Por Jorge Coutinho Paschoal – 22/09/2016
Quem atua na seara criminal sabe que, ainda hoje, não é incomum o oferecimento de ação penal antes da constituição definitiva do débito tributário, agindo o Fisco em contrariedade à lei, ao oferecer representação para fins penais sem que o processo administrativo se encerre, ferindo-se o artigo 83, da Lei 9.430/1996. Antigamente, isso era a regra, sob a complacência da jurisprudência, que não via qualquer ilegalidade.
Na doutrina, sempre se mostrou bastante discutível a natureza jurídica da exigência da constituição definitiva do tributo, defendendo parte dos estudiosos se tratar de uma “condição de procedibilidade”[1], outra de “condição objetiva de punibilidade[2] e outros, como já tivemos oportunidade de defender, de “falta de justa causa” (materialidade do fato[3]). O Supremo Tribunal Federal, contudo, veio a se posicionar sobre o tema, pacificando o entendimento na Súmula Vinculante n. 24 de que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”[4].
Assim, antes da constituição do crédito tributário, não há que falar em tipicidade penal do fato, solução muito comemorada, principalmente, pelos advogados.
Portanto, não poderia mais haver persecução penal válida para referidos crimes contra a ordem tributária antes do término do procedimento administrativo fiscal[5].
Os Tribunais, desde então (recentemente, mormente nos últimos anos) têm sanado a ilegalidade, seja mediante o trancamento da ação penal, seja pela invalidação de todo o processo deduzido, inclusive da própria denúncia ofertada, conforme jurisprudência sedimentada no STF[6], da qual não destoa a do STJ[7].
Cabe só ressaltar que, apesar de a solução mencionada parecer mais benéfica (afinal, sem o término do procedimento administrativo fiscal, o processo crime deverá ser anulado), a verdade é que, em muitos casos, isso acabou só prejudicando o imputado.
Com efeito, o processo administrativo pode durar muitos anos, ficando a situação jurídica do imputado, nos crimes tributários, na prática, delicada, pois a pessoa sofrerá o processo penal depois do término do processo administrativo, o que pode demorar um longo tempo, ficando a seguinte indagação: qual o sentido em se propor uma ação penal, uma vez passados 10 (ou mais) anos do fato gerador do tributo, que é, de fato, quando se consuma o crime, com o inadimplemento (?).
Na prática, na vida real das pessoas de carne, isso tem um grande efeito.
Sem falar que, com o novo entendimento, deixa-se nas mãos do Fisco - no momento que entender mais oportuno julgar o processo administrativo fiscal – a decisão quanto à ocorrência da tipificação do delito e, o que é mais grave, quanto ao início do começo do curso do prazo prescricional, o que soa um verdadeiro despropósito.
Assim, a reviravolta na jurisprudência gerou muitas injustiças, pois, antigamente, não raro, as pessoas sofriam ações penais tributárias independentemente do término do processo administrativo fiscal, sob a escusa da independência das instâncias, porque se entendia que a consumação se daria com o inadimplemento delituoso do tributo; os mais garantistas, corretamente, a fim de evitar a propositura prematura de uma ação, liam o término do lançamento definitivo do tributo como prova da materialidade do fato, sendo matéria relacionada à justa causa (e não á tipicidade).
Com o novo entendimento, o que se deu foi o seguinte: em muitos casos, quando os processos criminais já estavam em curso, diga-se de passagem, em fase bem avançada – quando até poderia ter ocorrido a prescrição pelo tempo transcorrido - passou-se, simplesmente, a anular as ações deduzidas, ganhando o acusado de presente, pelo constrangimento ilegal reconhecido, um novo processo criminal, para apurar o mesmo fato!
Contudo, quando se alegava que a pessoa já havia respondido a um longo processo, por muitos anos, inclusive havendo a prescrição do poder punitivo, utilizava-se como argumento que a tipificação penal só ocorreria com o lançamento do tributo, sendo certo que o início da prescrição se daria a partir de então, e não do inadimplemento do tributo, isto é, lá atrás, quando foi proposta a ação penal então em curso, já há anos...
Isso gerava – e ainda gera, em alguns casos, perplexidades – pois inquestionável que o acusado sofreu um processo anterior - às vezes, por muitos anos - não sendo justo que seja processado novamente, mormente quando, com base no entendimento anterior, faria jus ao reconhecimento da prescrição.
Recentemente, o tema foi abordado pelo Superior Tribunal de Justiça, listando-se – em decisão inovadora, porém ainda tímida - que, em prol da segurança jurídica, e da própria certeza do direito, o entendimento que vigia anteriormente à promulgação da súmula vinculante 24, isto é, quanto ao prosseguimento do processo penal instaurado, deveria ser preservado para os casos em que já houvesse ação em curso antes da sedimentação do novo posicionamento.
Embora da leitura da decisão não se aborde expressamente este ponto (ou isso não fique muito claro), parece lógico que, uma vez mantido o posicionamento que vigorava antes, não haveria que se falar em suspensão da prescrição (justamente porque, antes, não se entendia por suspender a prescrição, que já se considerava em curso), podendo esta ser até reconhecida, pois era esse entendimento que vigorava antes da posição corporificada na súmula vinculante n. 24, do STF.
