A PEDAGÓGICA DE ENRIQUE DUSSEL: ALTERIDADE COMO VETOR DO ENSINO JURÍDICO LIBERTADOR  

12/01/2021

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

Nascido na Argentina em 1934, formado na Facultad de Filosofía de la Universidad Nacional de Cuyo, doutor em filosofia pela Universidad Complutense de Madri e doutor em história pela Sorbonne Université, Enrique Dussel desenvolveu estudos relativos a Filosofia da Libertação na América Latina a partir dos pressupostos teóricos de Emmanuel Lévinas. A filosofia dusseliana pode ser organizada em três fases: a) ontológica, alicerçada no pensamento de Paul Ricoeur na tentativa de compreender a simbólica latino-americana[1]; b) metafísica, baseada na ética da alteridade e nas categorias denominadas de exterioridade e totalidade; e c) marxiana, na tentativa de compreender as implicações do processo de modernização periférica dos países latino-americanos na perspectiva da exploração da força do trabalho[2].

A Filosofia da Libertação consiste em rediscutir a teoria crítica, não a partir da burguesia europeia dos séculos XVIII, XIX e XX, mas dos povos colonizados, oprimidos e silenciados da América Latina, compreendendo os mecanismos de exclusão dos sujeitos, também chamados de vítimas por Dussel[3], ou seja, é uma “forma de leitura filosófica que permite a inserção da América Latina na produção dos saberes, pois concentra suas problematizações no campo das necessidades locais e nas soluções que atendem às agendas apresentadas pela América Latina”[4].

Desta forma, a filosofia da libertação crítica permanentemente a ontologia totalitária dos países centrais, que nega e classifica como “não-ser” tudo aquilo que é exterior a ela, se apresentando como uma universalidade que encobre as realidades locais dos países periféricos colonizados. Assim, rejeita-se a categoria de homem enquanto ser universal e adota-se a categoria vítima[5]. Por totalidade entende-se a compreensão de mundo que o sujeito forma por meio da cultura na busca de atribuir sentido à sua existência.

O individualismo gerou o rompimento do homem com Deus, com a natureza e com outro, até mesmo do eu consigo mesmo, que se vê desobrigado de reconstruir seus pensamentos, atos e valores, tornando o eu uma totalidade absoluta em si mesmo e fechado, assim, para o infinito e para a transcendência do outro. O fechamento do eu em si mesmo torna o outro um ser estranho, “em razão disso, causa incômodo e desarranjo, pois o eu não tem poder sobre ele”[6].

A filosofia dusseliana parte das reflexões de Emmanuel Lévinas sobre a valorização da ética humana em face de sua essência, em que o teórico tece críticas à filosofia ontológica e propõe a alteridade, que consiste na responsabilidade do eu diante do outro. Para o pensador lituano, a filosofia é o fio condutor entre a ética e a justiça, ou seja, a ética é a filosofia primeira, o ponto de partida que desemboca em algo como o pragmatismo ético-político, uma resposta ao chamado do outro[7].

A fim de superar a perspectiva ontológica da totalidade, Dussel apresenta a metafísica da alteridade que consiste em postar-se diante do outro no face a face, de modo que o outro não concebido como um objeto, mas uma exterioridade infinita que escapa ao sujeito no campo racional. A perspectiva filosófica da relação face a face é balizada no livro do Êxodo, capítulo 33, versículo 11: “falava o Senhor a Moisés face a face, como qualquer fala a seu amigo”, haja vista que a  filosofia dusseliana consiste em buscar a harmonização entre o ethos grego e o semita, pois a sociedade ocidental tem um encontro não resolvido entre a cultura helênica e a semita[8].

A libertação ocorre quando a exterioridade, enquanto realidade física do outro, se posiciona diante de outra exterioridade sem que a concepção totalitária encubra o outro, ou seja, reduza o outro a si mesmo ou transforme-o em não-ser. Neste sentido, a libertação na filosofia dusseliana ocorre por meio de três níveis: a) erótica, a relação existente entre homem e mulher no ambiente doméstico; b) pedagógica; a relação entre pai e filho, mestre e discípulo, aluno e professor; e c) política, a relação entre o sujeito e a vida em sociedade[9].

