A polêmica cobrança do ICMS na economia digital

01/04/2020

Em recente decisão a 4ª Câmara do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT) afastou a cobrança do ICMS lançado contra a Sky que, segundo o entendimento do fisco paulista, teria prestado serviços de comunicação ao disponibilizar conteúdo audiovisual aos seus clientes.

Alegou a defesa que a atividade sobre a qual o ICMS era exigido, submetia-se à  incidência do ISS, segundo a lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03, com as alterações posteriores. De forma específica, a recorrente transmitia conteúdos por meio da modalidade Over The Top (OTT). A defesa menciona ainda a Súmula nº 333, do STJ, segundo a qual, o ICMS não incide sobre o serviço de provedor de acesso à internet.

A decisão solucionou uma forma de conflito de competência tributária entre o Estado (ICMS) e Município (ISS). Nesta matéria específica, o conflito se manifestou em razão da confusão conceitual entre a prestação de serviços de comunicação, tributada  pelo ICMS, e pelos demais serviços listados na Lei Complementar n. 116/2003, submetidos à incidência do ISS, de competência municipal.

Todavia, essa é apenas uma variável desta relação conflituosa entre os entes  tributantes (Estado e Município), e talvez de menor proporção em toda essa discussão.

A maior agressividade neste conflito se verifica no campo da economia digital, na qual os produtos gerados pela atividade econômica formam um campo nebuloso na divisão conceitual entre mercadorias e serviços. O ponto controvertido reside no estabelecimento da linha divisória entre uma mercadoria digital, com a identificação dos elementos e critérios que lhe definam esta qualidade, e a prestação de serviços, uma atividade abrigada no direito civil como obrigação de fazer.       

Com o avanço da tecnologia ganhou relevo a atividade econômica em meio virtual;  computação em nuvem, internet das coisas, produtos incorpóreos de utilidade virtual e assim avante. Os critérios definidores da materialidade de incidência tributária perderam nitidez; passou a ser ainda mais tênue a linha divisória entre as competências tributárias dos Estados (ICMS) e dos Municípios (ISS). A mercadoria digital, assim denominada porque não está ancorada em suporte físico, mas em informações e utilidades virtuais, atrai as atenções dos pesquisadores. Haveria efetivamente mercadoria digital? É forte a corrente que atribui a essa designação uma manobra  apenas para dar fundamentos às pretensões dos Estados de ampliar, artificialmente, a sua competência tributária e participar dos tributos oriundos de uma atividade econômica em franca expansão.

Este novo cenário econômico tecnológico fez surgir novos esforços normativos (leis, normas infralegais), não necessariamente para esclarecer pontos nebulosos sobre a competência tributária, mas para atender ao instinto arrecadatório, tanto dos Estados como dos Municípios. Na verdade, algumas destas interferências normativas, no plano infralegal, não se mantêm fiel à materialidade de incidência de cada tributo (ICMS ou ISS), e por isso mais confundem do que esclarecem, atentando contra a Constituição Federal, que define com rigor a competência tributária de cada ente político.

Já em 2015, os Estados editaram o Convênio Confaz 181/2015, autorizando a redução da base de cálculo do ICMS nas operações com softwares, programas de computadores, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio.

O ato de reduzir a base de cálculo implica reconhecer a incidência do ICMS sobre os produtos mencionados. Parece evidente a preocupação dos signatários do convênio de demarcar uma área de incidência do ICMS no campo da economia digital. No convênio fica evidente o rompimento do vínculo que condiciona o conceito de mercadoria ao suporte físico ou à padronização do produto (software de prateleira), um dos critérios adotados pela jurisprudência para estabelecer a linha divisória entre mercadorias e serviços.

Na época da edição deste convênio, a lista de serviços anexa à LC 116/2003, era assim composta com relação às atividades relacionadas à informática correlacionadas aos produtos em debate:

1.01 Análise e desenvolvimento de sistemas.

1.02 Programação.

1.03 Processamento de dados e congêneres.

1.04 Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos.

1.05 Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.

Examinando o texto do convênio em evidência, observa-se a intenção de reservar à competência tributária estadual a economia digital, na medida em que reconhece a incidência do ICMS sobre o software adaptado ou adaptável, disponibilizado por qualquer meio, destoando não só da jurisprudência, como da própria lista de serviços da LC 116/2003 acima transcrita.

O fato é que o convênio não tem nenhuma serventia no que tange à definição de competência tributária; a sua norma veiculada deve se conter à matéria da redução da base de cálculo nas operações de venda de mercadorias. Ou seja, quando os produtos mencionados pelo convênio forem transacionados na condição de mercadoria (bem móvel corpóreo ou incorpóreo destinado à mercancia, em operação de mudança de titularidade, com possibilidade de revenda), tem aplicação a redução da base de cálculo fixada pelo convênio. Caso contrário, não sendo mercadorias, a incidência tributária é do ISS, e o convênio não tem aplicação nenhuma. Em outros termos, o convênio deve ser interpretado em consonância com a lista de serviços anexa à LC 116/2003 mencionada, para que não haja violação à repartição das competências tributárias definida constitucionalmente. Acrescenta-se que, evidentemente, o convênio também não poderá dispor sobre conflito de competência, que é matéria reservada à lei complementar (art. 146, I, CF).

