Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues
Durante a Assembleia Constituinte nacional, entre 1987 e 1988, muitos foram os embates quanto aos limites da participação popular, haja vista a necessidade de construção de uma constituição democrática e aberta, que atendesse sobretudo os anseios trabalhadores e a todos os necessitados de políticas sociais.
E assim, graças aos embates, e diante da "vitória" do campo social, foi instituído um texto constitucional onde foram estabelecidos mecanismos de controle social dos investimentos públicos, evitando-se desvios, a fim de aplicá-los nas mudanças estruturais fixadas pela nossa Lei Maior de 1988, onde o Estado brasileiro é protagonista nas transformações socioeconômicas.
A Constituição brasileira em consonância aos novos ares democráticos, mas principalmente devido às disputas entre as forças populares e o capital (nacional e internacional), erigiu-se em um texto plural, voltado ao fortalecimento da soberania nacional e em busca do desenvolvimento socioeconômico ambiental.
Desta feita, se de um lado, em título dedicado à Ordem Econômica e Financeira, a começar pelos princípios gerais da atividade econômica, fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput CR) adotando o pluralismo produtivo[i]; em outro, em título apartado, fixa a proteção do orçamento público, no artigo 167, III da CR, cujo princípio é a vedação de realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, salvo exceções às autorizações relativas a créditos suplementares ou especiais, com finalidade definida, mediante autorização do Congresso Nacional, por maioria absoluta; e ainda, para reforçar, o inciso V do mesmo art. 167 da CR, que determina, nesses casos, constar a indicação dos recursos correspondentes para tanto.
Contudo, apesar das previsões constitucionais, a fim de viabilizar um projeto transformador da injusta sociedade brasileira, realizou-se uma série de alterações na Constituição de 1988, ao longo dos últimos 30 anos de neoliberalismo de regulação e de austeridade[ii], contrariando a sua ideologia constitucionalmente adotada[iii], bloqueando institucionalmente[iv] aquela, retirando ainda direitos, fragilizando o Estado e subordinado-o ao capitalismo financeiro[v].
Tais mudanças ocorrem, por causa, dentre outras, da eterna dependência[vi] econômico-financeira e política das três esferas de governos (federal, estaduais e municipais), pós redemocratização (inclusive), aos ditames dos entes internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.) representantes do grande capital. Enfim, o alinhamento das políticas econômicas públicas nacionais às diretrizes dos ditos agentes econômicos estrangeiros, geralmente, favorável ao setor especulativo e não produtor de riquezas.
Nesta toada, na conveniência e oportunidade da fragilidade mundial em meio à pandemia causada pelo Covid-19, nos deparamos com novo bloqueio institucional à Constituição de 1988, e consequentemente "velhas" políticas econômicas nacionais em prol do capital financeiro, com o gravame de se efetivar alterações relevantes a ensejar um maior empobrecimento do Estado brasileiro e redução de receitas a serem utilizadas no combate à referida pandemia, devido a promulgação da "polemica" Emenda Constitucional n. 106/2020, chamada de Emenda do Orçamento de Guerra.
Ademais, antes da dita Emenda, a União já tinha tomado medidas para "auxiliar" as instituições financeiras desde 23/03/2020, nos termos da Circular do Banco Central n° 3.993/2020; com efeito a partir de 30/03/2020, quando, dentre as medidas anunciadas pelo Presidente do Banco Central do Brasil, reduziu-se o adicional do empréstimo compulsório em R$ 68 bilhões sobre recursos a prazo, caindo a alíquota obrigatória de 25% para 17%[vii]. Ademais, essa liberação se soma a outras tantas medidas adotadas pelo Banco Central[viii], como mecanismo de beneficio as instituições financeiras, mediante a liberação de U$60 bilhões de dólares norte-americanos em linhas de swap a fim de garantir a liquidez do mercado financeiro em operações de câmbio, conforme noticiado no site do Banco Central[ix]; aumento das chamadas operações compromissadas com lastro em títulos públicos federais (TPF)[x]; alteração do tratamento tributário em operações de Overhedge (Medida Provisória n° 930 de 30/03/2020 e Resolução do Banco Central n° 4.784 de 18/03/2020); e a possibilidade de concessão de empréstimos às instituições financeiras, por meio da Linha Temporária Especial de Liquidez - Letras Financeiras Garantidas (LTEL - LFG), com potencial de direcionamento de R$ 670 bilhões de recursos públicos aos bancos (Resolução do Banco Central n° 4.795 de 02/04/2020).
