A PEC 29/2015, EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS E SOCIEDADE DE CONSUMO: UMA BREVE REFLEXÃO

22/03/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

Doze de fevereiro de 2019.

Assinado por vinte e nove senadores, o Requerimento nº 9 de 2019 solicitou o desarquivamento da PEC 29/2015, também conhecida como PEC da Vida ou PEC contra o aborto, proposta, originalmente, pelo então senador Magno Malta (PR-ES) e arquivada ao final do último ano. Apresentada inicialmente “em defesa da dignidade humana”, a proposta busca alterar o artigo 5º, caput, da Carta Magna, a fim de que seja adicionado o trecho adiante grifado: “[...] a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção [...]”.

O desarquivamento do projeto e a sua consequente rediscussão são consequências da atual transição política, diga-se de passagem, com forte viés conservador como se identifica na conhecida passagem aludindo ao fato de que “meninos usam azul e meninas rosa”...

A discussão é polêmica nos vieses político, moral, religioso e científico. O tema não é inédito. O Código Civil, posterior à Constituição Cidadã, em seu artigo 2º, abre espaço para discussões acerca dos direitos reservados aos nascituros, dividindo pesquisadores entre as teorias natalista e concepcionista. Para juristas como Caio Mário da Silva Pereira o nascituro tem mera expectativa de direitos; em contrapartida, Pontes de Miranda defende a tese de que o nascituro, como pessoa humana, é portador de direitos resguardados pelo Direito.

Nascituro não se confunde como o embrião, sendo este anterior àquele. É interessante mencionar os estudos de Silmara Juny Chinellato que considera pessoas os embriões pré-implantatórios utilizados na técnica in vitro ou criopreservados e, portanto, albergados pelo citado dispositivo legal[1].

Não será aqui discutido o momento do nascimento dos direitos de personalidade inerentes ao ser humano. Este curto ensaio limita-se a resumir aspectos atados à necessária visão crítica-reflexiva sobre o tema.

Somos fruto da Sociedade de Consumo.

Nela somos produtos e consumidores.

Não é diferente o que ocorre em clínicas de reprodução humana espalhadas pelo Brasil. Dados da Anvisa mostram que apenas em 2017, 68.891 embriões foram transferidos por meio técnicas de reprodução assistida, quase sempre em relações de consumo.

Bebês sorridentes, saudáveis, belíssimos, enfim, perfeitos, saltam aos olhos de possíveis consumidores expostos em outdoors, sites ou em informativos com insuficientes informações acerca do serviço e de seus riscos e que, em vez disso, apelam à sedução como forma de venda, aliciando, sem informar.

O desejo de ter filhos foi transformado em um negócio que parece ser lucrativo.

Nas clínicas, o procedimento de fertilização in vitro consiste basicamente na hiperestimulação hormonal da mulher que passa a produzir múltiplos oócitos. No ciclo natural apenas uma célula desse tipo é produzida por mês. Após o consumo de medicamentos estimulantes, em momento oportuno, os oócitos são extraídos do corpo feminino via punção e colocados juntamente aos espermatozoides; fecundado, o embrião é transferido ao útero que o espera.

Os demais embriões quase sempre existentes são criopreservados nas próprias clínicas. A Resolução CFM nº 2.168/17 determina a quantidade de embriões a serem transferidos conforme a idade da consumidora, proibindo a implantação de número superior a quatro alegando que com isso haveria a diminuição do risco de gestações múltiplas, tema que cresce em importância quando somos apresentados ao caso de gestação óctupla da americana Natalie Suleman: de doze embriões implantados, oito nasceram com vida. Os octogêmeos, agora com dez anos, e os demais seis filhos de Natalie – frutos de intervenções anteriores – vivem com a mãe na Califórnia e aparentemente são crianças alegres e saudáveis.

Além disso, a referida Resolução veda a fecundação de oócitos com fim diverso da reprodução humana, possibilita a doação de embriões - embora coíba a venda -, e regra o seu descarte ao exigir autorização expressa ou o seu abandono por pelo menos três anos; embora Tartuce[2] enalteça as benesses da referida Resolução, apontando o uso de células-tronco embrionárias como exceção em decorrência dos requisitos estabelecidos, números obtusos capturados no 11° Relatório SisEmbrio mencionam os oócitos produzidos, transferidos e descartados sem prestar qualquer explicação acerca dos motivos que o ensejaram.

No Paraná, por exemplo, 17.679 oócitos foram produzidos em 2017; 4.613 foram transferidos e 3.081 descartados; entre tais números, uma imensa lacuna: o relatório simplesmente abstrai a quantia estonteante de 9.985 oócitos sobre os quais não se tem a mínima informação quanto ao seu uso.

A explicação dada pelas clínicas[3] para a criação de embriões excedentes é a diminuição do valor do procedimento – que gira em torno de R$ 10.000,00 iniciais (uma vez que, na maioria dos casos, é necessária a repetição do procedimento de implantação até a efetiva gestação) – e a preservação da paciente, a fim de que não necessite passar mais uma vez pelo processo de estimulação hormonal, considerada a etapa menos agradável do procedimento.

Há controvérsia sobre o assunto como dito previamente, mas, considerando que embriões são seres humanos com direitos de personalidade[4] ou ao menos com expectativa de vir a tê-los, parece necessário refletir acerca dos que são qualificados como excedentários, portanto, dos embriões que sequer foram transferidos para o útero da mãe ou da gestatrix, valendo ressaltar o valor científico desses seres em formação, criopreservados, utilizados em casos de pesquisa com células-tronco devido à sua capacidade de multiplicação e adaptação, ajudando no tratamento de doenças.

Se a PEC de fato for aprovada, resguardando a vida desde o momento da concepção, como a pesquisa nessa área avançará – art. 218, §§º 1º e 2º, CF?

Eis o desafio da sociedade contemporânea em um Estado conservador: poderá o conservadorismo exacerbado predominar a ponto de ofuscar a ciência, o avanço da pesquisa, as relações de consumo entre particulares e influenciar diretamente as futuras gerações?

Apenas o tempo dirá ...

Tomara que não.

 

 

Notas e Referências

[1] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 75-84.

[2] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 75-84.

[3] ALMEIDA NETO, Osvaldo. Embriões excedentários: limitação à sua geração e direito ao nascimento. IN: BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; CASTRO, Celso Luiz Braga de; AGRA, Walber de Moura (Cood.). Novas perspectivas do Direito Privado. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 221-235.

[4] CARVALHO, Kalline Gonçalves Eler. Os direitos reprodutivos no contexto da fertilização in vitro e o problema dos embriões excedentários. Disponível em: <https://www.academia.edu/37249271/Os_direitos_reprodutivos_no_contexto_da_fertilização_in_vitro_e_o_problema_dos_embriões_excedentários>. Acesso em 12. Mar. 2019.

 

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