Cumpre ressaltar a distinção entre a pedagogia e a pedagógica. A primeira diz respeito a “processos educativos, métodos, maneiras de ensinar” que visam discutir e problematizar o campo da educação na perspectiva histórica com vistas a orientar a ação educativa[10]. Enquanto a segunda relaciona-se ao campo da filosofia que reflete sobre a relação face a face do mestre em relação ao discípulo, do pai em relação ao filho[11] e, portanto, a pedagógica, “não lida apenas com a educação da criança, do filho, do discípulo na família erótica; mas também da juventude, das pessoas nas instituições escolares, universitárias, científicas, tecnológicas, nos meios de comunicação”[12], para além da perspectiva educacional, em uma dinâmica cultural e ideológica.

São dois os sistemas pedagógicos, o doméstico e o político. Na pedagógica dusseliana doméstica, a relação se dá no eixo pais-filhos e mestre-discípulo, o filho não é coisificado, mas é tido como um rosto diante dos pais, haja vista que o filho é distinto dos genitores e não uma extensão destes. Na pedagógica política, a relação ocorre entre a cultura dominante e a cultura popular, ou seja, a preocupação em compreender os processos históricos de consolidação da alienação e libertação da ontologia da totalidade europeia na América Latina.

A América Latina foi alienada a totalidade europeia. Na erótica, a mulher submetida ao homem; na pedagógica, o encobrimento do outro e de sua expressão cultural; e na política, a dominação e exploração do trabalho do oprimido. Assim, no campo da pedagógica em relação ao ensino jurídico, a ontologia da totalidade europeia, que se manifesta pelas aulas expositivas cobertas por retóricas eloquentes, pressupõe que o aluno seja capaz de reproduzir o conhecimento ministrado, ou seja, que possa se apropriar dos conceitos do mestre, sem possibilidade participativa ou criativa, em um eterno retorno do mesmo. Para Luckesi[13], os alunos não são concebidos como sujeitos históricos inseridos em um contexto e, consequentemente, mais se classifica do que se ensina.

Para Dussel, uma pedagógica alicerçada na filosofia da libertação não se consolida em uma perspectiva de domínio entre mestre e discípulo, mas que ambos são distintos na relação face a face, de modo que a alteridade possibilita que o professor compreenda o aluno como outro que lhe escapa, a proximidade permite uma abordagem de libertação e não de alienação. Segundo o autor, “tudo está em que método pedagógico se deve utilizar. Há métodos que lutam contra a totalidade pretendendo instaurar uma nova dominação; há outros que negam a totalidade fechada e intentam abri-la a alteridade”[14].

Assim, torna-se fundamental o professor não se tornar um eterno repetidor do mesmo, mas que esteja aberto a manifestação da alteridade no relacionamento com os alunos, construindo uma prática pedagógica alicerçada no respeito as diferenças, centralizando o discente no processo de ensino e aprendizagem. Não na perspectiva de abandono do aluno na hercúlea missão de reter o conteúdo ministrado, mas na valorização dos conhecimentos prévios, da realidade política, econômica, cultural e social e ainda das necessidades específicas relativas as habilidades e dificuldades em compreender, assimilar, contextualizar e analisar criticamente o conteúdo. Na prática, a postura libertadora do professor pressupõe a escuta do aluno, pois “escutar o aluno é saber ser professor, é saber se curvar ao novo”[15].

Tal problemática se assevera no âmbito do ensino jurídico, compreendido como um conjunto de práticas pedagógicas voltadas a formação dos operadores do saber jurídico no campo da pesquisa, do ensino e da extensão[16]. Os docentes dos cursos jurídicos são revestidos da crença equivocada de que necessariamente aquele que exerce a prática profissional também sabe ensinar[17]. Assim, valoriza-se o professor que detém anos de experiência reconhecidos pela comunidade jurídica, de modo que os exemplos práticos do cotidiano poderiam, de certa forma, suprimir eventuais falhas didático-pedagógicas[18].

