Por Fauzi Hassan Choukr - 16/03/2015
A proposta do presente trabalho é procurar, dentro do exercício jurisprudencial, um conceito para a expressão "ordem pública" contida no art. 312 do Código de Processo Penal, como fundamentação do decreto de prisão preventiva ou denegação do pedido de liberdade provisória.
Não é, portanto, o debate da permanência de tal dispositivo dentro do ordenamento jurídico o objeto do estudo que se segue, alertando-se, porém, que a fórmula de "garantia de ordem pública" dificilmente se coaduna com o texto constitucional em curso, sobretudo no cotejo com o princípio da presunção de inocência [1].
Feita a advertência preliminar, tenta-se explicar o método da pesquisa elaborada.
A "ordem pública" será visualizada a partir da ótica jurisprudencial, buscando-se identificar a existência de um conceito dentro da atividade dos magistrados. É intenção, também, estratificar tal definição ( se existente) no plano espacial e temporal. Mais precisamente, deseja-se saber se, dentro de uma determinada região mais ou menos uniforme geopoliticamente existe um determinado parâmetro , e se o conceito teria sofrido, ao longo dos anos de vigência do estatuto processual, alguma alteração em virtude de fatores políticos ou alterações legislativas, já que como observa SALAS, o processo penal nada mais é que um espelho das relações de dominação política num determinado momento histórico [2].
Justifica-se tal preocupação ante o fato de ter o Código de Processo Penal ter sido editado na década de quarenta, e de lá até esta data, o pais ter vivenciado quatro textos constitucionais [3].
É certo , igualmente, que tais alterações são o exemplo máximo do processo de reajustamento político por que passou (e passa) a sociedade brasileira, sendo oportuno salientar que, tendo sido concebido dentro da realidade de um estado autoritário, passou pelo influxo democrático da Constituição de 1.946 e pelo contra-fluxo autoritário do período 67/69, para atingir, uma vez mais, um textos de alterações democráticas como é o atual.
No fundo, busca-se conhecer até que ponto a magistratura é permeável a tais transformações sociais e traz, para sua atividade, o reflexo de tal interpenetração.
A busca de uma identificação regional do conceito também é justificável, tendo em conta o fato de sermos um país com pluralidade de realidades. Certo é que os valores culturais de uma cidade de interior de um estado no extremo sul diferem profundamente daqueles existentes em cidades de um mesmo porte no norte ou nordeste. Mais uma vez deseja-se compreender como os julgadores dessas distintas regiões respondem à existência de um eventual conceito de ordem pública dentro de suas comunidades.
Dentro do plano de trabalho, foi ainda tema de pauta buscar a função do Supremo Tribunal Federal no quadro apontado. Como decorrência lógica do sistema organizacional da justiça brasileira, só poderia ser uma a sua missão: catalisar os eventuais conceitos plurânimos, dando-lhe uma visão de conjunto e, por que não, uma certa orientação jurisprudencial.
Por fim, dentro do tema de reajustamento legislativo, a intenção foi descobrir se a alteração infra-constitucional sofrida em fins da década de sessenta causou algum abalo no entendimento pretoriano.
A importância do tema, parece-nos, carece de demoradas justificativas. Trata-se de atividade judiciária que influi drasticamente no bem mais caro do ser humano, sua liberdade. Tolhê-la de forma injusta é como ceifar-lhe a vida, ante a proximidade de tais valores. E, como fator complicador, o tema insere-se dentro de um dos pontos mais sensíveis da atividade jurisdicional, o processo cautelar.
