A POLÍTICA ANTIMANICOMIAL DO PODER JUDICIÁRIO E A NOVA RESOLUÇÃO 487/23 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ

16/03/2023

Por meio da recente Resolução n. 487, de 15 de fevereiro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ Instituiu a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, por meio de procedimentos para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, e conferiu diretrizes para assegurar os direitos dessa população.

A nova Resolução estabeleceu, inegavelmente, uma mudança profunda no sistema de tratamento das pessoas com transtornos mentais ou com qualquer forma de deficiência psicossocial, adequando o arcabouço normativo brasileiro, no âmbito penal e processual penal, às convenções internacionais das quais o Brasil se tornou signatário, às disposições da Lei n. 10.216/01 (que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental), à Lei n. 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), instituída por meio da Portaria Interministerial n. 1/2014, dos Ministérios da Saúde e da Justiça, bem como a Portaria n. 94/2014, do Ministério da Saúde, que instituiu o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Vale lembrar que, de acordo com o disposto no Código Penal e na Lei de Execução Penal, a medida de segurança é uma espécie de sanção penal imposta pelo Estado aos inimputáveis (art. 26, “caput”, do CP) visando a prevenção do delito, com a finalidade de evitar que o criminoso que apresente periculosidade volte a delinquir. Enquanto o fundamento da aplicação da pena reside na culpabilidade, o fundamento da medida de segurança reside na periculosidade do sujeito, ou seja, na potencialidade de praticar ações lesivas. Os pressupostos de aplicação das medidas de segurança, portanto, são: prática de fato descrito como crime, periculosidade do sujeito e ausência de imputabilidade plena.

Para a aplicação da medida de segurança, deverá o réu ser submetido a processo regular, sendo-lhe observadas todas as garantias constitucionais. No final do processo, em fase de sentença, o juiz deverá, tratando-se de inimputável, absolvê-lo, impondo-lhe medida de segurança, que poderá consistir em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou em tratamento ambulatorial.

Embora a nova Resolução cuide de diversos aspectos relacionados ao tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam inseridas no âmbito da Justiça Criminal, a extinção dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) e a abolição da medida de segurança de internação, como prevista nos moldes atuais, foi o que mais nos chamou a atenção.

Ao tratar da medida de segurança, no art. 11, a Resolução dispõe que, na sentença criminal que imponha medida de segurança, a autoridade judicial determinará a modalidade mais indicada ao tratamento de saúde da pessoa acusada, considerados a avaliação biopsicossocial, outros exames eventualmente realizados na fase instrutória e os cuidados a serem prestados em meio aberto. A autoridade judicial levará em conta, nas decisões que envolvam imposição ou alteração do cumprimento de medida de segurança, os pareceres das equipes multiprofissionais que atendem o paciente na Raps (Rede de Atenção Psicossocial), da EAP (Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei) ou outra equipe conectora (equipe vinculada ao Sistema Único de Saúde que exerça função análoga à da EAP).

Ainda de acordo com a Resolução, a medida de tratamento ambulatorial será priorizada em detrimento da medida de internação e será acompanhada pela autoridade judicial a partir de fluxos estabelecidos entre o Poder Judiciário e a Raps, com o auxílio da equipe multidisciplinar do juízo, evitando-se a imposição do ônus de comprovação do tratamento à pessoa com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial. O acompanhamento da medida levará em conta o desenvolvimento do PTS (Projeto Terapêutico Singular) e demais elementos trazidos aos autos pela equipe de atenção psicossocial, a existência e as condições de acessibilidade ao serviço, a atuação das equipes de saúde, a vinculação e adesão da pessoa ao tratamento.

Já a imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS, enquanto necessárias ao restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da Raps. Nesses casos, a internação será cumprida em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou equipamentos congêneres, assim entendidas aquelas sem condições de proporcionar assistência integral à saúde da pessoa ou de possibilitar o exercício dos direitos previstos no art. 2º da Lei n. 10.216/01.

Ressalte-se que, de acordo com a Resolução, o criminoso com transtorno mental não poderá mais ser internado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

E mais, de acordo com a Resolução, deverão ser proporcionadas ao paciente em internação (leia-se: um criminoso que foi regularmente processado, julgado e condenado), sem obstrução administrativa, oportunidades de reencontro com sua comunidade, sua família e seu círculo social, com atividades em meio aberto, sempre que possível, evitando-se ainda sua exclusão do mundo do trabalho, nos termos do PTS (Projeto Terapêutico Singular).

A Resolução ainda determina que, no prazo de até 6 (seis) meses, contados a partir da sua entrada em vigor, a autoridade judicial competente deverá revisar os processos a fim de avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso (internação), progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado.

E acabando de vez com os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, a Resolução estabelece que, no prazo de 6 (seis) meses contados da sua publicação, a autoridade judicial competente determinará a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a partir da sua entrada em vigor, a interdição total e o fechamento dessas instituições.

A situação nos parece deveras preocupante.

Não obstante os nobres e defensáveis propósitos que orientaram o Conselho Nacional de Justiça, acreditamos que as providências impostas pela Resolução n. 487/23 serão de difícil aplicação em tão curto prazo no Brasil, ainda mais considerando as características e deficiências regionais de cada parte do nosso extenso território, aliadas à situação lamentável do combalido sistema de saúde pública, que mal suporta a demanda atualmente existente de grande parte da população carente, que sofre com a falta de hospitais, de leitos de internação, de cirurgias e tratamentos mais complexos, de unidades de pronto atendimentos, de profissionais da saúde e de medicamentos.

Interditar totalmente e fechar os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, portanto, não nos parece a melhor solução, pelo menos da forma anunciada na nova Resolução.

Acreditamos que seria mais adequado que as importantes e impactantes novidades trazidas ao sistema penal e processual brasileiro de tratamento ao criminoso portador de transtornos mentais não tivessem vindo a lume por meio de uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça. Melhor seria tivessem sido precedidas de amplo debate envolvendo não apenas os diversos setores da sociedade civil, como também os demais integrantes do Poder Judiciário, em seus vários níveis, assim também o Ministério Público, as Polícias e a Advocacia. E, a final, atingido o ponto de maturação, fosse a matéria votada e aprovada pelo Poder Legislativo, transformando-se em lei, instrumento legítimo de concretização da vontade popular em um Estado Democrático de Direito.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Brasília, DF - 15/12/2020 -Assinatura de termo de cooperação técnica CJF e CNJ. // Foto de: Superior Tribunal de Justiça STJ // Sem alterações

 

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