A PEC 32/20 E A ESTABILIDADE NO SERVIÇO PÚBLICO

21/09/2020

Na data de 03 de setembro de 2020 o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional a Proposta da Emenda à Constituição nº 32/20[1] que ganhou a alcunha de “PEC da Reforma Administrativa” que, se aprovada, atingirá todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Dentre várias alterações propostas pela PEC, chama a atenção a nova redação do artigo 41 da Constituição Federal de 1988:“Art. 41. Adquire a estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício em cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da lei.[2]É de fácil percepção que a PEC da “Nova Administração Pública” buscar tornar exceção a estabilidade do servidor público, restringindo-a aos cargos típicos de Estado que, pela redação proposta pelo artigo 39-A, inciso IV,  § 1º, da PEC 32/40, ainda serão definidos em lei complementar federal. A nova regra, se aprovada, valerá apenas para as futuras contratações de servidores públicos.

Não se despreza a preocupação do Governo Federal com a otimização e uma maior maleabilidade na gestão da Administração Pública, mormente com a eficiência dos servidores públicos que lhe prestam serviços. No entanto, a história constitucional sempre privilegiou a estabilidade como forma de proteger a impessoalidade, a probidade, o profissionalismo e a continuidade no exercício das funções públicas. O primeiro ato normativo brasileiro que previu a estabilidade do servidor público foi a Lei nº 2.924/15[3] que em seu artigo 125 previu que o servidor, com exceção dos comissionados, que contasse com dez ou mais anos de serviço público federal sem ter sofrido penas no cumprimento dos deveres só poderia ser dispensado do cargo em virtude de sentença judicial ou mediante processo administrativo. Já a nível constitucional, a Constituição de 1934 foi a primeira carta política a prever expressamente a estabilidade do servidor público efetivo. Em seu artigo 169, a Constituição de 1934 estabelecia que “os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.[4]As diversas constituições que se seguiram trouxeram dispositivos da mesma natureza que previam a estabilidade do servidor público efetivo. Destaca-se, ainda, como fato histórico a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP em 1938 com o fim de organizar e profissionalizar o serviço público no país, buscando preservá-lo de influências políticas, sendo muito importante para tal desiderato a estabilidade do servidor[5].    

Atualmente, a estabilidade do servidor público efetivo, ou seja, daquele que presta serviços à Administração Pública Direta e Indireta dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e é regido por uma lei própria (estatuto, a exemplo da Lei 8.112/90 dos servidores civis federais), encontra guarida constitucional na atual redação do artigo 41 da CF/88 que é categórica ao afirmar que “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público[6]podendo essa estabilidade, nos termos do § 1º do referido dispositivo, ser quebrada  por sentença judicial transitada em julgado, por decisão em processo administrativo assegurada a ampla defesa e mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.

Talvez o maior motivo que leve a dizer que a estabilidade do servidor público efetivo mais faz bem do que mal à Administração Pública é o fato de que, a cada eleição, as forças políticas mudam constantemente. A estabilidade sempre teve o objetivo de proteger o exercente do cargo efetivo, no exercício do seu mister, de pressões indevidas oriundas do poder político de plantão. É importante a proteção do profissionalismo do servidor que, com sua experiência, pode continuar a exercer a função pública independentemente da ideologia ou da opção política dos Administradores Públicos, chefes dos Três Poderes dos diversos níveis da federação, garantindo a continuidade do serviço público e a impessoalidade no exercício do cargo. Garante-se, ainda, a moralidade na Administração Pública, pois dificulta-se o loteamento de cargos públicos apenas ou majoritariamente para os simpatizantes de determinado grupo político.

A estabilidade no serviço público garante que o servidor tenha mais coragem de denunciar práticas de improbidade administrativa do gestor público. Servidores do controle interno ou do setor de licitação de determinado Estado ou Município exercem com independência o seu mister simplesmente porque possuem como garantia de que não perderão os seus cargos em razão de sua estabilidade garantida constitucionalmente. Imagine-se aqui um controle interno municipal com servidores não protegidos por estabilidade. Qual seria o resultado desse controle interno? Seria ele desempenhado com a necessária independência? Não é muito difícil imaginar qual seria a qualidade dos pareceres de um “controle interno” composto por servidores não protegidos pela garantia da estabilidade.

Sendo bem gerida pela Administração Pública, a estabilidade garante, ainda, a continuidade na prestação do serviço público, principalmente nos dois poderes eleitos, Legislativo e Executivo. Imagine-se aqui uma prefeitura que, a cada quatro anos, a depender do revezamento no poder das forças políticas locais, trocasse todos os seus servidores públicos para alocar nos cargos simpatizantes da nova ideologia política. Haveria, com certeza, nítido prejuízo à continuidade da prestação de serviços, pois não se aprende uma função pública da noite para o dia. O servidor público deve ser treinado e, com o tempo, adquirir a necessária experiência para bem exercer as importantes funções públicas a seu cargo. Repetir seguidamente esse processo, sem dúvida alguma, acarretaria prejuízos à continuidade do serviço público.

