A possibilidade de execução da sentença meramente declaratória - Por Gustavo de Melo Vicelli

03/11/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

Proposta Ação Declaratória de Inexigibilidade de Débito, alega a parte Autora não ter mantido relações comerciais que justifiquem a cobrança realizada. Citada, a parte Requerida, em contestação, junta aos autos prova documental, a qual comprova a relação jurídica entre as partes e a origem do débito cobrado.

Desta forma, esgotada a fase probatória, é prolatada sentença de total improcedência, reconhecendo-se o débito e declarando-o exigível por parte da Requerida.

Sobrevindo o trânsito em julgado da referida decisão, pretende a Requerida ingressar automaticamente com o Cumprimento de Sentença, requerendo a intimação da Requerente para pagamento do débito, nos termos do artigo 523 do CPC/15.

No entanto, questiona-se: é realmente possível a executoriedade de sentença meramente declaratória? Não seria necessário que o Réu, no ato da apresentação de sua contestação, formulasse pedido reconvencional neste sentido?

A controvérsia do presente tema refere-se sobre a inclusão da sentença declaratória no rol dos títulos executivos judiciais.

Considera-se título executivo como “ato ou fato jurídico indicado em lei como portador do efeito de tornar adequada a tutela executiva em relação ao preciso direito a que se refere” [1].

Desta forma, há de se verificar que, além da expressa previsão legal dotando o documento de força executiva, é indispensável que estejam presentes os requisitos da exigibilidade e certeza. Explico:

A exigibilidade de uma determinada obrigação se traduz pela possibilidade de se demandar, ainda que coercitivamente, o cumprimento da obrigação, ou seja, decorre da inexistência de qualquer outra condição/termo que impeça a satisfação por parte do credor. A certeza, por sua vez, confere legitimidade à obrigação, garantindo a existência da obrigação e do título executivo, bem como da sua validade.

A liquidez, contudo, não se apresenta como um dos requisitos imprescindíveis para a formação do título executivo e início da fase executória, tendo em vista que a sua ausência poderá ser suprida por uma prévia fase de Liquidação de Sentença e apuração do quantum realmente devido.

Tais conceitos e requisitos devem ser aplicados tanto sobre os títulos judiciais, como em relação aos extrajudiciais.

No que diz respeito aos títulos judiciais, quando analisados superficialmente, automaticamente nos remete a ideia das sentenças condenatórias – título executivo por excelência. No entanto, quando transportada à ideia para outras manifestações judiciais (decisões interlocutórias, v.g.) ou para as sentenças meramente declaratórias, o tema mostra-se controvertido, alvo de debates ainda na vigência do CPC/73.

Originalmente, o CPC/73 previa em seu artigo 584, inciso I, que apenas a "sentença condenatória proferida no processo civil" seria classificada como título executivo judicial. Tal previsão delimitava não apenas ao tipo de pronunciamento judicial exarado (sentenças, especificamente), mas como também em relação ao seu tipo.

Assim, a promoção de atos executivos estava adstrita às sentenças condenatórias, sendo que os demais tipos de sentenças esgotavam seu poder jurisdicional em si, não formando título hábil para atos executórios, necessitando, portanto, de uma nova ação de cunho condenatório especifica para tal fim.

Após a grande reforma da Lei 11.232/05, o CPC/73 substituiu a redação supracitada pelo artigo 475-N, inciso I, o qual ampliou o leque de abrangência para além das sentenças condenatórias, considerando como título executivo judicial qualquer “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”.

Com isso, a nova redação, supostamente, estendeu às sentenças declaratórias e constitutivas o poder executório. No entanto, tendo em vista a imprecisão da redação do referido artigo e frente às discussões doutrinárias sobre o tema, Teori Zavascki defendeu a sua exequibilidade, sendo, à época, pioneiro em seu entendimento, afirmando que:

Pode-se sustentar que, em nosso atual sistema, quando a sentença, proferida em ação declaratória, trouxer definição de certeza a respeito, não apenas da existência da relação jurídica, mas também da exigibilidade da prestação devida, não haverá razão alguma, lógica ou jurídica, para negar-lhe imediata executividade. [2]

Para tanto, Zavascki apresentou como principais argumentos: a) que a tutela jurídica decorre naturalmente da sentença, independente da existência de pedido reconvencional, uma vez que "o julgamento de mérito importará necessariamente um juízo de certeza sobre a existência ou sobre a inexistência da obrigação"; b) admite-se como título executivo extrajudicial o documento particular assinado pelas partes e por duas testemunhas, de modo que a utilização de uma sentença judicial não poderia carecer de força executiva, sob pena de atentar contra a lógica processual.