A esse respeito, confira-se o recente julgado proferido pelo STJ, em voto de lavra do Ministro Rogério Schietti Cruz:
“Nesses poucos mais de 6 anos que separam esses dois pronunciamentos [HC n. 81.611-DF e SÚMULA VINCULANTE n. 24] – o que evidencia o amplo e duradouro debate nos diversos julgados que antecederam e respaldaram o amadurecimento da proposta da aludida súmula –, não há dificuldade em encontrar pronunciamentos dos Tribunais pátrios, ora pela manutenção da independência entre as instâncias administrativa e penal, ora em atendimento à orientação do Pretório Excelso[8] (...) “A própria hipótese de ser o lançamento definitivo condição de procedibilidade para a ação penal, discussão que ainda perdurou por algum tempo, deve impor, em respeito ao princípio tempus regit actum (CPP, art. 2º), a salvaguarda de todas ações penais propostas até então, à vista da induvidosa natureza processual do tema (...) Antes do disciplinamento vinculativo bastava a caracterização dos indícios de autoria e da materialidade do delito, nos exatos termos do tipo, para respaldar o início, o desenvolvimento e a análise final da imputação, porquanto presente a justa causa e atendidos os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, a permitir o exercício da ampla defesa do acusado sem nenhuma dificuldade, como sempre ocorreu desde a publicação da Lei n. 8.137/90”[9] (...) “De qualquer sorte, eminentes pares, diviso que, antes da edição da Súmula Vinculante n. 24-STF, devem prevalecer, não somente por imperativo legal, mas também em atendimento ao Sobreprincípio da Segurança Jurídica – aqui abarcadas a reserva legal, a taxatividade e a anterioridade da lei penal –, as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias, cuja certeza do direito, erigida dos fatos praticados em data que dista, e muito, da publicação do enunciado – e, como visto, do primeiro precedente acerca da questão –, estava longe de considerar o lançamento definitivo do crédito tributário, seja como condição de procedibilidade da ação penal, seja como elemento normativo do tipo do inciso I do art. 1º da Lei n. 8.137/91, nos termos do HC n. 81.611/DF”[10].
A decisão é inovadora – sendo importante que seja registrada e estudada - pois confere crédito à teoria da força vinculante da jurisprudência mais benéfica em direito penal, tese abraçada por alguns (a exemplo, recentemente, de MARIÂNGELA GAMA MAGALHÃES, muito embora já fosse um tema bastante abordado por outros Autores, como ODONE SANGUINÉ, entre nós), mas que, em realidade, nunca teve o respeito ou devida atenção e a observância por parte dos tribunais, sobretudo de um tribunal superior, da importância do STJ.
Muitas dessas ponderações já foram objeto de nossa reflexão em outro artigo[11], sendo a mesma perplexidade reproduzida, depois, por outros, devendo-se deixar registrado, por ora, que, em tais casos, a mudança da jurisprudência nos crimes tributários - quando, inquestionavelmente, a antiga, então pacífica, mostrar-se, nos dias de hoje, mais benéfica, em certos casos - não poderá implicar uma piora na situação jurídica do réu, em homenagem à segurança jurídica, tão cara em matéria criminal. A decisão do STJ acena nesse sentido, devendo, por isso mesmo, ser bastante comemorada.
Notas e Referências:
[1] AZEVEDO, David Teixeira. “A representação penal e os crimes tributários: reflexão sobre o art. 83 da Lei 9.430/96”. In: Atualidades no Direito e Processo Penal. São Paulo: Método, 2001.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto & MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 74.
[3] PASCHOAL, Janaina Conceição e PASCHOAL, Jorge. “A constituição do crédito tributário, a consumação do crime tributário e a extinção da punibilidade pela prescrição”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 16, n. 194, jan./2009.
[4] Grifamos e destacamos.
[5] GAGLIARDI, Pedro Luiz Ricardo. “A instância administrativa e os crimes tributários”. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 540; GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 11.ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 62/63; MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008, p. 409/410
[6] STF, HC 97854, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 11/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG 31-03-2014 PUBLIC 01-04-2014; STF, HC 108159, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 19/03/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-073 DIVULG 18-04-2013 PUBLIC 19-04-2013; STF, HC 100333, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 21/06/2011, DJe-201 DIVULG 18-10-2011 PUBLIC 19-10-2011 EMENT VOL-02610-01 PP-00095; STF, HC 85185, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2005, DJ 01-09-2006 PP-00018 EMENT VOL-02245-04 PP-00800; HC 85329, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 21/11/2006, DJ 15-12-2006 PP-00109 EMENT VOL-02260-04 PP-00652
[7] STJ, AgRg no REsp 1327319/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 15/02/2013; STJ, REsp 1100959/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2011, DJe 27/10/2011; STJ, HC 39.706/RJ, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 07/11/2006, DJ 05/03/2007; STJ, RHC n.º 16.994/RS, Rel. Min. NILSON NAVES, Sexta Turma, julgado em 20/9/2005
[8] STJ, REsp 1211481/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 15/04/2014 (p. 18, do acórdão) (destaques)
[9] STJ, REsp 1211481/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 15/04/2014 (p. 19/20, do acórdão) (destaques).
[10] STJ, REsp 1211481/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 15/04/2014 (p. 25, do acórdão).
[11] PASCHOAL, Janaina Conceição & PASCHOAL, Jorge Coutinho “A constituição do crédito tributário, a consumação do crime tributário e a extinção da punibilidade pela prescrição”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 16, n. 194, jan./2009.
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
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