Os críticos da estabilidade elencam inúmeros motivos para a extinção ou seríssima restrição de tal figura jurídica. Talvez a principal crítica é aquela que menciona que o servidor, após adquirir a estabilidade do artigo 41 da CF/88, tornar-se-ia desleixado, desidioso, pouco produtivo e prestaria os serviços públicos com má vontade e baixa qualidade. No entanto, afirma-se aqui, categoricamente, que tais servidores são minoria no serviço público, sendo que este é composto por pessoas capacitadas e que buscam prestar um serviço público de qualidade. Este colunista foi aprovado em nove concursos públicos (em alguns, houve renúncia à nomeação) e exerceu, em toda a sua história profissional de quatorze anos de setor público, cinco cargos públicos de Escrevente do TJMG, Analista Judiciário do TRT da 18ª Região, Técnico Judiciário, Analista Judiciário e Juiz do Trabalho do TRT da 3ª Região[7]. Em todo esse tempo, conviveu, em sua maioria, com servidores extremamente capacitados, técnicos, conscienciosos dos seus deveres e que buscavam prestar um serviço público de qualidade ao cidadão. E isso não se restringe apenas ao círculo profissional deste colunista. Pode-se dizer que a maioria dos servidores públicos civis, ao exercerem a sua função com profissionalismo e independência, a despeito de muitas vezes não haver estrutura material e de pessoal a contento, prestam um bom serviço público que justifica a sua estabilidade (ou seria a estabilidade que justificaria o bom serviço público?).

Ao propor que a estabilidade se restrinja apenas aos integrantes das denominadas “carreiras de Estado”, que hoje são, por exemplo, os integrantes da segurança pública, da arrecadação e da fiscalização tributária, da diplomacia e da advocacia pública, a nova redação do caput do artigo 41 da PEC 32/20, se aprovada, restringirá a garantia de um serviço público impessoal e profissional somente a uma pequena fração dos servidores públicos. Haverá a exclusão, por exemplo, dos professores e dos pesquisadores das universidades públicas e dos institutos de ensino técnico e de pesquisa públicos, dos profissionais da saúde, dos chefes de cartórios judiciais e dos oficiais de justiça, funções, igualmente, importantes, mas que, atualmente, não são consideradas carreiras de Estado e nem se espera que sejam consideradas na futura lei complementar definidora de tais carreiras.

Não se ignora que existe na Administração servidores públicos efetivos que desempenham suas funções de maneira insuficiente, que tratam deseducadamente as pessoas e que, no geral, não buscam se capacitar e prestam suas funções não atendendo ao princípio constitucional da eficiência (art. 37 da CF/88). Ora, mas a estabilidade, como já referido em linhas anteriores, não é um vínculo inquebrável. Para o servidor que não atende aos anseios de uma Administração Pública eficiente, a Constituição Federal prevê no artigo 41, § 1º, inciso III, a exoneração por insuficiência de desempenho mediante procedimento de avaliação periódica, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.

Em vez de propor o fim, como regra, da estabilidade, restringindo-a somente às carreiras de Estado, deveria haver a correta regulamentação, via lei complementar, da avaliação periódica de desempenho que, assegurando ampla defesa, apure, com rigor, se o servidor público possui ou não aptidão para o exercício do cargo. Se ele não possuir essa aptidão, independentemente do tempo de exercício da função, o servidor deve ser exonerado por insuficiência de desempenho, rompendo-se, assim, o vínculo da estabilidade. E isso passaria pela capacitação das lideranças e dos gestores do serviço público que devem realizar avaliações periódicas de desempenho que reflitam a realidade, sem paternalismos que protejam servidores desidiosos, que não se atualizam ou se capacitam e que prestam serviço público de baixa qualidade. O gestor público, via lei complementar, deveria ser compelido, com mais rigor, a realizar avaliações reais, sérias, sob pena de responsabilidade pessoal, inclusive por ato de improbidade administrativa caso declare apto um servidor que, na verdade, não o é.

Assim, com todo o respeito a quem pensa diferente, considera-se um equívoco a proposta da PEC 32/20 que restringe a garantia da estabilidade dos futuros servidores públicos apenas às carreiras que serão definidas por futura lei complementar como sendo de Estado. A estabilidade é garantia de impessoalidade, profissionalismo, independência e continuidade na prestação do serviço público, ou seja, do trato da coisa pública. Há ferramenta menos drástica para se extirpar do serviço público funcionários com desempenho insuficiente e que não cumprem as suas funções com eficiência que é a avaliação periódica de desempenho que merece uma detalhada regulamentação via lei complementar. Espera-se que o Congresso Nacional corrija esse equívoco, mantendo a estabilidade como regra no serviço público e regulamentando de maneira eficaz a avaliação periódica de desempenho.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n° 32 de 2020. Disponível em <https://www.camara.leg.br/internet/agencia/pdf/PEC32.pdf>. Acesso em 20 set. 2020.

[2] IDEM.

[3] BRASIL. Lei 2.824, de 5 de janeiro de 1915. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-2924-5-janeiro-1915-574326-publicacaooriginal-97490-pl.html>. Acesso em: 20 set. 2020.

[4]BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 20 set. 2020.

[5] FGV – Fundação Getúlio Vargas. A Era Vargas: dos anos 20 a 1945. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos37-45/PoliticaAdministracao/DASP>. Acesso em: 20 set. 2020.

[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 set. 2020.  

[7]      Vide currículo Lattes disponível em: <http://lattes.cnpq.br/3408248018269647>. Acesso em: 20 set. 2.020.

 

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