Dado o ganho de força da teoria sustentada por Zavascki ao longo dos anos, o CPC/15 inovou ao disciplinar o tema em seu artigo 515, inciso I, de modo que relaciona os títulos executivos judiciais como “as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”.

Comparando rapidamente a redação dos artigos correspondentes (art. 515, I do CPC/15 x art. 475-N do CPC/73), verifica-se que a diferença reside justamente na substituição da palavra “sentença” por “decisão” e “existência” por “exigibilidade”. [3]

Desta forma, o que o CPC/15 trouxe foi a atribuição da exequibilidade não apenas às sentenças (ampliativamente), mas também a qualquer decisão judicial que reconheça a obrigação, possibilitando, portanto, o cumprimento provisório da obrigação.

Isto posto, reportando à situação fática trazida inicialmente, fica o seguinte questionamento: o CPC/15 reconhece expressamente como título executivo decisões que reconheçam a exigibilidade de uma determinada obrigação. No entanto, tal reconhecimento englobaria também as sentenças meramente declaratórias?

Sobre o referido assunto, Fredie Didier leciona que:

Obtida a certificação do direito a uma prestação com todos os seus elementos, o vencedor já pode executar a decisão. Não é necessário propor outra demanda cognitiva, em que o juiz estaria vinculado ao efeito positivo da coisa julgada e, por isso, não poderia rever a questão decidida. [...] Reconhecido o direito a uma prestação, com a certeza e a exigibilidade da obrigação, e estando liquido o valor, há se deve permitir a execução. Não havendo, ainda, liquidez, será necessária, antes de se instaurar a execução, uma liquidação de sentença, nos termos no artigo 509 a 512 do CPC. [4]

Assim, verifica-se que a executoriedade da decisão está, na verdade, atrelada a verificação dos requisitos formais de constituição do título executivo, ou seja: exigibilidade e certeza. Deste modo, verificando o dever de contraprestação na decisão, esta deverá ser estendida a qualquer pronunciamento judicial.

Ademais, grande parte da jurisprudência também vem se posicionando neste sentido, conforme se verifica nos recentes julgados:

Cumprimento de sentença declaratória. Título judicial. Decisão recorrida que não consentiu com a execução das duplicatas nos autos da ação declaratória de inexigibilidade de títulos julgada improcedente. Possibilidade. Inteligência do artigo 515, inciso I, do CPC. Precedentes do STJ. Decisão reformada. Recurso provido. (TJ-SP - AI: 22235496520168260000 SP 2223549-65.2016.8.26.0000, Relator: Sérgio Rui, Data de Julgamento: 06/04/2017, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 12/04/2017) – grifo nosso.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação indenizatória. Pedido de compensação por danos morais decorrentes de apontamento indevido nos cadastros de restrição. Sentença de improcedência transitada em julgado. Decisão que indeferiu o pedido de deflagração da fase de cumprimento da sentença para haver o crédito do réu. Manutenção. Não se olvida da possibilidade de que, na forma do art. 515, I, combinado com art. 523, do CPC, seja dado o cumprimento de sentença declaratória, ocorre que, para tanto, é necessário que a sentença a ser executada estabeleça objetivamente a obrigação e seus limites, o que não ocorreu no caso. Recurso a que se nega provimento. (TJ-RJ - AI: 00063198620178190000 RIO DE JANEIRO CAPITAL 24 VARA CIVEL, Relator: JOSE ROBERTO PORTUGAL COMPASSO, Data de Julgamento: 14/03/2017, NONA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 16/03/2017) – grifo nosso.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO JULGADA IMPROCEDENTE - PRETENSÃO DE COBRANÇA DO TÍTULO NA MESMA DEMANDA - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO PARA DECLARAR A IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO À FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, A QUAL APENAS JULGOU IMPROCEDENTE A AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE TÍTULO. IRRESIGNAÇÃO DA DEMANDADA. 1. Em razão das alterações legislativas do Código de Processo Civil, principalmente a que acrescentou o art. 475-N, esta Corte posicionou-se no sentido da possibilidade de execução de sentença declaratória, desde que tenha conteúdo condenatório, a fim de que seja privilegiado o princípio da efetividade. 2. Tal matéria já foi objeto de decisão por esta Corte, por ocasião do julgamento do REsp. 1.192.783/RS, de relatoria do Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 4.8.2011, de 15.8.2011, submetido à sistemática dos recursos repetitivos. Naquele julgado, firmou-se o entendimento no sentido de que a decisão proferida no processo civil que reconhece a existência de dada obrigação de pagar é título executivo hábil a fundar pedido de cumprimento de sentença. 3. No caso dos autos, todavia, verifica-se que a sentença em questão apenas julga improcedente pedido declaratório de inexistência de débito, e não pedido de reconhecimento de obrigação. 4. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1575347/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 23/08/2016, DJe 30/08/2016) – grifo nosso.