Ainda, em 29/03/2020 o Ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendeu pedido da União Federal, flexibilizando o art. 167 da CR, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6357, ajuizada pela Advocacia-Geral da União, com o fim de afastar algumas exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.898/2020) objetivando a execução do programa de combate ao Covid-19 e na proteção da sociedade.
Como se não bastasse, a dita Emenda de Guerra estabeleceu o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações ao enfrentamento da calamidade pública nacional motivada pela pandemia internacional, tendo como nossa atenção especial o dispositivo do art. 7° da Emenda Constitucional n° 106 de 2020.
Tal comando altera diretamente as normas de Direito Econômico e Financeiro, pois expande a liberdade do Banco Central para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional nos mercados secundários local e internacional, bem como operar na venda de direitos creditórios e títulos privados de crédito no mercados secundários, no âmbito do sistema financeiros (mercado de capitais).
O referido comando ressalva, ainda, que o Banco Central deverá publicar diariamente as operações realizadas, prestará contas ao Congresso Nacional a cada 30 dias, que poderá sustar as medidas adotadas por meio de Decreto Legislativo (arts. 7°, 8° e 9° da Emenda Constitucional n° 106/2020).
Sob a justificativa da necessidade de “salvar” a economia real e produtiva por causa da crise gerada pela Covid-19, o Congresso Nacional permitirá que a União compre "títulos duvidosos" estocado nos bancos, atuando como um verdadeiro Bad Bank, pois aqueles desejam solicializar suas perdas à sociedade. É a eterna exceção do Estado Mínimo em prol do Máximo, para proteger o capital financeiro.
Tal medida de política econômica pública contraria a Constituição de 1988 e a sua ideologia constitucionalmente adotada, pois a política estatal não virá para coordenar, incentivar e salvar o setor produtivo (indústria, comercio, agricultura familiar[xi], etc.), digamos, as micros, pequenas e médias empresas, nem os autônomos, porque suas dívidas e necessidades de crédito não estão em papeis ou títulos transacionados no mercado secundário. Assim, a Emenda n. 106/2020 servirá para dilatar os ganhos do setor especulativo (bancos sobretudo), atuante no mercado secundário, pois o Banco Central poderá comprar títulos/papeis de grandes empresas inadimplentes por exemplo (algumas da Lava Jato), violando assim os princípios da Constituição Econômica (art. 170 da CR), ou seja, da função social da propriedade dos meios de produção (protege o setor mais rentável da nação), livre concorrência e a tratamento favorecido da pequena empresa (inviabiliza uma massa de atores da economia real e aumenta a concentração econômica), busca do pleno emprego (gera mais desemprego) e redução das desigualdades sociais e regionais (dilata as mesmas).
O Banco Central, com a Emenda Constitucional n. 106/2020, agirá como um verdadeiro “mecenas” dos bancos, comprando seus títulos estocados e "podres", e aumentando o endividamento público[xii], pois o seu texto é claro quando autoriza a realização de operações "extravagantes", junto ao Tesouro Nacional, devendo ele emitir títulos da dívida pública[xiii] afim de adquirir tais papéis, estrangulando assim o Estado brasileiro com mais endividamento, sob o manto da eficiência e da governança corporativa, mas na prática sem qualquer vinculação com o desenvolvimento nacional e até com o crescimento modernizante[xiv].