Antes de passarmos à tarefa de enfrentar os casos julgados, é necessário, ainda que breve, um comentário a respeito do próprio método empregado, mais exatamente para se saber o que se quer dizer ao empregar o termo "jurisprudência"
O Conceito de Jurisprudência
O que significa exatamente o conteúdo da expresso "existe jurisprudência a respeito?" [4]
Pode ser ela empregada (como de fato o é, na prática) para a existência de um único julgado a respeito de um determinado caso. Pode ser ainda entendida como um determinado corpo de decisões num determinado sentido acerca de uma certa matéria. Ou ainda, pode ser empregada em face de um único julgado num determinado sentido em oposição a uma coleção na direção diametralmente oposta. Em todas essas hipóteses o utilizador do aparato jurídico dirá, com argumento de autoridade, que a jurisprudência existe e lhe é favorável. Mas todas estas situações definem o mesmo objeto?
Ao se entender jurisprudência como "dizer o direito" (correlato, portanto, ao termo jurisdição), efetivamente sim. Em cada casos a jurisdição foi realizada e o direito foi "dito".
Contudo, ao se buscar um conceito de jurisprudência que seja algo mais que "dizer o direito", no sentido de identificar um determinada tendência social, haverá uma profunda diferença entre as formas de compreensão do problema.
A forma mais consentânea com a função do juiz no mundo contemporâneo parece-nos, sem dúvida, a última. A jurisprudência deve ser entendida como um conjunto de julgados dentre de uma linha axiológica, diferenciando-se, portanto, da existência de uma decisão isolada. [5]
Digamos que uma determinada matéria ( como o conceito de ordem pública, para nos fixarmos no tema ) pode ser alvo de "jurisprudência" na medida em que exista um conjunto de julgados tratando o tema de forma valorativamente coesa (certamente podendo coexistir, simultaneamente, vários valores consagrados, sendo perfeitamente possível falar-se em "jurisprudências"). Na medida em que não se encontrem rumos norteadores sobre o tema, mais correto será falar-se em decisões sobre a matéria, propondo-se desta forma uma determina "escala" de atuação na atividade jurisdicional.
A partir destas premissas inúmeras questões podem surgir, nem todas compatíveis com a dimensão de propósitos do presente trabalho, tais como a validade da uniformização de jurisprudência, a quem ela eventualmente serviria, como atuaria na prática, como se comporta a garantia do "duplo grau de jurisdição" nessa ótica, etc.
Conclui-se, então, para o presente trabalho que só será considerada "jurisprudência" o conjunto de valores consagrados de forma perceptível em um determinado conjunto de decisões. As posturas isoladas serão referidas como "julgados" ou "decisões" ou "acórdãos" .
Evolução do problema
A pesquisa elaborada, que teve como campo de extenso a postura dos tribunais desde a evolução do Código leva-nos a uma constatação preocupante. Em cinqüenta anos de vigência do tema não existe na atividade jurisdicional "jurisprudência" efetiva a respeito do conceito de "ordem pública".
Há, de fato, algumas decisões em que se busca uma conceituação do tema, sem , contudo, firmar-se um juízo de valor coeso a respeito.
A procura de uma identificação espacial e cronológica como inicialmente proposto revelou-se frustrante . A única tímida manifestação de unidade (mesmo assim não podendo ser considerada como posição jurisprudencial dada sua diluição) foi a da aproximação do conceito de "ordem pública" com o de "periculosidade" a partir da revogação da prisão obrigatória em fins da década de sessenta.
Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal mostrou-se capaz de fornecer linhas de atuação, deixando ao sabor arbitrário do julgador (vez que inexistem parâmetros) para o caso concreto entender o que é ou não ordem pública. A ausência de parâmetros faz com que aflore o uso da fórmula em seu aspecto puramente retórico, nela podendo ser inserida ou retirada a hipótese desejada sem que trauma formal algum seja sentido.
Vejamos a seguir algumas decisões acerca do tema e atenue inclinação dos tribunais há pouco referida.
Confiabilidade na Justiça
No julgamento do habeas corpus nº 60.973 oriundo do Paraná, o STF em voto proferido pelo Min. Francisco Rezek aproximou o conceito de ordem pública com a "preservação da credibilidade do Estado na Justiça"(RTJ 106/573) havendo, ainda, a inclusão de alguns outros elementos como a potencialidade lesiva do crime (a ser observado posteriormente) e garantia da própria segurança do acusado.