Tal posicionamento impele o professor a ocupar uma posição de altivez que inviabiliza a rediscussão do fazer pedagógico e da prática docente em sala de aula, de modo que ele não procura se aperfeiçoar, enquanto docente, pois “não há nada que mais inferiorize tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez com que se comporte”[19]. A filáucia do docente corrobora com um projeto de ensino impregnando de caráter instrumental alienante[20] que forma “servos das arcaicas estruturas e valores do dogmatismo”, cujo cerne do processo de ensino está alicerçado na “mera repetição e memorização mecânica”[21] que inviabiliza uma perspectiva de ensino jurídico problematizador, haja vista que afasta o pensamento crítico[22].

Para tanto, Dussel propõe que “todo professor deve ensinar mais do que simplesmente já foi dado anteriormente, deve ensinar de maneira crítica como se foi alcançado; não transmite o tradicional como tradicional, mas revive as condições que tornaram possível como novo, como único, como criação”[23].

Assim, a sala de aula se torna ambiente indispensável para a ação docente libertadora. Entretanto, torna-se necessário construir uma relação alicerçada na alteridade entre professores e alunos em detrimento da ordem de submissão que se construiu historicamente. A prática docente libertadora tem como características a “dialogicidade, a criticidade, a criatividade e a participação democrática”[24]. Ou seja, a educação crítica na perspectiva da pedagógica dusseliana consiste em compreender o aluno como sujeito, reconhecendo a alteridade que se manifesta pelo rosto.

Para tanto, a superação da relação pedagógica entre professores e alunos alicerçada na educação bancária é condição sine qua non para a efetiva libertação. Paulo Freire denomina de bancária a perspectiva educacional que subjuga o discente como sujeito passivo da relação, em que a atribuição do docente consiste em depositar o conteúdo, deixando a cargo do aluno a retenção, devendo, ainda, devolver o conhecimento tal como fora transmitido por intermédio do processo avaliativo, que privilegia a memorização e a repetição dos conteúdos ministrados pelos professores. “Na visão “bancária” da educação, o “saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”[25]. Assim, os educandos são os depositários, e o educador, o depositante.

A prática docente no ensino jurídico deve ser repensada a partir dos conceitos operacionais extraídos da filosofia libertadora dusseliana, sobretudo pela categoria pedagógica, refletindo criticamente a postura do docente dos cursos de Direito diante do discente, substituindo uma perspectiva de totalidade, imposição e altivez, por uma lógica baseada na alteridade, no reconhecimento, na comunicação, tendo o aluno como epicentro do processo de ensino e aprendizagem.

 

Notas  e Referências

[1]             SOUZA, Francisco Josivan de. O percurso do Outro: um currículo para a outreidade como educação libertadora a partir de Lévinas, Dussel e Freire. 2013. 168 fls. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 42.

[2]             COSTA, César Augusto Soares da; LOUREIRO, Carlos Frederico. Karl Marx na Leitura de Enrique Dussel: interpelações críticas à luz das lutas sociais na América Latina. Textos & Contextos (Porto Alegre), vol. 16, núm. 1, 2017.

[3]             DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 2005.

[4]             COUTO, Felipe Fróes; CARRIERI, Alexandre de Pádua. Enrique Dussel e a filosofia da libertação nos estudos organizacionais. Cad. EBAPE.BR. vol.16. no.4. Rio de Janeiro, out./dez. 2018, p. 02.

[5]             OLIVEIRA, H. M. A filosofia da libertação como desmitologização: a modernidade. Kínesis: Revista de Estudos dos Pós-Graduandos em Filosofia, v. 1, n. 2, p. 90-104, 2014.

[6]             GOMES, Carla Silene Cardoso Lisbôa Bernardo. Lévinas e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça / Orientador: Florian Fabian Hoffmann. – 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, p. 52.

