A Ostentação Penal na Democracia

06/07/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 06/07/2015 

A ostentação penal diretamente é um sintoma político que se dá a ver de maneira quase onipotente em matéria de governabilidade punitiva, exatamente por carregar a potência de ser índice de si, autojustificada e colada à imediaticidade dos afetos. Diz respeito àquilo que se explicita, sob linhas gerais, desde a vertigem da aclamação securitário-populista em matéria penal.

Nesta perspectiva, importa destacar esta proeminente força, nada pronunciada por qualquer foco externo ao socius, senão desde a sua propriedade de disseminação viral, numa estratégia que corrói a própria democracia.

Hoje poderíamos falar do hiperterrorismo ou qualquer outra formação de um eventual conceito de inimigo forjado politicamente sem passar por aquilo que também importa. Derrida alertava que há uma espécie de terror interno que produz uma “autoimunização” na democracia - pois sabe-se que o pior e mais eficaz terrorismo, ainda que pareça externo ou internacional, é aquele que instala uma ameaça interior e lembra que o inimigo está também alojado dentro do sistema -, ou seja, destrói suas defesas imunitárias, subverte sua linguagem e fragiliza suas instituições.

Há uma lei implacável que regula todo este processo autoimunitário, ou seja, uma lógica que faz com que a democracia, no caso, trabalhe por si, quase que de forma suicida, exatamente para imunizar a sua própria proteção. Inicialmente ela deve ser desencadeada por um acontecimento que, como tal, carrega em si algo de inapropriável, certa incompreensibilidade. Esta transgressão de novo tipo acarreta um trauma, uma ferida não apenas marcada na memória. Neste ponto é salutar repensar esta temporalização tão hábil a ser veiculada no populismo punitivo. A idéia de um esquema rijo como “acontecimento maior” nos dá condições de perceber claramente que será o porvir que determina esta inapropriabilidade, não o presente ou o passado. Falando de traumatismo, ele é produzido pela ameaça de que o pior está por vir (“um im-presentável por vir”): o medo do que já foi não será maior que o pavor e a iminência de uma agressão futura. Por isso a recorrência ao medo sempre mobilizável como afeto político central a formar subjetividades impotentes. Daí o “inapresentável futuro” reger uma racionalidade de permanente estado de prontidão e de antecipações de todas as espécies de meios repressivos numa espécie de estado de defesa contínuo que inventa e alimenta a sua própria monstruosidade que alega superar. Dirá Derrida: “o que nunca se deixará esquecer é, assim, o efeito perverso da auto-imunidade em si. Pois sabemos agora que a repressão, tanto no seu sentido psicanalítico quanto no político – seja através da polícia, dos militares ou da economia –, acaba produzindo, reproduzindo e regenerando justamente a coisa que pretendeu desarmar.”

Já estamos, pois, mergulhamos no círculo vicioso da repressão.

Com um clima de guerra universal contra o crime (e seus acólitos nacionais como a corrupção, a redução da maioridade penal ou qualquer fração midiática pronta a ser vendida), campeia a dissolução da política pelas emoções coletivas. Mais viável, neste sentido, a abertura do campo à aclamação, que a tudo torna homogêneo. O apelo do poder acaba por se reenviar a um povo imaginário, muito mais adequado a uma ideologia que presumivelmente coloca a pluralidade do povo real como ingovernável. Nesta conjuntura, o lugar vazio do poder, uma vez suposto por Lefort como princípio da democracia (representante da perpétua abstenção democrática em aceitar fundamentos últimos que disponham sobre certezas derradeiras), é facilmente preenchido, hoje, por qualquer demanda punitiva.

Lembremos, com Agamben, que, em 1928, Carl Schmitt procurou estabelecer o significado constitutivo das aclamações no direito público, quando tratava, da relação do Povo com a Constituição Democrática. Ali o constitucionalista do III Reich vinculava de modo indissolúvel a aclamação à democracia e à esfera pública (povo). Para ele, a opinião pública é a forma moderna de aclamação e é nisto que se encontra a essência de seu significado político. Mesmo não ignorando os perigos de certas forças sociais dirigirem a opinião pública e a vontade do povo, isto seria problema menor, desde que assegurada a capacidade que considerava decisiva para a existência política de um povo: a refundação categórica do político desde a decisão que distingue entre amigo e inimigo.

O que faz Agamben, assim, sustentar precisamente que a aclamação pertence à tradição do autoritarismo, sobretudo, desde a sua esfera da glória que, nas democracias modernas, foi deslocada para o âmbito da opinião pública(da). O que está em questão, em síntese, é a multiplicação e a disseminação da função da glória (com toda as matizes da liturgia e dos cerimoniais repaginadas) agora concentrada na mídia, quer dizer, a eficácia da aclamação, em que as demandas punitivas, nunca se olvide, sempre antecipam-se e tomam lugar cativo.

A riqueza especial do argumento está em perceber que o chamado government by consent das atuais democracias do capital-parlamentarismo e a comunicação social, todos remetem em realidade a aclamações, momento em que a “sociedade de espetáculo” assume novo significado e pujança. A glória (punitiva) acaba sendo a substância donde a politicidade vai retirar seu critério, e para onde o povo, real ou comunicacional das democracias consensuais contemporâneas, acaba por repousar. O que nos impõe o alerta aos perigos do consenso em democracia e, com destaque, para as aclamações midiáticas por punição.

Em quaisquer tempos, a tentativa de privilegiar o desejo de liberdade para não deixá-lo soterrar frente às demandas punitivas nunca é tarefa das mais fáceis. Se nas sociedades modernas democráticas o maior perigo, já se disse, não é o delito em si, mas que a luta contra ele conduza aos piores totalitarismos, por conseguinte, a resignação e o pessimismo não poderão ter acento firme, muito menos em tempos sombrios. Não ceder no discurso de resistência, escapando de um “espírito do tempo” que tantas vezes ensaiou-se como desculpa às piores atrocidades, parece a prova a ser cumprida reiteradamente frente às barreiras derrubadas pelos diversos fascismos sociais. Isto passa, indubitavelmente, em resumo, pelo aumento da habilidade em surpreender, sob parâmetros renovados, frente aos influxos criminalizadores derivados da atual vontade de punir, a radical vertigem da ostentação penal.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.                                                                                                                                                                                                                                                            


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