No entanto, conforme anteriormente salientado, trata-se de tema ainda controvertido, de modo que muitos dos notórios doutrinadores adotam posicionamento contrário.

Para Cassio Scarpinella Bueno, por exemplo, o termo “exigibilidade” constante na redação do artigo 515 do CPC/15 veio, na verdade, corrigir e esclarecer o equivocado pensamento da constituição de título executivo pelas sentenças declaratórias:

[...] permitiu que setores da doutrina construíssem o pensamento de que “sentenças declaratórias” pudessem constituir título executivo. Isto, contudo, nunca foi correto. Se a sentença limita-se a reconhecer a existência do direito, nada falando sobre a sua exigibilidade, título executivo não é. [5]

No mesmo sentido, dispõe Araken de Assis:

É errônea a ideia, aí inculcada, de que a eficácia declarativa passou a outorgar pretensão a executar. [...] o art. 515, I, não conferiu pretensão a  executar a declaração. Se o provimento reconhece a "exigibilidade" -  expressão errônea, em todo o caso, pois a exigibilidade pode surgir posteriormente [...].Se o réu pretende algo mais do que a certeza da declaração  intrínseca ao juízo de improcedência, necessitará pedir por meio da reconvenção, razão por que o juiz acolhe ou rejeita os pedidos das partes (art. 490 c/c art. 487, I). No caso da improcedência da pretensão à revisão contratual, limitando-se o réu a resistir, ficará com o contrato, eventualmente título extrajudicial, mais a certeza que as cláusulas impugnadas não se ostentam inválidas. [6]

Desta forma, verifica-se que, mesmo após a discussão do tema por diversos anos, o tema ainda mostra-se extramente controvertido.

Coadunamos, contudo, com o antigo posicionamento sustentado pelo Teori Zavascki, de modo que presentes os requisitos imprescindíveis para a caracterização do título executivo (certeza e exigibilidade da obrigação), e tendo o CPC/15 outorgado força executiva aos documentos particulares e demais decisões judiciais, não há razão para se recusar exigibilidade à sentença judicial meramente declaratória, a qual, inclusive, encontra-se estabilizada e acobertada pela coisa julgada.

O ponto central da questão, portanto, é que, ainda que se tratem de sentenças meramente declaratórias, estas são dotadas de executoriedade, uma vez que há o reconhecimento da existência do dever de prestação por uma das partes.

No que diz respeito especificamente ao exemplo citado (improcedência da ação declaratória de inexigibilidade), há exatamente a constatação da referida situação, uma vez que julgar improcedente o mérito, fundamenta-se no fato da existência da relação jurídica entre as partes e na legitimidade da cobrança, admitindo, portanto, ainda que implicitamente, seu dever de prestação. Tais efeitos, naturalmente, aplicam-se às demais ações meramente declaratórias, desde que, conforme visto, estejam presentes os requisitos da exigibilidade e certeza.

Em suma: as sentenças meramente declaratórias que atendam a esses requisitos e, portanto, estampem o dever da prestação de uma das partes, podem gozar de executoriedade e servirem diretamente como título executivo judicial, sem prejuízo de uma prévia fase de liquidação, caso necessário.

Ademais, não podemos nos esquecer de que o CPC/15 estampa no rol das Normas Fundamentais do Processo Civil[7] a primazia pela busca da celeridade e efetividade processual, corroborando, portanto, a adequação do nosso entendimento à nova sistemática processual e à sua finalidade pretendida.


[1] Dinamarco, Cândido Rangel, Execução Civil – 5ª Edição – São Paulo, Malheiros, 1997, p.208.

[2] ZAVASCKI, Teoria Albino. Processo de execução: parte geral, 3ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 312.

[3] Art. 475-N – CPC/73. São títulos executivos judiciais: I - a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia.

Art. 515 – CPC/15.  São títulos executivos judiciais [...]: I - as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa.

[4] Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: execução / Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira – 7. Ed. rev. Ampl. E atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.

[5] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 383.

[6] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro: manual da execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 25. Disponível em: <https://www.passeidireto.com/arquivo/34449338/manual-da-execucao---de-acordo-com-o-ncpc---araken-de-assis>. Acesso em: 22 out. 2017.

[7] Capítulo I do CPC/15 – artigos 1º ao 10.

 

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