A (polêmica) exigência da reparação dos danos para progressão provisória de regime prisional

01/06/2017

Por Marcelo Lebre - 01/06/2017

1. Enredo da questão

O modelo de execução penal encampado pelo legislador brasileiro segue a lógica do sistema progressivo, de inspiração inglesa (“Mark System”)[1], na qual o sentenciado tem o direito de galgar melhorias ao longo da execução, desde que conjugue os requisitos delineados pela Lei de Execução Penal, ex vi art. 112 da Lei nº 7.210/1984: o objetivo (lapso temporal) e o subjetivo (bom comportamento carcerário).

Tal sistema visa resguardar uma das pedras angulares do nosso sistema constitucional - o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da CF/1988) - e também uma das premissas que orienta nossa legislação penal: a ideia de ressocialização do sentenciado (ex vi art. 59 do CP e art. 1º da LEP).

Nada obstante, nos crimes contra a Administração Pública (arts. 312 a 359 do Código Penal), é ainda exigível um terceiro requisito para se alcançar a progressão: a reparação do dano causado pelo crime.

Essa exigência foi trazida pela Lei nº 10.763, de 2003, e está expressamente prevista no art. 33, §4º do Código Penal – Verbis: “O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais”.

A primeira vista, não há grandes problemas em relação à aludida previsão legal (basta ver que a grande maioria dos manuais de Direito Penal pátrios – e mesmo os de Execução Penal – pouco discutem sobre o tema...).

Mas uma questão vem ganhando fôlego nos tribunais pátrios, visto que muitos sentenciados estão encontrando embaraços na concessão do benefício legal em razão desta cláusula contida no Código Penal: afinal, é possível (ou não) exigir a reparação do dano para progressão provisória de regime prisional enquanto não há trânsito em julgado da decisão condenatória?

2. Problemática central

Inicialmente, é relevante lembrar-se do teor da Súmula 716 do Supremo Tribunal Federal, por meio da qual “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Ou seja, não restam dúvidas acerca da possibilidade de se pleitear a progressão de regime prisional antes mesmo da condenação criminal transitar em julgado. Especialmente agora, com o recente entendimento firmado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, no sentido de permitir a execução provisória da pena.[2]

Basta, portanto, que os requisitos delineados pela Lei de Execuções sejam preenchidos: bom comportamento carcerário e lapso temporal.

Ocorre que os sentenciados por crimes contra a administração pública encontram uma barreira a mais: a reparação do dano, a qual (vênia) julgamos só ser exigível após o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Neste tocante, vale lembrar que a sentença penal condenatória, para além de acarretar um “efeito principal” (que é a própria pena), possibilita também uma sorte de “efeitos secundários”, os quais podem ser de natureza penal (v.g, a possibilidade de se caracterizar a reincidência/maus antecedentes no caso de cometimento de novo delito) ou extrapenal (como, por exemplo, a obrigação de reparar o dano).

E é exatamente aqui (em relação aos efeitos secundários de natureza extrapenal) que esbarra a questão aqui debatida: afinal, a obrigação de reparar o dano só será exigível, em qualquer termo, após o trânsito em julgado da condenação.

Lembre-se que após o advento da Lei nº 11.719/2008 (que reformou de maneira significativa o Código de Processo Penal), a sentença penal condenatória passou a ostentar uma natureza híbrida: penal e cível. Afinal, para além de aplicar a pena (privativa de liberdade ou outra), deverá o magistrado também fixar o valor mínimo de reparação dos danos causados pelo delito, nos termos do art. 387, inciso IV do CPP.

E aqui, é certo que as decisões de natureza cível (como a obrigação de reparar o dano) somente podem ser executadas após o trânsito em julgado do feito, por força do contido expressamente no art. 515, inciso IV do novo Código de Processo Civil, o qual é aqui aplicado por analogia em face da lacuna do Código de Processo Penal.[3]

Com efeito, são reiteradas as decisões das nossas Cortes Superiores no sentido de que a reparação do dano proveniente da infração só começa a transcorrer após o trânsito em julgado da sentença penal (inclusive no que tange seu prazo prescricional).[4]

Nem mesmo o entendimento (já citado supra) do Supremo Tribunal Federal em relação à execução provisória da pena permitiria uma interpretação diversa. Isso porque o mesmo restringe-se à pena privativa de liberdade (efeito principal da condenação criminal) e não aos efeitos secundários, especialmente os de natureza cível (como é o caso da reparação de danos).

Pensar de forma diversa geraria uma série de discrepâncias e incongruências jurídicas (como, por exemplo: permitir a caracterização de reincidência antes do trânsito em julgado, violando o disposto nos arts. 63 e 64 do CP; ou o lançamento do nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado, violando a cláusula constitucional que prega a presunção de inocência, do art. 5º, inciso LVII da CF/1988; etc.).

Insiste-se, pois, que a exigência da reparação dos danos antes do trânsito em julgado da condenação é medida temerária e não pode ser aceita para nenhuma finalidade jurídica.

3. Conclusões

Infelizmente, os fins utilitaristas hodiernamente almejados ao processo penal vêm deturpando sua (almejada) lógica acusatória e as premissas firmadas na Constituição e também na legislação penal.

A bandeira “cega” de combate à criminalidade, insuflada pelos veículos de comunicação, faz com que passemos por cima de garantias individuais e neguemos benefícios legalmente reconhecidos aos acusados e sentenciados, os quais, não podemos olvidar, figuram no lado mais frágil do jogo processual.

Aqui, nos parece oportuna a lição doutrinária delineada pelo hoje Ministro Barroso: “A repressão à criminalidade é uma necessidade de qualquer sociedade. Mas há limites muito nítidos. Qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias”.[5]


Notas e Referências:

[1] Item 35 da Exposição de Motivos (Nova Parte Geral do Código Penal): “A decisão será, no entanto, provisória, já que poderá ser revista no curso da execução. A fim de humanizar a pena privativa da liberdade, adota o Projeto o sistema progressivo de cumprimento da pena, de nova índole, mediante o qual poderá dar-se a substituição do regime a que estiver sujeito o condenado, segundo seu próprio mérito. A partir do regime fechado, fase mais severa do cumprimento da pena, possibilita o Projeto a outorga progressiva de parcelas da liberdade suprimida”.

*Sobre o tema: GARRIDO GUZMAN, Luis. Manual de ciência penitenciaria. Madrid: Edersa, 1983, p. 134. Segundo o autor, os escritos do Capitão Alexandre Maconochie, então governador da colônia britânica na Ilha Norfolk (Austrália), no ano de 1840, inspiraram o nascituro do sistema progressivo.

[2] STF - Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.

[3] Art. 515 CPC.  São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: (...) VI - a sentença penal condenatória transitada em julgado.

[4] (STJ - REsp 351.867/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 13.2.2006); (STJ - REsp 881.668/MT, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, 1ª Turma, DJe 12/11/2008).

[5] BARROSO, Luís Roberto. A viagem redonda: habeas data, direitos constitucionais e as provas ilícitas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. A viagem redonda: habeas data, direitos constitucionais e as provas ilícitas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BITENCOURT, Cesar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

GARRIDO GUZMAN, Luis. Manual de ciência penitenciaria. Madrid: Edersa, 1983.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro W.; ALAGIA, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010.


Marcelo Lebre. Marcelo Lebre é Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura Federal (ESMAFE), da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP), da Escola da Magistratura do Trabalho (EMATRA) e da Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR). Advogado, especialista em ciências criminais e mestre em direitos fundamentais e democracia. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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