A paralisação dos entregadores de aplicativos em plena pandemia: “esta vida não é um teatro, mas a realidade do precariado”

10/07/2020

O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Una vita appesa a un filo,

Licenziamento senza preavviso,

Sempre sfruttato e sottopagato,

Una vita sempre in scadenza, sotto ricatto, senza contrato

[...]

Di porta in porta cercando lavoro,

Questa vita non e un teatro ma la realta del precariato

- “St. Precario Day”, música de Los Fastidios.

Em tradução livre do autor:

Uma vida pendurada por um fio,

Demissão sem aviso prévio,

Sempre explorado e mal pago,

Uma vida sempre no limite, sob chantagem, sem contrato

[...]

De porta em porta procurando trabalho,

Esta vida não é um teatro, mas a realidade do precariado.

A paralisação dos entregadores de aplicativo realizada nesta quarta-feira, primeiro de julho, representa inquestionavelmente um marco na história recente das organizações populares brasileiras. A crise pandêmica do COVID-19 não foi suficiente para impedir que esses trabalhadores realizassem diversas manifestações com milhares de entregadores em todo o país.  Pode-se dizer, desde já, que a mobilização obteve sucesso, sobretudo no que se refere à organização coletiva e sensibilização dos demais atores sociais (o engajamento nas mídias foi significativo, por exemplo). Resta-nos indagar se essa organização será duradoura e terá a capacidade de se conectar com os demais setores de trabalhadores precarizados.   

Os entregadores atuam principalmente em plataformas como a iFood, Rappi, Loggi e UberEats. Ainda que seja difícil indicar o número exato de entregadores trabalhando nessas empresas, segundo dados do SindiMotoSP (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado de São Paulo), há cerca de cerca de 280 mil profissionais com motos ou bicicletas apenas no referido estado. Além disso, a entidade registra um crescimento de 20% desde o início da pandemia [1]. Em linhas gerais, as principais reivindicações da categoria são: aumento do valor mínimo por entrega; fim dos bloqueios e desligamentos indevidos (práticas comuns das plataformas); Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e auxílio para os entregadores que forem contaminados pela COVID-19.

Dito isso, percebe-se facilmente que a posição ocupada pelos entregadores é na base da pirâmide de prestação de serviços, suportando todos os efeitos negativos da precarização das relações de trabalho. As reivindicações realizadas pela classe remetem às garantias mais básicas dos direitos trabalhistas e de seguridade social – tão necessários em um contexto de pandemia e crise global – as quais são negadas a esses trabalhadores sob o argumento de que as empresas apenas disponibilizam uma plataforma, da qual os trabalhadores seriam meros usuários. Tal argumento é típico das novas formas de organização do trabalho, profundamente relacionadas à ideologia neoliberal e operacionalizadas por meio de inovações tecnológicas. Contudo, a cultura do “empreendedor-de-si” [2] sofreu um revés com a paralisação dos entregadores.

O panorama das transformações no mundo dos serviços compreende diversos setores para além das empresas de delivery, o que tem gerado inúmeras formas de denominar essa lógica de atuação, entre elas: plataformas digitais, economia compartilhada, “uberização”, “economia de bicos” ou “capitalismo de plataformas”. Nesse contexto, empresas de transporte urbano de passageiros como a Uber e Cabify figuram, até o momento, como as principais expoentes dessa nova lógica de organização do trabalho.

Não por acaso, foi entre os motoristas de aplicativos que ocorreu a primeira grande mobilização mundial de trabalhadores de plataformas digitais em maio de 2019:

As manifestações aconteceram em cidades dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Nigéria, Quênia, Chile, Brasil, Panamá, Costa Rica e Uruguai. Em Nova Iorque, estima-se que 10 mil motoristas participaram da manifestação que contou com carreatas, protestos do lado de fora dos escritórios tanto da Uber como da Lyft, ambos no mesmo edifício no Queens, além de outro grupo que protestou em frente a Bolsa de Valores de Nova York. [3]

As reivindicações dos motoristas de aplicativo eram bastante semelhantes às efetuadas pelos entregadores de delivery, consistindo, basicamente, em demandas por melhores condições de trabalho. Na ocasião, a mobilização surpreendeu pela capacidade de engajar os motoristas ao redor do globo, entretanto, praticamente nenhum avanço concreto foi conquistado.

Demonstra-se, assim, que os trabalhadores de diversos setores da economia de plataformas possuem muito em comum, conforme pontuam Rafael Grohmann e Paula Alves:

O que as pesquisas sobre trabalho em plataformas têm mostrado é que há muito em comum entre um entregador no Brasil, na Indonésia, na África do Sul, ou mesmo na Inglaterra, cujo cenário é marcado por trabalhadores migrantes, muitos deles brasileiros. As conexões entre as lutas dos trabalhadores ao redor do mundo são evidentes. O que talvez a América Latina tenha de específico é que, aqui, o bico, o gig, sempre foi a norma. Agora o bico está sendo plataformizado.[4]

Evidencia-se, portanto, que o caráter global de atuação dessas plataformas gera, consequentemente, possibilidades de organização global dos trabalhadores envolvidos. Ainda que a situação concreta dos trabalhadores na periferia do capitalismo seja consideravelmente mais árdua que a dos precarizados europeus, por exemplo, o funcionamento das empresas é idêntico, revelando perspectivas de atuação semelhantes. Os trabalhadores precarizados brasileiros não podem contar com um Estado de Bem-Estar social efeciente, que desempenharia papel fundamental na garantia de direitos básicos de sua população, especialmente em um contexto de pandemia, o que torna a mobilização mais custosa para os trabalhadores, porém, também a torna mais urgente.