Tal ideia mostra-se claramente insuficiente. Todo processo, no limite, tenta reproduzir a confiabilidade da justiça do Estado, que um dia substituiu a justiça de "mão própria". Veja-se que o espectro de tal posição, extremamente largo, permite que o réu seja detido cautelarmente em qualquer feito, pois em todos processos a justiça deve ser "confiável".
Outra decisão seguiu a mesma linha. Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (nº 122.685 - HC - j. em 21.05.1.974 - Des. Adriano Marrey) o entendimento de ordem pública está próximo da credibilidade na justiça vez que segundo o julgado, " a ordem pública ... sofreria evidente prejuízo, eis que a liberdade do paciente implicaria abalar confiança na justiça, que somente atuaria em relação aos pobres, deixando impunes os ricos, como é o acusado".
Repetição da Fórmula Legal
A repetição da fórmula legal é presente em várias decisões, sendo uma das linhas mais perceptíveis, mesmo porque não se dá ao trabalho de tentar definir o que seja ordem pública, limitando-se a decretar a prisão cautelar (ou mantê-la apenas proferindo a letra da lei).
Interessante acórdão contido na RT 531/296 aponta para a insuficiência da repetição da fórmula legal. No caso concreto o julgador apontou que não basta a simples repetição da fórmula "garantia de ordem pública" para embasar o encarceramento preventivo.
O acórdão é instigante na medida em que aponta a necessidade de definir um conceito, repudiando a acomodação judicial, que na impossibilidade da construção de bases para a matéria assentam suas manifestações apenas na repetição das palavras sacras, quase num retorno à fase anterior da racionalidade weberiana.
Ordem Pública e Lei Penal
O acórdão do RHC 60.642, j. em 18.03.83 (RT 575/455) procura uma definição do conceito, asseverando que "a garantia da ordem social, que é a mesma da ordem pública, não se efetiva com ao simples término da tomada da prova. Integra-a a aplicação da lei penal"
Como apontado em tópico anterior, a atividade processual em si constitui expressão de racionalidade do Estado. Não se esgota , como diz o texto em outras palavras, no processo de conhecimento, mas integra- a o processo de execução.
Assim, essa decisão guarda muita semelhança com aquela citada no item 4, onde a ordem pública significava credibilidade na Justiça, apenas que com outra roupagem.
Ordem Pública e Periculosidade
É na aproximação das duas idéias citadas no cabeçalho deste tópico que a jurisprudência (ou mais exatamente, as decisões) vão encontrando um estreitamento axiológico.
Dentro do método de trabalho inicialmente proposto, pode-se visualizar que, a partir do momento em que saiu do mundo jurídico a necessidade da prisão em virtude da presunção legal de periculosidade ou gravidade do delito, a utilização da disposição ordem pública passou, no mais das vezes, a tomar-lhe o lugar.
Assim, não foi com surpresa que se encontrou, no início da década de setenta, uma enxurrada de decisões utilizando a ideia nos casos em que o agente se mostrava perigoso , como observado nos julgados contidos nas RTs 477/401, 504/436, 534/366,549/398, 538/458 e 489/344.
A partir da eliminação da custódia necessária, ao lado do emprego do termo periculosidade, as decisões passaram a utilizar a noção de gravidade do delito, esta embutida na presunção legal então existente. Não se evoluiu, entretanto, na discussão daquilo que vem a ser "periculosidade" ou na extenso de um conceito de gravidade típica, pelo menos até a edição da chamada "lei dos crimes hediondos".
Ordem Pública e Clamor
Também foi a partir desse momento que se empregou com alguma freqüência a expressão "clamor público", como no acórdão contido na RT 593/399 . No julgado apontado, a revolta da população surge como fonte autorizadora da custódia cautelar, assimilando sua ocorrência à ideia de desordem, que deve ser eliminada pela constrição da liberdade do acusado.
Ordem Pública e Segurança do Acusado.
