A POSITIVIDADE TÓXICA É O ETHOS DO NEOLIBERALISMO BIG TECH

29/10/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Segundo a OMS, domingo passado foi o dia mundial da visibilidade da Saúde Mental. Na coluna de hoje, gostaria de estabelecer relações sobre o impacto da pandemia e as questões levantadas no depoimento prestado por uma ex-funcionária sobre atuações desleais por parte do Facebook. Em entrevista, revela dossiês relatando a ciência da empresa sobre os prejuízos de dismorfia corporal causados desde muito cedo entre os jovens e crianças. Eles são expostos precocemente à vulnerabilidade de novas tecnologias pelos próprios pais e familiares, tentando suplementar as demandas de cuidado e atenção. Sobre as formas de indução sensorial do prazer e de mecanismos de recompensa, causam dependência química aos usuários de várias idades. Especialmente, encara como a violência e as intolerâncias (seja política, religiosa, étnica) lucram feito “água”, ao decidir o resultado das eleições em vários países do mundo à distância, controladas por qualificadas empresas de publicidade no Vale do Silício.

Mas, e porque o uso das Big techs deveria ser motivo de preocupação para nós, já que o alto desenvolvimento tecnológico impulsiona radicalmente o desenvolvimento interno dos países, gerando benefícios científicos universais? É uma pena que os propósitos políticos das big techs usem suas qualidades para criar um “Estado de Bem Estar Digital” privatizado, ao flexibilizar leis anti monopolistas com a cumplicidade dos governos, e privatizar serviços ligados à promoção de bem estar social aos mais pobres, como tecnologias voltadas à saúde transporte e educação. A maior parte das ferramentas que utilizamos diariamente é fornecida de maneira livre. Mas, o que eles não nos contam, é que há espionagens e uma captura diária de nossos dados, usados para o aperfeiçoamento de outras formas de acumulação. Essa prática é conhecida como colonização digital.

Para cada comprovação dessas alegações, há efeitos discretos de mobilização social pelo simples fato de que não restam muitas opções a fazer. O mercado mundial é dividido em cinco grandes empresas de tecnologias como Amazon, Apple, Google, Facebook e Microsoft. Não há como barganhar por liberdade de uso. Não há negociação referente a critérios de coleta maciça de dados informacionais. É evidente que a hiper concentração do mercado também causa danos na exploração do trabalho e na demanda, cada vez maior, por serviços baratos de tecnologia. Por outro lado, não deveríamos duvidar da generosidade dessas grandes empresas em manter plataformas de serviços gratuitos e benefícios especiais para todos?

Os efeitos na ordem social também são perceptíveis, quando nos sentimos "fora da bolha" por não estar conectado aos conteúdos de maior destaque das redes sociais. Esse estranhamento acontece geralmente quando nos desconectamos temporariamente desses espaços de convivência do igual[1]. Isso explica o sucesso dos lançamentos de streaming, como a série Round 6, assistida por mais de 111 milhões de pessoas. A popularização de conteúdos de mídia interativos, como memes e dancinhas dos tiktoker já lideraram a forma como a publicidade vem sendo explorada por algumas marcas, a ponto de misturar propaganda com conteúdo dirigido ao entretenimento e ao consumo, simultaneamente. 

Hoje em dia, é quase impossível abster-se do uso profissional das redes como ferramenta de mercearia do eu-digital. À exemplo, elas têm um papel crucial em preparar um ambiente geográfico de segregação sistêmica, de concorrência pessoal e de constantes celebrações  de resiliência, e histórias de positividade tóxica. Nesse sentido, já se fala em um conceito da psicopatologia chamado FOMO ou “Fear of Missing Out”. Podemos entendê-lo como medo ou insegurança constante de ficar de fora das últimas atualizações tecnológicas, das notícias, de novas ferramentas digitais. É o medo do “não enquadramento social”, de sentir-se atrasado ou desatualizado em relação às melhores oportunidades. De certa maneira, sem generalizações simplistas, todos nós padecemos em diferentes graus e sintomas pela cultura pop digital. Ela está além do nosso horizonte de controle emocional, praticando mindfulness!

Quando por falhas técnicas o Whatsapp e o Facebook saem do ar, experimentamos um fenômeno rigoroso de desorientação coletiva. Um estado de imobilização social que nos atordoa. Parece contraditório, mas quando finalmente experimentamos um período de descanso forçado da “hiper comunicação” onde não há pausas. O tempo da comunicação nos devora, mas quando ele cessa, permanecemos inertes e, sentimo-nos solitários

Com a pandemia, os distúrbios psicológicos tendem a manifestar-se sensivelmente na corporalidade dos trabalhadores. Basta olhar a dinâmica do teletrabalho e as manifestações físicas e mentais de esgotamento pelo excesso de conectividade. Estafa; exaustão; problemas de visão; culto a performatividade radical, inter relações pessoais, laborais e tecnológicas que se confundem e se mimetizam nos afetos.. Na saúde mental, é epidêmico o número de doenças e transtornos como o Burnout, depressão, Déficit de atenção, entre outros. Trata-se de conceber o corpo como laboratório, e, em nome da razão neoliberal, levá-lo ao auge dos seus limites físicos. É a sociedade do cansaço[2] testando os seus limites sobre as subjetividades.

Desacelerar não é uma opção. Não faz parte de uma cura. O culto à eficiência traz prejuízos irreparáveis não só à saúde mental, mas à identidade, à subjetividade e às formas de produção de gênero e a sexualidade, reprivatizadas no neoliberalismo digital. Hoje em dia, é quase impossível abster-se do uso profissional das redes. No entanto, a acessibilidade experimentada na internet não representa uma mudança substancial na inclusão, de maneira real, às subculturas. À exemplo, a vida para pessoas com deficiência, pessoas queer, mulheres cis pretas, gays, pessoas trans no mercado de trabalho. São corpos distantes de uma leitura de gênero voltada ao enquadramento. Aliás, o espaço das redes passa a ser uma vitrine de acesso a essas corporalidades expostas. A curiosidade sobre a diferença também gera entretenimento e mal estar, além de oferecer pérfidas noções de inclusão digital e, também, de discursos de ódio carregados de discriminação.  

Construir-se implica em uma certa forma de trabalho ligado ao corpo e aos signos que demarcam o percurso histórico de tolerância no espaço público. Ou seja, esses processos de subjetivação capitalista implicam em capturas neoliberais e em formas de apropriação dessas práticas de dissidência. Isso, por sua vez, organiza novas formas de construir o gênero e a diferença sobre as bases empresariais da ideologia neoliberal. A diversidade, nesse sentido, vale muito em termos econômicos para quem lucra com as redes. Na prática, mantém pessoas em permanente manutenção de espaços digitais vinculados à própria dor, a  experiências de medo e segregação no mercado de trabalho, na sexualidade e em outros espaços. Nesse sentido, questionar a “política da inclusão”  e a “representatividade” nas redes sociais não é o mesmo que recusar a sua importância. Há uma sensação de empobrecimento da diversidade pela gestão empresarial da positividade neoliberal.. Busca-se alcançar prosperidade de uma “economia da reputação“, construída a partir da imagem comercial das minorias.

Me parece que a preocupação maior esteja em preparar ideologias capacitistas para a produtividade e para um exibicionismo que não questiona a extensão do espaço que esse corpo tensiona. O conhecimento é essencial para o desempenho, tanto quanto a eficiência está para o trabalho. A inclusão, nesse sentido, significa incluir mais corpos baratos para explorar (Pinkwashng e Blackwashing). Mas, e as outras necessidades que vão além dos valores protestantes sobre o trabalho: o corpo-protestante, o corpo-fordista, o corpo-queer, o corpo-ciborgue, que existem antes, e não como valor-utilidade? Tornar-se influencer é ocupar um lugar e fazer disso um trabalho, quando não há, de fato, opções.

Nos comportamentos, em geral, é perceptível uma racionalidade regressiva. O narcisismo como camada permeável que filtra ruídos indesejáveis na comunicação: a precipitação pela falta de tempo, molda as nossas relações, nossos hábitos e as formas de interação simplificada, em todas as plataformas virtuais e reais de convívio. A busca é pela solução do mal estar e não pelas causas comuns.. Não negamos o uso compulsivo das redes, a dependência do celular, embora as tratemos com enorme condescendência. A própria produção de identidades e racionalidades sobre o digital se associa ao trabalho e a formas de consumo e mercado para gerar lucro. A perda da moderação no uso das redes é o grande negócio das tecnologias big data. Eles são os maestros que fazem a regência dos conteúdos que acessamos diariamente. Numa composição algorítmica, acelera-se a regência do processamento de dados em razão das nossas demandas por alta eficiência e por excesso de estímulos.

Para cada agência de interesses existe uma rede com prioridades intercambiáveis. A única ligação entre elas é apostar em criar conteúdo informativo totalmente baseado nos mandamentos da positividade tóxica. Independentemente qual seja o assunto a tratar, sejam crises de escassez (hídrica, ambiental, institucional, governista, a-científicas e mundiais), haverá um olhar empático irradiando a luz quântica do pensamento positivo que pode ser miraculosa. Acreditem! Se no medievo, aceitar a precariedade da vida como castigo divino era o comportamento moral mais desejável por Deus, na época atual, a espiritualidade cede espaço para autenticar as práticas da positividade tóxica. “Viralizar na abundância”, na linguagem influencer, é positivar mentalmente o discurso para chamar bonanças - pelo menos no plano do pensamento – é possível sublimar a existência da miséria, da pobreza, do desemprego e a destruição do planeta.

É fingindo que tais condições não existem, para a maior parte dos brasileiros, que a gente passa a existir como resto, como demanda. Como fórmula de lucro com o sofrimento, e, assim, extrapolar a desigualdade e o conformismo com o país. É fingindo que tais condições são de nossa responsabilidade individual pelo excesso de negativismos  - e, por isso nos afetam -  que a gente passa a existir precariamente. Digo isso porque a não essencialidade ética sobre muitas vidas perdidas, vai fazendo a regra do comum no futuro das relações políticas e digitais. E, com isso, uma economia controlada por anúncios virtuais, dona da sua própria teoria da verdade.

 

Notas e Referências

[1]DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015.

[2] HAN, Byung-Chul. A Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MOROZOV, Every. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política.; traduzido por Eduardo Marcondes. São Paulo: Ubu editor, 2018. 

 

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