A polícia como antipolítica

26/05/2016

Por Lucas e Silva Batista Pilau - 26/05/2016

Fundamental em se tratando de interrogar o candente assunto policial é relacionar as suas atuais funções repressivas com aquelas que surgem no século XVII, mais especificamente sua operacionalidade no modelo político-democrático brasileiro. Se podemos fincar e devemos entrelaçar política e diálogo como momentos necessários para o aperfeiçoamento democrático, a atuação da polícia como estratégia de repressão e segurança vai exatamente em sentido contrário: delimitam-se espaços (para manifestar, para viver...) que parecem buscar resultados através de uma forma social antipolítica por excelência.

Se num primeiro momento, séculos XV e XVI, a palavra polícia conotava três sentidos – as comunidades que eram regidas por autoridades públicas, os atos emanados por autoridades públicas e os regimentos associados à maneira de governar – é a partir do século XVII que essa conotação muda. A polícia passa a ser o esplendor do Estado, tendo como função principal fazer crescer suas forças ao mesmo tempo que mantém a ordem interna. “A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento das suas forças[1].

A polícia, então, possuía funções amplas funções na arte de governar, preocupando-se com os jovens, com o comércio, com a caridade, com a saúde pública, com os bens, e constituindo-se como uma função inerente do Estado, junto da justiça, do exército e das finanças[2]. Servia como instituição que agia sobre o corpo dos indivíduos para que as disposições do poder soberano e dos aparatos disciplinares emanados à sociedade funcionassem: desde o sistema antiescassez até a segregação (definitiva ou provisória) de pessoas consideradas doentes, tendo também como forma de aplicação da disciplina (e docilização de corpos) no meio prisional. O objetivo da polícia, em suma, era o controle e a responsabilidade pelas atividades dos homens, já que essas atividades poderiam constituir um diferencial no desenvolvimento das forças do Estado[3].

É interessante notar que a polícia não é o soberano agindo através da justiça, mas sim diretamente sobre seus súditos, através de decretos, regulamentos, proibições e instruções. Não se trata do prolongamento da justiça. Trata-se, isso, da governamentalidade do soberano como soberano: um golpe de estado permanente, agindo em nome e em função de princípios com racionalidade própria, sem se moldar ou modelar pelas regras estabelecidas pela justiça[4].

No entanto, a partir das teses dos economistas do século XVII, um novo saber é introduzido (economia política) e passa-se a ver uma natureza modificável na população, não havendo mais necessidade de que tudo seja regulado – do sistema de escassez às doenças, como descrito, entre outros elementos trazidos por Foucault[5]. A liberdade, que vai do comércio às cidades, passa a ser introduzida como elemento essencial para a arte de governar a partir de mecanismos de segurança. Por óbvio, uma liberdade artificial, organizada, regulada e fabricada a cada instante[6]. Portanto, não se busca mais a regulação dos indivíduos, mas a gestão da população[7].

Nessa virada, a função da polícia, que antes era de regulamentar tudo, como já exposto, passa a ser, nessa nova governamentalidade, a de eliminar as possibilidades de que se produzam certas desordens[8], assim como constituidora de um saber em torno daqueles capturados por suas redes[9]. O antigo projeto de polícia, vinculado à regulamentação da vida, se desarticula e a repressão das desordens passa ser sua nova e moderna função[10]. O que era objeto da polícia nos séculos XVII e XVIII – fazer as forças do Estado crescer respeitando a ordem geral – acaba tomado por outros mecanismos, quais sejam a economia política, a gestão da população, etc. Ao contrário dessas funções de incentivo-regulação, a instituição policial passa a ter uma função negativa, tentando fazer com que se diminua o máximo possível de desordens.