Ordem pública é um argumento que já foi utilizado até em favor do acusado (!) para sustentar a decretação de prisão preventiva. Raciocinou-se na decisão contida na RT 593/339 que era mais seguro deixar o réu encarcerado que solto, ante a notoriedade do crime praticado. Portanto, o Estado já concluiu que a fim de garantir a incolumidade do acusado, este deveria ter sua liberdade privada...
Conceito Negativo
Se alguma definição para ordem pública os Tribunais constituíram, não foi ela de caráter positivo, mas sim negativo.
Analisando um caso em que, além do delito cometido, o agente possuía uma vida econômica arruinada, com inúmeras ações de execução na esfera civil, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo decidiu em 23 de junho de 1.977 que a existência de tais ações não significavam um risco a ordem pública para os fins de medida cautelar penal.
Ainda que pela linha de exclusão, o julgado serve de parâmetro para um início de delimitação da expressão, não se admitindo a existência de "dívidas civis" para sustentar a prisão preventiva. Trata-se de postura amplamente correta, notadamente num país com a nossa estrutura econômica. Se levada a sério, pode significar a impossibilidade da prisão cautelar em face da situação econômica do acusado, tendo reflexos até na noção de domicílio certo, cuja ausência em várias oportunidades sustenta a prisão cautelar.
Conclusões
Ao fim pesquisa constata-se que, após cinqüenta anos de vigência do CPP os Tribunais ainda não conseguiram construir linhas valorativas para delimitar a ideia de ordem pública, ficando assim o tema ao sabor do arbítrio e não da discricionariedade.
Ainda que a presente análise caia em desuso com a não recepção do tema, em estrita obediência ao texto constitucional, a tarefa poderá manter algum valor, e servir como alerta ao legislador e interpretes da legislação instrumental penal no tocante a adoção, em futuros textos, de expressões em si vazias, mormente em pontos críticos como as medidas de cautela.
Notas e Referências:
[1]. A crítica à constitucionalidade da ideia de "ordem pública" como fundamento da prisão cautelar foi elaborada com propriedade por GOMES Fº (Antonio Magalhães, in "Presunção de Inocência e Prisão Cautelar"Saraiva, SP, 1.981 especialmente p. 66 e segs), concluindo que as prisões cautelares amparadas nesta baliza nada mais é que uma antecipação de pena, "ditada por razões de ordem substancial e que pressupõe o reconhecimento de culpabilidade"
[2]. Veja-se SALAS, Denis., in "Du Procès Pénal", PUF, Paris, 1.992, especialmente página 19, onde o autor sustenta que o o processo penal "doit nous conduire à suivre le délepoppement des relations de dépendance et de indépendance qu'il entretient ... avec le pouvouir politique. "
[3] Observe-se que o CPP entrou em vigor durante a vigência da Constituição de 1.937, tendo sido recepcionado pela Constituição de 1.946 e, posteriormente, pelos textos políticos de 1.967 e EC nº 01 de 1.969 e chegando ao texto atual, de 05 de outubro de 1.988
[4] Veja-se para uma definição do conceito de jurisprudência, LIMONGI FRANÇA., Rubens. "O Direito, a Lei e a Jurisprudência, SP, RT, 1.974 [5] A respeito desse compromisso social da magistratura, para visão crítica veja-se, entre outros, FARIA. José Eduardo Campos de Oliveira. in " Justiça e Conflito" Os juizes em face dos novos movimento sociais. SP, RT, 1.991, especialmente páginas 106 e seguintes.
Fauzi Hassan Choukr é Pós- doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre pela USP; Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha (2007); Pesquisador Convidado do Instituto Max Planck para Direito Penal Estrangeiro e Internacional, Freiburg im Bresigau, Alemanha; Pesquisador convidado do Collège de France (2005/2009); Membro da Associação Internacional de Direito Penal; Promotor de Justiça – SP (desde 1989).
Imagem Ilustrativa do Post: Prision // Foto de: Nestor Galina// Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nestorgalina/4915052210 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode