A Operação Lava-Jato e o dever de se tributar os valores restituídos e/ou apreendidos - Por Vinícius Loss

03/11/2017

A análise desenvolvida neste artigo parte dos pressupostos e diretrizes doutrinárias firmadas no bem fundamentado artigo de autoria do Dr. Lucas Calafiori Catharino de Assis, intitulado A operação Lava-Jato e a (im)possibilidade de se tributar valores restituídos[1], publicado nesta mesma coluna da ASSET/SC, em 17 de julho de 2017. 

A despeito de todos os argumentos trazidos naquele texto, sobretudo em relação ao direito comparado italiano e alemão, parece-me que a conclusão deve ser diversa, isto é, de que mesmo os valores apreendidos ou restituídos pelos colaboradores devem, sim, ser objeto de tributação. 

Pecunia non olet. A expressão latina, amplamente utilizada no Direito Tributário, tem origem no Império Romano, em um episódio no qual o então Imperador Vespasiano é interpelado por seu filho, Tito, acerca da moralidade de uma taxa imposta para utilização de banheiros públicos, pois ela dificultaria o acesso às instalações pela população e deixaria Roma com mau odor. Em resposta, o Imperador teria cheirado uma moeda de ouro e dito “non olet” (não tem cheiro)[2]. 

A doutrina moderna adaptou a expressão para justificar a tributação, grosso modo, de toda e qualquer renda que um determinado sujeito passivo aufira, independentemente da sua origem, lícita ou ilícita. No Código Tributário Nacional – CTN, o entendimento está encartado no art. 118, I (A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos). 

Pois bem.

A tributação da renda está dentro da competência tributária da União. A sua regra-matriz de incidência está descrita no art. 43 do CTN. A regra-matriz é a descrição feita pela lei de uma hipótese de incidência (o antecedente) que acarretará o pagamento de tributo (o consequente). Assim, quando verificada a ocorrência de um “fato gerador” no mundo fenomênico que se subsuma aquela descrição do antecedente, ter-se-á a cobrança do tributo na forma prevista em seu consequente[3]. 

Nesse sentido, a lei estabelece que “o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; e de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no item anterior”. 

O parágrafo primeiro ressalta que a “incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção”. 

Daí se concluir que se uma pessoa aufere renda entre o primeiro e o último segundo de um determinado ano-calendário deve recolher o imposto correspondente independentemente de como auferiu tal renda, como a denominou, ou de qual será o seu destino. Do ponto de vista legal-tributário, basta verificar se houve a disponibilidade jurídica e financeira da renda e se não há regra de isenção/anistia/renúncia para que haja a obrigação de recolher o imposto. 

É imperioso ainda ressaltar que o Código Tributário, em seu art. 110, teve o cuidado de vedar à lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, com o propósito de evitar que o legislador ordinário, por capricho, pudesse tributar verbas que estivessem, conceitualmente, fora do campo da incidência de determinado tributo, como seria o caso, v.g., de uma determinada lei definir que o recebimento de indenização (que não representa renda) pudesse ser interpretada como renda e, por consequência, ser objeto de tributação. 

No caso, é possível concluir que o CTN conceituou renda como um “acréscimo patrimonial”, em harmonia com os contornos delineados pela Constituição e com à acepção do próprio vocábulo, deixando de fora, portanto, e por exemplo, as “indenizações”. 

O princípio (com conteúdo axiológico de regra) da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, da CF/88), em relação ao imposto sobre a renda, faz concluir que deverá a autoridade fiscal averiguar o que efetivamente representa uma renda, um acréscimo patrimonial para o sujeito passivo, a fim de que esse valor sirva como critério material para a incidência da respetiva alíquota. 

Esse acréscimo patrimonial decorre do confronto entre certas entradas e saídas, assim definidas em lei, e ocorridas num período pré-determinado[4]. A renda “legal”, pois, deve representar um saldo positivo ao final de um período pré-estabelecido (para o imposto de renda da pessoa física, um ano), conclusão que se pode chegar por exclusão ao que a Constituição refere como sendo: faturamento (art. 195, I), adotado como “ingressos” sem, todavia, haver a preocupação com o resultado, seja positivo ou negativo; capital (arts. 156, 165, 167, 170, 172, 192), visto como investimento, sem a comparação entre o patrimônio inicial e o final; lucro (arts. 7º, 172, 173 e 195), que é adotado como o resultado positivo de uma pessoa jurídica, podendo ser, por conseguinte, uma das espécies de renda (mas sem que seja suficiente para delimitar o conceito); ganho (arts. 201 e 218), tendo este sido adotado com a mesma limitação que “faturamento”, pois não se atem ao resultado final; resultado (arts. 7º, 20, 71, 77, 109, 176, 231 e 235), que é adotado como situação final do processo, sem avaliar a capacidade contributiva; e patrimônio (arts. 5º, 23, 24, 30, 144, 145, 150, 225 e 239), vocábulo com o qual o constituinte passa a ideia de situação estática de bens e direitos. 