O cenário pós-pandemia mais provável não é animador para toda a sociedade brasileira. Para a classe dos trabalhadores precarizados, principalmente aqueles inseridos nas plataformas digitais, cresce exponencialmente a necessidade de organização e mobilização para reivindicação de melhores condições de trabalho e garantia de direitos básicos. Hoje, de acordo com dados recentes do IBGE, menos da metade dos brasileiros não possui trabalho, pela primeira vez desde que a PNAD Contínua é realizada [5]. Conforme adverte Ricardo Antunes:

Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom, teremos mais informalização com informatização, “justificada” pela necessidade de recuperação da economia pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma monumental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira essa tendência destrutiva do capital pós-pandêmico. [6]

A crise provocada pela pandemia, evidentemente, aprofunda a já precária situação dos trabalhadores uberizados dos diversos aplicativos e plataformas digitais, tendo em vista que extrai vantagem do contexto de crise econômica e redução de postos de trabalho formais. Diante disso, torna-se indispensável a viabilização de instrumentos alternativos capazes de fazer frente às grandes empresas-aplicativos, gigantes da tecnologia, que burlam direitos trabalhistas e colocam a vida de seus prestadores de serviço em risco.

O direito, por sua vez, tem enfrentado dificuldade extrema para uma adequada abordagem desses novos fenômenos e formas de organização do trabalho e produção. O entendimento apresentado pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, por exemplo, é de que há o preenchimento de todos os requisitos configuradores das relações empregatícias no modelo de atuação da Cabify [7] (plataforma de transporte urbano de passageiros). Há na instituição, inclusive, Grupo de Estudos sobre a uberização das relações de trabalho, existente no âmbito da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho. Não obstante, até o momento, ações judiciais com tais alegações não prosperam no judiciário.

Por outro lado, o cooperativismo de plataforma é uma ideia que se apresenta como caminho viável para a solução parcial dos problemas até aqui debatidos, mas ainda é uma estrada a ser pavimentada. Embora existam algumas cooperativas de destaque no cenário internacional, não abordarei o funcionamento de cada uma delas, priorizando o destaque para a lógica defendida, qual seja: a atualização das ideias do cooperativismo para o atual contexto de inovação tecnológica pode gerar uma nova forma de levar os serviços aos consumidores. Conforme sinaliza Trebor Scholz,

“O cooperativismo de plataforma pode fazer vigorar uma economia do compartilhamento genuína, uma economia solidária. Ela não irá remediar os efeitos corrosivos do capitalismo, mas pode mostrar que o trabalho pode ser dignificante ao invés de empobrecedor para a experiência humana” [8].

O papel dos consumidores será central para a o sucesso das reivindicações dos trabalhadores precarizados e para a mudança desse cenário. Da mesma forma que a população exerce controle social sobre empresas que se utilizam de mão-de-obra análoga à escrava, ou, ainda, promove campanhas contra empresas que ofendem políticas de igualdade de gênero ou racial, há um amplo horizonte no sentido de não utilizar aplicativos e plataformas que superexploram sistematicamente seus prestadores de serviço e que viabilizam a sua permanência no mercado tão somente pelo desrespeito aos direitos trabalhistas.

Trata-se de uma aposta na solidariedade, que não se limita a observar com distanciamento a mobilização dos entregadores ou motoristas de aplicativos. Funda-se na consciência de que, conforme indica Luis Felipe Miguel, “Nas economias capitalistas contemporâneas, o trabalhador é tanto um produtor quanto um consumidor. O consumo de massa é vital para o funcionamento da economia” [9]. Afinal, a concepção neoliberal de que Direito e Garantias fundamentais são apenas gastos e entraves para o bom funcionamento do mercado tende a se espalhar para todas as formas de trabalho, utilizando-se significativamente das novas tecnologias e as facilidades delas decorrentes. Enfrentar radicalmente os processos de precarização desde agora é fundamental para limitar a destruição do tecido social e o aprofundamento das desigualdades que se avizinha.

 

Notas e Referências

[1] MOREIRA, Jéssica; VELOSO, Lucas. ‘É difícil sair para trabalhar, não ver resultados e ser maltratado’, diz entregador em SP. In: Agência Mural, 01 jul. 2020. Disponível em: https://www.agenciamural.org.br/e-dificil-sair-para-trabalhar-nao-ver-resultados-e-ser-maltratado-diz-entregador-em-sp/ Acesso em: 01 jul. 2020.

[2] LIMA, Jacob. Participação, Empreendedorismo e Autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, vol. 12, núm. 25, septiembre-diciembre, 2010, pp. 158-198. P. 189. 

[3] MODA, Felipe; OLIVEIRA, Marco. Uber: assim começam as greves do futuro. In: Outras Palavras, 23 mai. 2019. Disponível em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/uber-assim-comecam-as-greves-do-futuro/ Acesso em: 01 jul. 2020.

[4] ALVES, Paula; GROHMANN, Rafael. Quando os entregadores se fazem classe. In: Jacobin Brasil, 01 jul. 2020. Disponível em: https://jacobin.com.br/2020/07/quando-os-entregadores-se-fazem-classe/ Acesso em: 02 jul. 2020.

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/06/30/pela-primeira-vez-mais-da-metade-dos-brasileiros-nao-tem-trabalho-diz-ibge

[6] ANTUNES, Ricardo. Como se trama a uberização total. In: Outras Palavras, 09 jun. 2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-se-trama-a-uberizacao-total/ Acesso em 01 jul. 2020.

[7] OITAVEN, Juliana C. C.; CARELLI, Rodrigo L.; CASAGRANDE, Cássio L. Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2018.

[8] SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de plataforma: contestando a economia do compartilhamento corporativa. Tradução e comentários Rafael A. F. Zanatta. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Editora Elefante; Autonomia Literária, 2016.

[9] MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: UNESP, 2017. P. 153.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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