à União sejam pagas em óleo.

Ademais, no modelo geral de concessão, caso seja preciso efetuar o controle dos estoques e a estabilização da produção petrolífera nacional, já há mecanismos para a garantia da soberania nacional por meio da diminuição das exportações do recurso, seja via previsão contratual, via Lei do Petróleo ou via ANP.

Também em relação ao controle de estoque interno do petróleo com o objetivo de estabilizar preços e o abastecimento do mercado nacional, o próprio CNPE, responsável pelo estabelecimento das diretrizes do Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis, pode impor ao concessionário, via ANP, que disponha do petróleo produzido em consonância com as necessidades de consumo interno constatadas.

Ainda quanto à garantia da soberania nacional no que tange ao consumo de petróleo, desde a 1ª Rodada de Licitações da ANP constam nos contratos de concessão que, uma vez declarada a necessidade emergencial de limitar exportações de petróleo para garantir o consumo interno, basta que a ANP notifique por escrito e com antecedência de 30 (trinta) dias o concessionário para que seja determinado que ele atenda às necessidades do mercado interno ou de composição de estoques estratégicos com o petróleo produzido.

Assim, observa-se que a suscitada necessidade de garantia da soberania nacional por meio de maior controle das reservas de petróleo poderia ser muito bem atendida por simples reformas legislativas que determinem o pagamento de royalties e participações em óleo, bem como pela atuação do CNPE e da ANP em respeito ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e na elaboração dos contratos, não sendo necessária a criação de um novo regime jurídico com esse fim.

O que se verifica é uma opção legislativa com vistas a fortalecer os mecanismos de intervenção e controle da atividade pelo aparato administrativo, mesmo que impliquem em distanciamento dos interesses da coletividade. Não há uma persecução do interesse público democraticamente constituído, mas sim uma busca dos interesses administrativos eleitos pelos detentores da Máquina Pública, o que não se coaduna com nosso paradigma estatal e significa real retrocesso no atual modelo regulatório.


Notas e Referências:

[1] Art. 24 da Lei nº 12.351/2010

[2] Art. 25 da Lei nº 12.351/2010

[3] Disponível em http://www.brasil-rounds.gov.br/arquivos/Edital_p1/Contrato_autorizado_030913.pdf, p. 104-105. Acessado em 23/11/2015.

[4] CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer em consulta formulada pela Associação Brasileira das Agências Reguladoras, 2009. Disponível em http://www.abar.org.br/images/descricao_pareceres/parecer-pre-sal.pdf. Acessado em 08/11/2015.

[5] FERREIRA, Antônio Luís de Miranda. Problemas e inconsistências jurídicas do novo marco regulatório: a ótica dos princípios constitucionais da livre iniciativa, da economia de mercado e do direito comercial. In GIAMBIAGI, Fábio e LUCAS, Luiz Paulo Vellozo (Organizadores). Petróleo: reforma e contrarreforma do setor petrolífero brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013 p. 179-199.

[6] ARANHA, Márcio Iório. Manual de Direito Regulatório: fundamentos de Direito Regulatório. Londres: Laccademia Publishing, 2015, 3ª edição p. 3.

[7] Exposição de motivos do Projeto de Lei nº 5.938/2009. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=6E84F8FA7179896F49B35C83D704F1FD.proposicoesWeb1?codteor=686063&filename=PL+5938/2009, p. 19-20. Acessado em 23/11/2015.

[8] Art. 2° da Lei nº 12.304/2010.


Guilherme Chamum Aguiar. Guilherme Chamum Aguiar é Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, é integrante da Comissão de Relações Internacionais da OAB/DF e membro do Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia - IBDE. Advogado em Brasília associado ao escritório Souza Neto & Sena Advogados. .


Imagem Ilustrativa do Post: Plataforma de Petróleo na Baia de Guanabara. // Foto de: Marinelson Almeida - Traveling by Brazil // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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