Ressalte-se que o endividamento público brasileiro, na esteira da financeirização dos orçamentos públicos em geral, possui um perverso histórico de atendimento dos interesses de agentes econômicos atuantes no sistema financeiro nacional e internacional, pois são titulares de mais de 80% dos títulos públicos existentes no mercado, estrategicamente criado a partir do Plano Brady, o que certamente será agravado pela promulgação da Emenda do Orçamento de Guerra, corroborando o paradoxo da perpetuação de uma política econômica de curto prazo, vez que a lógica de acolhimento dos interesses financeiros imediatos se tornou ortodoxa na política monetária nacional.
A Constituição Econômica de 1988 impõe o poder/dever do Estado intervir planejadamente[xv] na vida economia, seja por meio da normatização dos processos produtivos e dos serviços públicos (art.174 da CR), seja como Estado empresário atuando em setores estratégicos e em seus serviços estatais (173, caput e 175 da CR), objetivando implementar o projeto transformador constitucional em busca da justiça social, inclusive em momentos de crises e de pandemia, e não para beneficiar os privilegiados (bancos). Por outro lado, Infelizmente, a Emenda n. 106/2020 não tem maiores debates na mídia comercial e nas redes sociais, alias conta com a "violência simbólica[xvi]" dos "técnicos" para o convencimento social de sua necessidade, deixando sempre de lado a democracia participativa (art. 14 da CR) e produzindo a sensação da evolução de "Estado de Exceção antidemocrático.[xvii]"
Notas e Referências
[i] CLARK, Giovani. CORRÊA, Leonardo Alves. NASCIMENTO, Samuel Pontes do. Ideologia Constitucional e Pluralismo Produtivo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. Especial, p. 265-300, 2013.
[ii] CLARK, Giovani, CORREA, Leonardo, NASCIMENTO, Samuel. O Direito Econômico, o pioneirismo de Washington Peluso Albino de Souza e o desafio equilibrista: a luta histórica de uma disciplina entre padecer e resistir. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 301-324, jul./dez. 2018
[iii] SOUZA, Washignton Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.
[iv] CLARK, Giovani. CORRÊA, Leonardo Alves. NASCIMENTO, Samuel Pontes do. A Constituição Econômica entre a Efetivação e os Bloqueios Institucionais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n, 71, p. 677-700, jul/dez 2017.
[v] AVELÃS NUNES, Antônio José. A Crise Atual do Capitalismo: capital financeiro, neoliberalismo, globalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012
[vi] FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra,2001.
[vii] BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular n° 3.993, de 23 de março de 2020. Disponível em:< https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Circular&numero=3993> Acesso em 31/05/2020.
[viii] Disponível em: < https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/medidasdecombate_covid19 > Acesso em 31/05/2020.
[ix] Disponível em: < https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17004/nota > Acesso em 31/05/2020.
[x] Disponível em: < https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2020/03/banco-central-anuncia-conjunto-de-medidas-que-liberam-r-1-2-trilhao-para-a-economia>. Acesso: em 03/06/2020.
[xi] LELIS, Davi Augusto Santana de. Ensaios sobre a Atuação Estatal: a política pública capaz da alteridade e uma análise do PRONAF como política pública da ética primeira. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2019.
[xii] FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditória Cidadã da Dívida dos Estados. Brasília: Inove. 2013. MOURA, Sírlei de Sá. Planejamento e neoliberalismo: uma análise da política econômica reguladora sob o enfoque da Previdência Social e Dívida Pública via planos plurianuais de 1996 a 2019. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte, 2017. Vide: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_MouraSS_1.pdf
[xiii]CASTRO, Antônio Carlos Lúcio Macedo. A ordem econômica na Constituição de 1988 e o endividamento público federal: investigações acerca da (i)legitimidade da Dívida Pública da União sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte, 2019. Vide: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_AntonioCarlosLucioMacedoDeCastro_8188.pdf
[xiv] BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
[xv] CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Curso Elementar de Direito Econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2014.
[xvi] SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o pais se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
[xvii] SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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