[7]             HADDOCK-LOBO, Rafael. A justiça e o rosto do outro em Lévinas. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.3, n.1, p.1-132, abr./set, 2010, p. 75.

[8]             CINTRA, Benedito Eliseu Leite. Paulo Freire entre o grego e o semita. Educação, filosofia e comunicação. Porto Alegre: PUC-RS, 1998, p. 03.

[9]             BOUFLEUER, José P. Pedagogia Latino-Americana: Freire e Dussel. Ijuí: Editora Unijuí, 1991.

[10]          LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 2002, p. 29.

[11]          DUSSEL, Enrique. Filosofía etica latinoamericana: de la erótica a la pedagógica de la liberación. Vol. 6/III. México: Ed. Edicol, 1977, p. 123.

[12]                (Tradução livre). No original: “La pedagógica por ello no solo se ocupa de la educación del niño, del hijo, del discípulo en la familia erótica; sino igualmente de la juventud y el pueblo en las instituciones escolares, universitarias, científicas, tecnológicas, los medios de comunicación. Es la cuestión ideológica y cultural”. DUSSEL, Enrique. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva America, 1996, p. 109.

[13]          LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 17 ed. São Paulo: Cortez, 2005.

[14]                 (Tradução livre). No original: “Todo está en qué método pedagógico se debe utilizar hay métodos que luchan contra la Totalidad pretendiendo instaurar una nueva dominación; hay otros que niegan la Totalidad cerrada e intentan abrirla a la Alteridad”. DUSSEL, Enrique. Para una ética de la liberación latinoamericana I. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1973, p. 144.

[15]                (Tradução livre).  No original: “Saber escuchar o discípulo es poder ser maestro; es saber inclinarse ante lo nuevo [...]”. DUSSEL, Enrique. Pedagogica latinoamericana. Bogotá: Nueva America, 1980, p. 50.

[16]          SENA, Adriana Goulart de; COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da. Ensino jurídico e educação para a alteridade: resolução de conflitos e uma experiência de sala de aula. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 41, p. 61-76, 2012. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/75314/ensino_juridic o_educacao_sena.pdf . Acesso em: 29 dez. 2020

[17]          MASETTO, Marcos Tarciso. (Org.). Competências pedagógicas do professor universitário. São Paulo: Summus, 2003.

[18]          OLIVEIRA, P. Z.; GERBRAN, R. A. O profissional docente do direito: refletindo sobre sua prática pedagógica. HOLOS, ano 34, v. 03, 2018. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/4206. Acesso em: 13 set. 2020.

[19]          FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 40. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 92.

[20]          FACHIN, Luiz Edson. Limites e possibilidades do ensino e da pesquisa jurídica: repensando paradigmas. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, n. 1, p. 25-34, jan. 2001. ISSN 2317-3882. Disponível em: http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/2/2. Acesso em: 29 dez. 2020.

[21]          CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. A descolonização do ensino jurídico na América Latina sob a perspectiva do bem viver: a construção de uma nova educação fundada no constitucionalismo e na interculturalidade plural. 2015. 308 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 227.

[22]          BARBOSA, Victor Hugo de Araujo. Pedagógica de Enrique Dussel e o ensino jurídico: alteridade e crítica ao sistema pedagógico dos cursos de graduação em direito. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 11, nº 24, mai-ago. 2019.

[23]          (Tradução livre). No original: “Todo maestro debe enseñar más que lo simplemente ya dado con anterioridad; debe enseñar con modo crítico el cómo eso fue alcanzado; no transmite lo tradicional como tradicional, sino que revive las condiciones que hicieron posible como nuevo, como único, como creación”. DUSSEL, Enrique. Para una ética de la liberación latinoamericana I. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1973, p. 142.

[24]          HICKER, Carmen. Enrique Dussel: o professor à luz do conceito de mestre em uma práxis pedagógica libertadora. 2005. 100 fls. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2005, p. 68.

[25]          FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 33.

 

 

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