A PEC da (Ir)relevância e a macrolitigância: mais do mesmo

27/08/2022

Em recente artigo a respeito sobre do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR (ROCHA, 2022, p.167-168[1]), constatamos que o instituto foi criado para combater a multiplicação de causas iguais, por meio da premissa de que o Tribunal, ao fixar uma tese geral, vincularia todos os juízes que lhe são subordinados. Esquematicamente falando, partiu-se da hipótese de que seria possível reduzir a complexidade do Direito a partir de uma decisão generalistas pelos Tribunais, cabendo aos juízes de 1ª instância apenas aplica-la de forma seriada.

Grosso modo, o IRDR, assim como as demais técnicas de simplificação e/ou abstrativização do Direito, pressupõe a construção de uma fórmula lógica subsuntiva para resolução de casos futuros. Na linguagem de programação, pode-se falar que a ideia se aproxima da noção de modelo, assim entendido o resultado da aplicação de um algoritmo em um conjunto específico de dados, ou seja, há um prévio conhecimento tanto dos valores de entrada (inputs) quanto os de saída (outputs) (BOEING e ROSA, 2020, p.20[2]). Em vez de a máquina entender o funcionamento da linguagem humana, o Judiciário é quem passa a mimetizá-la.

A Proposta de Emenda à Constituição 39/2021, a PEC da Relevância, aprovada recentemente, que cria um filtro para os recursos especiais parte desse mesmo raciocínio.

Analisando os motivos que deram ensejo à proposta, chama atenção o fato de haver uma incoerência, ao menos em termos, entre alguns de seus componentes. A mais gritante entre delas é na passagem em que a Relatora assinala o mal causado pelo “crescimento irrefreado no número de feitos que chegam ao tribunal”, mas, por outro lado, dá uma ênfase pejorativa em relação aos anos nos quais o STJ julgou menos processos, quando alude, por exemplo, que “julgou apenas 3.711 processos em 1989”, ou quando salienta que “modestos 856” se referiam a recursos especiais – podemos opor embargos por contradição contra o voto da relatora?

De mais a mais, observando a exposição da justificativa, a tônica é uma só: a necessidade de o STJ julgar mais – ou seria menos (cabem aclaratórios novamente!)? A lógica simplista prega a redução da taxa de congestionamento, por meio do aumento da vazão de processos com solução, em proporção superior à entrada de novos recursos, diminuindo, ao fim, o estoque represado. Henry Ford se orgulharia da tese!

O relatório, ao final, enaltece-se, sublinhando que a iniciativa “se funda em experiência prévia bem-sucedida: a repercussão geral das questões constitucionais, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004”. Ora, se a litigiosidade aumenta dia após dia e se volta e meia o legislador cria uma técnica para pretensamente solucionar esse acréscimo exponencial, não é presunção demais exaltar o instituto?

Com efeito, extrai-se que o instituto foi concebido como (mais) um instrumento para mitigar o papel de instância revisora do STJ, transformando-o em um de “tribunal de precedentes”, que deverá desempenhar a função precípua de criar “precedente vinculante, cabendo aos demais tribunais adequar suas decisões ao entendimento do Tribunal de cúpula”, conforme as palavras da própria relatoria.

Ocorre que essa premissa fática na qual se funda o relatório, no sentido de que o STJ estaria desviando de sua finalidade precípua, ao se transformar em instância revisora, não condiz com a realidade. Isso porque é fato público e notório os óbices processuais que as partes enfrentam para ter seu recurso especial admitido, chegando até quem o alcunhe de “Corte de Inadmissão” (ou de “Extermínio”), devido ao (ab)uso da denominada jurisprudência defensiva.

Há, também, uma impropriedade de cunho positivo e teórico. Não é possível extrair da Constituição que o STJ deva se comportar como uma “Corte de Precedentes”. Pelo contrário, consta do art.105 um rol de competências dentre as quais se incluem julgar recursos, respeitando as hipóteses ali enumeradas. Pertencemos à tradição do civil law, e não do common law. Prevalece-se, em nossa terra, o legiscentrismo. Ainda assim não fosse, nem nos países precendetalistas, tais como os EUA, a Suprema Corte assume uma missão de resolver o direito em tese, tal como previsto relatório. Para se ter uma ideia, a Supreme Court julga entre 100 e 150 casos por ano, justamente por valorizar o caso concreto, na sua singularidade e seriedade que deve se pautar a intervenção. 

Em suma, o instituto cria apenas mais paliativo, não tendo efeito profilático de evitar a doença que é a litigiosidade em massa. Aliás, tampouco é possível extrair dos motivos determinantes do relatório da PEC uma justificativa coerente e consistente, porquanto não se sabe se a sua intenção é reduzir o número de recursos – uma espécie de cláusula de barreira – ou se se pretende que o STJ julgue mais – reduzindo a taxa de congestionamento. A verdade é que o mencionado filtro não traz nada de novo, porquanto o próprio STJ, ao criar inúmeros óbices para admitir recursos, já vinha, implicitamente, aplicando uma métrica de (ir)relevância para selecionar os casos merecedores de julgamento. Dito de outro modo, a PEC apenas visa a explicitar, ainda mais, quão vulnerável e refém as partes quedam diante da Corte, ironicamente, adjetivada de “Cidadã”.

 

Notas e Referências

[1] Para o "bem" ou para o "mal", uma (re)leitura kelseniana dos arts. 926 e 976 do CPC. RBDPRO.

[2] Ensinando um Robô a Julgar: Pragmática, Discricionariedade, Heurísticas e Vieses no uso de aprendizado de máquina no Judiciário. Florianópolis: Emais Acadêmica.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Corte Especial // Foto de: Superior Tribunal de Justiça // Sem alterações

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