Parecendo ser uma reação dos Municípios diante da tentativa de avanço dos Estados na competência tributária na economia digital, foi aprovada a LC 157/2016, a qual redefiniu os serviços de informática e congêneres, deixando quase nenhum espaço para a incidência do ICMS. Seguem transcritos os itens 1.03, 1.04 e 1.05, que interessam para a análise.

1.03 – Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres. (Redação dada pela Lei Complementar 157, de 2016).

1.04 – Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e congêneres. (Redação dada pela Lei Complementar 157, de 2016).

1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.

Numa demonstração de que  a disputa pelo tributo incidente sobre o promissor mercado digital continua, foi editado o Convênio ICMS 106/2017, que disciplina os procedimentos de cobrança do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializados por meio de transferência eletrônica de dados e autoriza a concessão de isenções nas hipóteses que define, mantendo o mesmo elenco de produtos do convênio anterior. Também nestes termos se presume a incidência do ICMS sobre as operações com as mercadorias digitais mencionadas.

Todavia, cabe advertir novamente, a exemplo do Convênio anterior, que a interpretação dos termos conveniados deve se dar em conformidade com a lista de serviços da LC 116/2003, agora reformulada pela LC 157/2016.

Pela reformulação do rol dos serviços de competência tributária municipal, parece restar pouca margem para a tributação do ICMS. Pelo que ficou normatizado, a economia digital é predominantemente tributada pelo ISS. Evidentemente, abre-se aqui um campo de discussão sobre o conceito de serviços para efeito de incidência tributária, matéria que não é objeto deste artigo.

No entanto, é inquestionável  a evidência de que os signatários deste Convênio (como também do Convênio 181/2015) revelam uma intenção implícita de pavimentar um caminho para uma participação maior na arrecadação proveniente da economia digital, por meio de construções interpretativas, ao mencionar os produtos nos convênios, o grau de sua padronização, bem como a forma de sua disponibilização ao adquirente, podendo a comercialização ser por meio de transferência eletrônica de dados. Parece que há uma tentativa de inovar no conceito de mercadorias para justificar a incidência do ICMS.

Ora, nada mais inadequado. Repisa-se, competência tributária é matéria de reserva constitucional; conflito de competência desafia lei complementar (art. 146, I, CF) e o conceito de mercadoria não pode ser alterado por norma ou por convênio, para com isso ampliar a competência tributária (art. 110 CTN).

Considerando que  os dois convênios não podiam tratar de competência tributária, nem de conflito de competência, conforme já mencionado, não é de nenhum sentido questioná-los judicialmente sob a alegação de que estariam prescrevendo novos fatos geradores do ICMS, invadindo, consequentemente, o campo de incidência municipal. É desnecessária essa demanda judicial, pois que os convênios simplesmente não têm aplicação para esta matéria. Na verdade, os dois convênios não tratam de materialidade de incidência tributária; restringem-se a regular matérias específicas: redução da base de cálculo e procedimentos de cobrança (Convênios 181/2015 e 106/2017, respectivamente).

O que resta para a tributação do ICMS no campo da economia digital? O ICMS incide sobre operações com mercadorias (estamos tratado de ICMS-mercadorias), e como tal este imposto estadual somente incide nas hipóteses em que ocorrer uma operação de circulação de mercadorias digitais, assim entendidas como um bem corpóreo ou incorpóreo, que possa ser comercializado, com transferência de titularidade para o adquirente, inclusive, com possibilidade de revenda.

É de total inutilidade a edição de leis estaduais ou instruções normativas que visam dar legitimidade à incidência do ICMS sobre os produtos mencionados no convênio se os mesmos não se ajustarem ao conceito de mercadorias.

Portanto, o Convênio 106/2017 deve ser lido em conformidade com a lista de serviços anexa à LC 116/2003 com as alterações da LC 157/2016, em sintonia com a Constituição Federal, reservando-lhe a vocação normativa  apenas para regular os procedimentos de cobrança do ICMS e autorizar a concessão de isenções sobre as operações com os produtos digitais nele arrolados, se estes se configurarem como mercadorias, nos termos conceituais admitidos pelo ordenamento jurídico e, evidentemente, não se enquadrarem como serviços tributados pelo ISS.

Cabe enfatizar que  a LC 157/2016 trouxe um novo panorama, ao contornar, de forma especificada, com maior precisão a competência tributária municipal com relação aos serviços de informática e congêneres, restando aos Estados, de forma residual, exigir o ICMS somente nas hipóteses em que a transação tenha por objeto um bem determinável que se ajuste ao conceito de mercadoria. 

Diante deste cenário, prevendo um embate de difícil êxito para os Estados, Santa Catarina adotou uma conduta exemplar a ser seguida, ao reconhecer a incidência do ICMS somente nas operações com mercadorias digitais quando estas efetivamente assumem a condição de mercadorias (sem invasão na competência municipal), além de conceder isenção para as vendas a consumidor final.   

Concluindo, o conflito de competência tributária entre os Estados e Municípios é uma discussão antiga, mas a economia digital agravou a situação, potencializando a  falta de nitidez cada vez maior na linha de divisão entre mercadorias e serviços. Contudo, em diversas situações, este conflito não é real, mas artificialmente criado com o intuito de avançar na competência alheia com o subterfúgio da liberdade interpretativa da norma, com incalculável prejuízo à segurança jurídica do contribuinte.

  

Imagem Ilustrativa do Post: Taschenrechner / Calculator // Foto de: Marco Verch // Sem alterações

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