Com as manifestações de junho de 2013 no Brasil, essa função político-repressiva da polícia, nos rastros das inacabadas transições do regime da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) até os dias de hoje, demonstrou-se bastante atuante ao jogar contra civis (estudantes, jornalistas, moradores de rua...) seu aparato militarizado, impondo uma estratégia de medo[11]. Se manifestações seriam uma forma de dar voz e, portanto, politizar, introduzindo os excluídos de sempre em espaços legítimos em que suas reivindicações pudessem ganhar eco, a polícia age para despolitizá-los, afastá-los da democracia (e do diálogo), fazer com que as coisas regressem ao normal[12] e a vida siga em frente. Para que os emudecidos pelas opressões socioeconômicas (não eram apenas pelos 20 centavos...) que o capitalismo neoliberal necessita para sobreviver continuem em seu lugar determinado histórico e politicamente.

Além disso, entre 2010 e 2013, 1.275 (um mil duzentos e setenta e cinco) pessoas foram vítimas de homicídios decorrentes de intervenções policiais na cidade do Rio de Janeiro[13]. Desse expressivo número, 99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos, ou seja, visível está o massacre sistemático realizado pela polícia (e seus imemoráveis autos de resistência como plataforma jurídica de atestado das vidas indignas de viver)[14] instalado no interior da democracia (onde espaços de exceção são inevitáveis...), reproduzindo campos de extermínios com pouca preocupação da sociedade civil. Jovens, negros e pobres. Uma escala de excluídos diferentes daqueles presentes nas manifestações referidas, mas que sob a visão da repressão policial não merecem ser calados com bala de borracha e gás lacrimogênio e sim com armas capazes de riscar suas vidas matáveis do mapa de um país de escala continental. Vítimas de uma política de morte e de esquecimento (pois Amarildo vive na memória de poucos), invariável essa constante no paradigmático sistema penal de Auschwitz[15].

Assim, é de se notar que no âmbito da democracia, a polícia - por uma perspectiva suprainstitucional – cumprirá uma função de despolitização das massas e multidões, vez que operacionalizada, agora vertical e militarmente, para suprimir as sublevações que venham a ocorrer contra a governança ou o modo de governar (para poucos). Se democracia e política são sinônimos, e diálogo e alteridade estariam na base desses conceitos, a polícia – agora como instituição vinculada ao sistema penal – encontra-se no outro lado: na antipolítica; no autoritarismo; na supressão do diálogo. Como duas formas que não podem coexistir[16], alimentando uma polaridade que descamba para o silenciar daqueles postos à margem da sociedade (seja com estratégias de medo, seja com a morte).


Notas e Referências:

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 421.

[2] Idem, p. 431.

[3] Idem, p. 433.

[4] Idem, p. 457.

[5] Idem p. 465.

[6] FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 88.

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 474.

[8] Idem, p. 475.

[9] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 213

[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 475.

[11] ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles usam uma estratégia de medo”: proteção do direito ao protesto no Brasil. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2014. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2014/07/Eles-usam-uma-estrat%C3%A9gia-de-medo-Prote%C3%A7%C3%A3o-do-direito-ao-protesto-no-Brasil.pdf. Acesso em: 23/05/2016.

[12] ZIZEK, Slavoj. Para uma apropriação do Legado Europeu pela Esquerda. Edições Pedago, Lda: Portugal, 2009, p. 07.

[13] ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2015. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acesso em: 23/05/2016.

[14] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[15] SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

[16] AMARAL, Augusto Jobim do. “Mal de polícia” – À propósito de uma criminologia radical. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 22, vol. 111, nov-dez/2014.

AMARAL, Augusto Jobim do. “Mal de polícia” – À propósito de uma criminologia radical. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 22, vol. 111, nov-dez/2014.

ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles usam uma estratégia de medo”: proteção do direito ao protesto no Brasil. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2014. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2014/07/Eles-usam-uma-estrat%C3%A9gia-de-medo-Prote%C3%A7%C3%A3o-do-direito-ao-protesto-no-Brasil.pdf. Acesso em: 23/05/2016.

ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2015. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acesso em: 23/05/2016.

FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

___________, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.

___________, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

ZIZEK, Slavoj. Para uma apropriação do Legado Europeu pela Esquerda. Edições Pedago, Lda: Portugal, 2009.


Lucas e Silva Batista Pilau. Lucas e Silva Batista Pilau é Mestrando em Ciências Criminais no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Pesquisador e advogado.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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