O conceito de “renda legal” está de acordo – em respeito ao art. 110 do CTN – à própria acepção do vocábulo “renda”, consoante se pode inferir do dicionário da língua portuguesa Michaelis[5], que traz a ideia de acréscimo patrimonial inerente à sua significação, veja-se: 

1 Produto anual ou mensal de propriedades rurais ou urbanas, de bens móveis ou imóveis, de benefícios, capitais em giro, empregos, inscrições, pensões etc.; produto, receita, rendimento. 2 Rendimento líquido depois de deduzidas as despesas materiais. 3 Série de prestações em dinheiro ou em outros bens, que uma pessoa recebe de outra, a quem foi entregue, para esse efeito, certo capital. 

Logo, não há qualquer descompasso entre o que a lei tributária define como hipótese de incidência (auferir renda, considerada esta como acréscimo patrimonial) e a acepção do vocábulo ou do próprio instituto do direito privado. 

Firmada essa premissa, é preciso averiguar que diferentemente do direito alienígena, a legislação brasileira, ao tratar da colaboração premiada, não dispôs, em nenhum momento, sobre um “perdão tributário ou civil”. Não há menção na Lei 12.850/13, mais especificamente nos arts. 4º a 7º, sobre qualquer ponto que ao menos de longe leve a supor uma renúncia (ou isenção, ou anistia) tributária por parte da União. 

Neste norte, repare-se que a própria Constituição Federal, em seu art. 150, § 6º, estabelece que qualquer “subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições” só pode ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, e a tal lei precisa regular exclusivamente as matérias acima enumeradas. 

A Lei 12.850/13 não atende o requisito constitucional. Nem sequer trata da isenção/anistia/renúncia. Tampouco há outra legislação que assim disponha quando se trata de devoluções ou apreensões no âmbito de operações policiais. Pelo contrário, o que se tem a partir da maciça jurisprudência é que, de fato, a origem da renda não altera a regra de incidência tributária[6]. 

Não há, portanto, uma previsão legal que justifique a sobredita “isenção/renúncia/anistia” do imposto sobre as rendas auferidas pelos colaboradores e que vieram a ser restituídas ou apreendidas no curso da operação. 

A propina recebida – e confessada – pelos colaboradores representou um verdadeiro ganho patrimonial no momento do seu recebimento, ainda que tal ganho seja constatado “apenas” no período anterior à Lava-Jato (em função da dita restituição do fruto do crime). Independentemente do desfecho, é fato que houve disponibilidade financeira e jurídica dos recursos, haja vista que os malfeitores puderam usufruir das quantias amealhadas para custear mansões, carros de luxo, viagens, jantares luxuosos, jóias, etc.. Se assim ocorreu, deveria ter sido apresentada a respectiva declaração de ajuste anual de renda, como qualquer outra pessoa comum está obrigada a fazer, e o imposto correspondente deveria ter sido recolhido nas épocas próprias. 

Depois do acréscimo, do uso ou não desses recursos pelo sujeito passivo, pouco importa qual foi a respectiva destinação. O dinheiro poderia ter sido utilizado para adquirir uma casa, que incendiou, ou um automóvel, que foi furtado, ou, ainda, poderia ter sido perdido em jogos de azar. A hipótese de incidência descrita na lei (auferir renda) foi verificada em fato concreto e, por consequência, nasceu a obrigação tributária, sendo irrelevante a origem e o destino da renda obtida. 

Entendimento diverso beneficiaria duplamente o infrator, que: (1) enriqueceu ilicitamente; e (2) embora tenha usufruído de uma renda por parte de sua vida (por 1, 5 ou 10 anos, etc.), não cumpriu suas obrigações tributárias (não pagou imposto) no momento oportuno (partindo-se do pressuposto que a propina não foi declarada, porquanto se tivesse sido, obviamente, o imposto já teria sido recolhido e não haveria nada mais para a Receita Federal cobrar).  

Logo, com a vênia aos ilustres colegas que têm entendimento diverso, se houve o acréscimo patrimonial, a disponibilidade jurídica e financeira dessa renda, e, ao mesmo tempo, não existe no ordenamento jurídico nenhuma regra que isente, anistie ou torne imune o seu recebimento, a tributação é medida cogente, inclusive decorrente de dever da autoridade fiscal, sob pena de responsabilidade funcional (art. 142, § único, do CTN).


[1] http://emporiododireito.com.br/backup/a-operacao-lava-jato-e-a-impossibilidade-de-se-tributar-valores-restituidos-por-lucas-calafiori-catharino-de-assis/ acessado em 17 de julho de 2017.

[2] Dio Cassius, Roman History, Book 65, chapter 14

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012. Pp. 301/322.

[4] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 19ª ed., Malheiros, 2001. p. 263

[5] Renda in DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2015.

[6] STF. HC 94240/SP, julgado em 23 de agosto de 2011. STJ. REsp 1208583/ES, julgado em 4 de dezembro de 2012.

 

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